THE DELAGOA BAY REVIEW

14/06/2010

O MERCADO ESTÁ SECO

Filed under: Economia Portuguesa — ABM @ 11:18 pm

por ABM (15 de Junho de 2010)

Durante do dia de hoje, assistiu-se a uma curiosa peregrinação, ao mesmo tempo literal e mediática, quando os chefes executivos de três bancos portugueses (Banco Comercial Português, Banco Português de Investimento e Banco Espírito Santo) e António de Sousa da Associação Portuguesa de Bancos, voaram até Bruxelas para falar com o Sr. Michel Barnier, um dos representantes das instituições europeias.

Porquê?

Para expressar a preocupação com a implementação de algo chamado Basileia III, em que basicamente os bancos terão que passar a ter maiores rácios de capital sobre activos detidos.

E porque, nas palavras de um António de Sousa, o mercado português estava seco.

Isto enquanto a empresa de notação internacional Moody’s desceu a sua notação do risco da dívida da Grécia em quatro níveis para junk (lixo), a taxa de desemprego portuguesa em Abril, foi anunciado também, cifrou-se em 10.8% – a maior nos últimos quarenta anos – e a inflação subiu para 1.1%.

O que é que isto quer dizer?

Vou tentar explicar, deixando de lado a tal questão dos rácios de capital, que ficam para outras núpcias.

Há trinta anos, quando eu aprendia como funcionava o negócio financeiro, um banco emprestava só parte do que tinha em depósitos dos seus clientes. Em economias fechadas e (diz-se agora) menos sofisticadas, era o normal. É o que acontece, por exemplo, em Angola e Moçambique. Assim, um banco só podia crescer na medida em que conseguia, de uma forma ou outra, agregar depósitos dos seus clientes.

Nos intrépidos anos 80 e 90, a começar nos Estados Unidos, a estrutura do negócio mudou completamente. Apareceram novos esquemas, novas entidades, que em vez de depositarem o seu dinheiro nos bancos, começaram a emprestar fundos directamente aos bancos, sob várias formas. Assim, com o correspondente evoluir das regras, e a criação de um mercado interbancário alargado onde se comprava e vendia dinheiro em montantes elevadíssimos, um banco português passou a poder ir buscar dinheiro não necessariamente mais barato que o que pagava aos seus depositantes pelo seu dinheiro, mas certamente muito mais abundante, e em seguida emprestar muito mais do que tinha em depósitos “seus”.

No fundo, separou-se a lógica anterior e os bancos portugueses passaram a usar as suas estruturas comerciais (balcões, centros de empresas, esquemas com lojas, etc) mais para emprestar dinheiro, que iam comprar barato e por atacado a outros locais. A realidade é que, na maioria dos mercados, ir buscar dinheiro ao mercado a retalho é muito mais caro e muito menos rentável do que emprestar dinheiro.

Com o advento do euro e da criação de um mercado financeiro europeu, essa forma de financiamento extravasou as fronteiras portuguesas. A máquina financeira portuguesa alimentava a sede insaciável pelo crédito, recorrendo a empréstimos estruturados, obtidos junto de grandes bancos situados na Europa Central e do Norte. O mercado era líquido, abundante, o esquema era obscenamente rentável e todos saíam a ganhar.

Até há um ano e meio atrás, quando, num curto espaço de dias, o gigantesco banco norte-americano Lehman Brothers faliu porque lhes foram cortadas todas as linhas de financiamento para o seu crédito (de má qualidade) subprime. O impacto a nível mundial foi imediato.

Incluindo em Portugal, onde o governo de José Sócrates, copiando o que os americanos e ingleses estavam a fazer, disponibilizou garantias para apoiar e manter abertas as linhas de crédito, que na altura mantiveram os bancos portugueses fora de perigo imediato.

Porquê? porque já nessa altura os bancos portugueses haviam emprestado muito mais do que tinham em depósitos. E essa diferença deviam-na a bancos situados noutros países. Se estes exigissem a liquidação rápida dessas dívidas, os bancos portugueses (e não só) entrariam e incumprimento e eventualmente em dificuldades. Em todo o mundo, por essa razão, dezenas de bancos faliram. Muitos mais ficaram a um fio de falirem e tiveram que se fundir para não caírem. Em Portugal, o Banco Privado Português faliu (o caso do BPN foi completamente diferente e a meu ver era e é caso de polícia).

Resolvida a questão da liquidez temporariamente assegurada por essas garantias, o que aconteceu a seguir?

Em boa verdade, nada.

Deixe-me o exmo Leitor reproduzir um quadrozinho pequeno que apareceu há uma semana atrás no canto inferior esquerdo da página 3 do suplemento de economia do semanário Sol, que se publica em Portugal. Os dados foram obtidos a partir dos resultados preliminares publicados destas instituições para o primeiro trimestre de 2010.

BPI – depósitos 25.2 mil milhões de euros, crédito 29.2 mil milhões de euros (taxa de cobertura de 86%)
CGD – depósitos 63.3 mil milhões de euros, crédito 77.1 mil milhões de euros (taxa de cobertura de 82%)
BCP – depósitos 46.0 mil milhões de euros, crédito 75.0 mil milhões de euros (taxa de cobertura de 61%)
BES – depósitos 26.5 mil milhões de euros, crédito 49.9 mil milhões de euros (taxa de cobertura de 53%)
Santander Totta – depósitos 15.0 mil milhões de euros, crédito 34.4 mil milhões de euros (taxa de cobertura de 44%)

Ou seja, no total, estes cinco bancos portugueses de primeira linha (mais de oitenta por cento do negócio bancário) emprestaram em Portugal 265.6 mil milhões de euros para os quais só tinham 176,0 mil milhões de euros de depósitos, tendo ido buscar a diferença – 89.6 mil milhões de euros (isto é 89.600.000.000.000 euros) a fontes externas.

É principalmente este montante que causa a actual dor de cabeça. Pois que o preço pago por este dinheiro depende dos ratings dos bancos e da república portuguesa.

Mais importante, depende da vontade destas entidades externas de continuar a emprestar estes valores aos bancos portugueses, num contexto de estagnação e deterioração económica.

E mais: se se verificar em Portugal o que tem acontecido e continua a ocorrer neste momento com a Grécia, no mínimo o custo deste dinheiro vai subir.

E não haverá mais dinheiro fresco para emprestar.

Ora, consideravelmente endividados a entidades externas, com o acesso a dinheiro fresco congelado, e com o custo do dinheiro (que aparece aos seus clientes na forma de juros) a subir, o que isso significa para as pessoas e as empresas em Portugal é:

1. consideravelmente menos dinheiro para emprestar
2. taxas de juro mais altas
3, potenciais dificuldades para os bancos se as pessoas e empresas que já têm empréstimos não honrarem essas obrigações.

Como plano alternativo para um cenário negativo, há neste momento mecanismos ao nível do Banco Central Europeu e do Estado português para intervir antes que possa ocorrer alguma situação de risco acrescido para a banca.

A mensagem é clara. Numa conjuntura crescentemente difícil, acresça-se esta: não há dinheiro, e o pouco que há vai ser mais caro.

O mercado está seco.

5 comentários »

  1. Lembro-me de nos anos 90s ouvir pessoas a protestar contra o modelo de desenvolvimento português, contra o desinvestimento industrial e no sector primário (era quando o Mira Amaral falava do “petróleo verde” [já agora, isto das “cortiças” não é só PS], era quando o Cavaco falava do Sillicone Valley português), e contra o modelo de financeiro, de indução do endividamento familiar via (macro)crédito no estrangeiro, servindo os bancos portugueses como intermediários do crédito. Agora, tantos anos passados, já não me lembro se era o Carvalhas se o Cunhal se o Carvalho da Silva. Ou seriam todos?

    Esses eram o tempo também do challengers trophy, do ainda pré-pós yuppies, e isso tudo. E das histórias compradas na imprensa com a filha do engenheiro (o jardim gonçalves) de banco em banco a saber do credito de habitação, veja-se lá a honestidade, o franciscanismo.

    Um dia destes ainda entro no PC

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    Comentar por jpt — 15/06/2010 @ 12:10 am

  2. (de quem é o post? Não encontro assinatura)

    Excelente explicação, muito bom post. Haver dinheiro, há, está é caríssimo. Vai ser a desgraça, não para as famílias (o crédito à habitação não é de elevado risco), mas para as empresas. Principalmente as PME’s.

    Mas a China, por exemplo, está com um brutal excesso de liquidez. Ainda se vai ver por cá aquilo que se fazia nos anos 80/90, quando se compravam ienes a taxa fixa com swaps de taxa de juro, que ficava – mesmo assim – abaixo da USD Libor. Ou então os chineses compram tudo. Eles andem aí…

    (jpt, desculpa abusar aqui os comentos do Ma-schamba e sair do meu normal olarilolé, mas entusiasmei-me que é raríssimo ler um post sobre banca tão claro).

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    Comentar por Catarina Campos — 15/06/2010 @ 12:37 am

  3. ó CC qual desculpa! O homem da finança e arredores aqui é o ABM (esqueceu-se de assinar, combalido com o som das vuvuzelas porventura)

    Ó ABM isto da CC te avalizar é um feito, ela é uma decana (uma jovem decana, entenda-se) nisto dos bloguismos. E é mais de caneladas, elegantérrimas é certo, do que de entusiasmos

    Agora fiquem os dois a falar de swaps e libores que é jargão que eu, mero falido, nã entendo

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    Comentar por jpt — 15/06/2010 @ 1:01 am

  4. Jpt

    Acho que, por tudo o que se possa dizer dos comunistas (o meu habitual é “vade retro”) a circunspecção financeira é garantidamente um seu trunfo. Creio que em boa parte reside o seu sucesso a concorrer com sucesso para a gestão das municipalidades.

    Se bem que isso nada tenha que ver com o que aconteceu. O mundo passou por enormes desequilíbrios e re-equilíbrios nos últimos 15 anos, de que o enorme erro de detecção e supervisão norte-americana desembocou na tal crise do “subprime”. Nada há de errado com o capitalismo, excepto a sua capacidade para dar a volta a quase tudo na procura por oportunidade e lucro. Compete às sociedades estarem vigilantes e fortes para, através de regulamentação e o definir de regras, canalizar essa potentíssima e fecunda força para criar riqueza sólida e, preferencialmente, dispersa pelo maior número de pessoas possível. É uma arte, não uma ciência.

    D Catarina

    Já corrigi o texto e agora estão lá as minhas iniciais como de costume. Satisfaz-me ter entendido este que é um assunto fulcral dos nossos dias e que considero invariavelmente mal explicado (em Portugal no que se publica é quase sempre privilegiada a erudição, em detrimento da clareza). Eu escrevi esta nota para descansar dos meus textos sobre o futebol (assunto onde confessamente navego com imenso cuidado) e depois de ver os senhores lá de cima a sairem duma reunião em Bruxelas ao princípio da tarde.

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    Comentar por ABM — 15/06/2010 @ 2:13 am

  5. Jovem decana mais velha que tu – JPT – exactamente 3 meses, se a memória não me falha.

    Depois percebi logo que o post era do ABM.

    E sim, concordo em absoluto, é um assunto sempre mal explicado. Como eu digo nos meus posts de economia e finanças para totós, estes assuntos são simples, mas que os “domina” complica-os para parecerem uma “ciência” obscura, só para alguns iluminados. Triste, mas típico deste país de saloios pequeninos. Mais uma vez, muito obrigada pela clareza.

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    Comentar por Catarina Campos — 16/06/2010 @ 1:10 am


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