Imagem retocada e colorida.
Tive a sorte de conhecer relativamente bem Rita Ferreira, que foi meu vizinho na Rua dos Aviadores em Lourenço Marques nos anos 70 (mudou-se de uma velha casa junto do Hotel Cardoso para o 1º andar vagado pelos Picolos quando eles se mudaram para o Bairro do Triunfo) e, décadas depois, em Cascais (uma casa em Bicesse), até falecer. Tinha a mulher e três filhos. O mais novo, que eu conhecia por ser da minha idade, como a mulher, morreu anos antes dele. Na segunda fase do nosso convívio, em Portugal, falávamos durante horas e horas em pessoa e ao telefone sobre as suas experiências de Moçambique e trocávamos documentos. Era um prazer, e nada mau, tendo em conta que ele basicamente não aturava quase mais ninguém, incluindo a pequena procissão de pesquisadores que regularmente lhe iam bater à porta com dúvidas existenciais.
Esboço Biográfico
(texto de base da Enciclopédia Verbo Luso Brasileira de Cultura, Ed. Século XXI, volume 25, pesadamente editado por mim)
Rita Ferreira foi mais conhecido por ter sido um investigador em Ciências Sociais.
Apesar de nascido na obscura localidade portuguesa de Mata de Lobos em 14 de Novembro de 1922, foi levado para Moçambique ainda bebé e ali viveu mais de meio século.
Completou o ensino secundário em Lourenço Marques e, anos mais tarde, fez Estudos Bantos na Universidade de Pretória.
A sua carreira foi feita quase integralmente nos Serviços da Administração Civil de Moçambique colonial, atingindo a categoria de Administrador de Circunscrição. Em 1963, transitou, como primeiro assistente, para o Instituto do Trabalho em Lourenço Marques. Em 1971, foi chefe de Serviços no Centro de Informação e Turismo, onde ascenderia a técnico-director, e, já depois da Independência, a director.
Quando para tal foi instado pela Frelimo, manteria a nacionalidade portuguesa por (obviamente) podê-lo fazer e por ter algumas dúvidas quanto às intenções do novo regime.
Simultaneamente, por solicitação do então Reitor, leccionou, na Universidade Eduardo Mondlane (a ex-Universidade de Lourenço Marques de Veiga Simão. Na altura havia muitas “ex”), a cadeira de História Pré-Colonial, entre 1975 e 1977.
Em 1977, na sequência de um incidente gratuito movido pelas autoridades moçambicanas, saíu de Moçambique e radicou-se em Cascais, Portugal, onde se reformou do funcionalismo público e viveria o resto da vida. Na altura só havia dois que se lhe comparavam, um era Gerhard Liesegang, o outro talvez o Capela.
Paralelamente às suas ocupações profissionais e aproveitando as oportunidades surgidas, desenvolveu notável actividade nos domínios da Antropologia e da Sociologia. Além de participar em encontros e congressos nacionais e internacionais, publicou numerosos artigos e recensões em periódicos especializados, avultando as centenas de editoriais publicados (1963-1972) nos principais jornais diários, onde, entre outros temas, alertou para a gravidade das carências que afectavam a maior parte das comunidades rurais e tribais espalhadas pelo território moçambicano. Em 1972, a convite de várias universidades norte-americanas, visitou os respectivos Centros de Estudos Africanos, onde proferiu palestras e participou em debates.
Destacou-se, igualmente, pela sua participação, entre 1983 e 1988, no projeto de microfilmagem de variada documentação sobre Moçambique existente nos arquivos portugueses (onde estava tudo a monte em caixas desorganizadas como não podia deixar de ser), organizado pelo Arquivo Histórico de Moçambique, pago se não me engano pelos (?) suecos, e que tornaria acessível aos estudiosos moçambicanos uma inestimável parte da história daquele país.
O seu último trabalho, publicado em edição de autor em 2012, intitula-se “Colectânea de documentos, notas soltas e ensaios inéditos para a História de Moçambique”.
Apesar de não ser um académico profissional, e talvez por isso, foi uma mente independente. Tal como resistira às pressões do então regime e academia portugueses para justificar e “dourar a pílula” colonial em Moçambique, mais tarde resistiria às modas “progressivas” esquerdistas, marxizantes, invariavelmente re-interpretativas de muita da realidade moçambicana. Merecendo por isso duplas felicitações.
Morreu em Cascais no dia 20 de abril de 2014.
O seu espólio encontra-se espalhado em vários locais, entre universidades e colectâneas como a Casa Comum. Um seu filho mantém um sítio na internet. O que é uma pena, pois aquilo tudo é, como muito do que envolve a história de Moçambique, uma lixeira sem nexo que desmerece a pessoa. Mas suponho que é melhor do que nada.
Foi galardoado, por três vezes, pela Academia. de Ciências de Lisboa.