THE DELAGOA BAY REVIEW

25/04/2023

O 25 DE ABRIL EM 2023: 49 ANOS DISTO

Filed under: O 25 de Abril em 2023 49 anos disto — ABM @ 11:20 pm

Imagens retocadas.

Eu tinha 14 anos e três meses de idade e vivia despreocupadamente com a minha família na então próspera e muito colonial Lourenço Marques quando, numa quinta feira, 25 de Abril de 1974, à hora de almoço, o meu Pai disse que, nas emissões em onda curta da BBC e da RSA (Radio South Africa, que emitia de Johannesburgo) relatavam que tinha havido um golpe de Estado em Lisboa. Na Cidade, o rumor corria mas na rádio, nem uma palavra. Ao fim da tarde, quando fui para o meu habitual treino de natação na piscina do Desportivo, confirmei que todos estavam a falar do assunto. Lembro-me, nesse fim da tarde, ter pressentido que o que se podia estar a passar teria possivelmente um enorme impacto na minha vida e da minha família. Em primeiro lugar, porque Moçambique, a única terra que de que eu me considerava parte, poderia, a breve trecho, tornar-se independente. O que eu via como, ao mesmo tempo, épico e problemático.

A partir daí, a velocidade a que o tempo passava, a sucessão estonteante dos eventos e a necessidade da tomada de decisões com grande impacto face ao que ia acontecendo, mesmo para um adolescente com 14 anos, impuseram uma maturação sem precedentes. Considero que foi nessa altura que a minha adolescência acabou. Pois era necessário estar à frente dos eventos e prever as suas consequências.

Dez meses mais tarde, estava em Coimbra, Portugal, por minha decisão, para continuar os estudos e nadar, pois a Lourenço Marques que eu conhecia estava-se a desmembrar, depois de meses de indefinição e os eventos de Setembro e Outubro. A maioria dos professores, portugueses, abandonavam a Cidade e no Liceu Salazar, já re-baptizado de 5 de Outubro, estudantes mais velhos alinhados com o que estava para vir começavam a ensinar marxismo e a questionar o estatuto “burguês” de se ser estudante ali. No Desportivo, os treinadores fizeram as malas e foram para Portugal. A total incerteza face ao futuro e a crescente agressividade dos novos senhores do poder deixava pouca margem para a imaginação e em casa os meus Pais ponderavam o que fazer.

Estive em Coimbra desde 20 de Fevereiro de 1975 e 20 de Setembro de 1977, após o que saí de Portugal. A então pequena e pacata cidade no centro de Portugal foi um palco relativamente isolado e pacífico mas privilegiado para assistir ao que sucederia ao país nesse intervalo de tempo. Também em Portugal, nessa altura, assisti à mesma incerteza total e imprevisibilidade perante o futuro. A poeira só começou vagamente a assentar depois do 25 de Novembro de 1975 e em 1976, quando, pela segunda vez, houve uma eleição parlamentar que correu sem grandes incidentes. Mas não fiquei convencido. Para quem vivia em Lourenço Marques, Portugal era um país cheio de problemas, pobre, largamente analfabético e embrenhado em lutas filosóficas e políticas que não me interessavam.

Passaram hoje 49 anos sobre o dia do tal golpe de Estado em Lisboa, convertido em feriado nacional e defendido como o Dia da Liberdade da III República portuguesa. Sou relativamente indiferente a estas caracterizações. Sim, o golpe foi essencial para o que aconteceu a seguir e que eventualmente trouxe uma certa liberdade de expressão aos portugueses. Mas, do que me recordo, o resto do ano de 1974, 1975 e parte de 1976 foi um período em que essa tal liberdade era tudo menos certa. O paradoxo é ter-se escolhido essa data inicial para assinalar um final quiçá feliz mas que não teve nada a ver com os eventos desse dia. É sinal evidente da vitória dos que perderam essa luta que foi o dia 25 de Abril de 1974 a data escolhida. Aliás nem estou certo de qual foi a data em que se percebeu que Portugal não ia para o comunismo e que iria ter um regime parlamentar semi-presidencialista em que poderia haver rotatividade entre os partidos políticos. Foi a data da primeira eleição para a Assembleia Constituinte? o 25 de Novembro de 1975? ou a primeira eleição parlamentar e presidencial, em Abril de 1976?

Em Moçambique, o movimento nacionalista guerrilheiro tomou conta do poder, apropriou-se de tudo, desmantelou a maioria da economia no espaço de meses e literalmente correu com os portugueses (que incluia brancos como eu que pouco tinham já que ver com Portugal) e instaurou uma ditadura comunista que pretendeu exorcizar os fantasmas do passado e construir um novo regime e uma nova sociedade. 49 anos mais tarde, ainda é essencialmente um regime de partido único gerido continuamente pelas mesmíssimas pessoas, ou os seus Candidatos Manchurianos, escolhidos a dedo, e que agora são a nova elite colonial. O serem pretos e da casa atenua para muitos o pecado.

As últimas décadas têm sido de guerra, de ameaça de guerra e de instabilidade civil, aliada a um sem fim de tragédias naturais.

O filho mais novo do actual presidente de Moçambique, Jacinto Nyusi. Em tempos andava num Maclaren na Baixa de Maputo. O Pai prepara-se para ser “President for Life”.

Portugal, mais uma vez, caminha firmemente para conquistar o seu lugar como um dos países mais pobres da Europa, dos mais endividados do Mundo, dos mais taxados em termos da capacidade financeira dos seus contribuintes, dependente de uma relação assistencialista com a União Europeia, com uma população não só envelhecida e pobre mas em que a maioria dos seus jovens que se educam emigra ou pensa emigrar. Para fazer face à implosão populacional, prevê-se trazer milhões de imigrantes para manter o Estado funcional. Virão quase todos da Ásia, de África e alguns do Brasil. A previsão de crescimento da economia nos próximos cinco anos é de, como nas últimas três décadas de….um por cento por ano.

Portanto, o que mais tendo a celebrar neste dia é ter sobrevivido esta loucura quase alucinante até agora com a cabeça no lugar e ainda algum sentido de humor. Onde tantos vêem copos meio cheios, eu, menos optimista, tendo a ver copos meio vazios. Hoje tenho 63 anos de idade e dou graças por já não ter que aturar muitos mais anos disto.

E para assinalar aqui esta data, algo surpreendentemente, um amigo moçambicano (de “gema” ou “originário”, como agora se diz lá) enviou-me a semana passada uma ligação a um texto, publicado há quatro anos por Alexandre Reigada, que eu não conhecia e que publicou num sítio que parece ser um movimento político de direita. Por coincidência, ou não, Reigada nasceu em Vila Pery (hoje Chimoio) e parece que esteve lá até lhe acontecer, e aos dele, o que me aconteceu.

Eis o texto, que reproduzo na íntegra em seguida, a que ele deu o título “25 de Abril: uma história negra” e que contém uma interessante versão alternativa ao discurso politicamente revisionista actual.

Otelo Saraiva de Carvalho ao centro, durante os tempos conturbados da “liberdade criada”. Cresceu em Lourenço Marques. Coordenou o golpe militar em Lisboa em 1974. Anos mais tarde lideraria uma guerrilha comunista que matou a tiro e à bomba vários cidadãos portugueses – mas depois foi perdoado por um regime supostamente de leis e nunca cumpriu nenhuma pena. Morreu há pouco tempo, altura em que li que ele teve….duas mulheres, durante décadas. A realidade às vezes desafia a ficção.

(início)

Em 1960, no seguimento da renegociação do acordo da Base das Lajes, a visita de Eisenhower desanuvia as relações entre Portugal e os Estados Unidos da América. Marcello Mathias exigia maiores contrapartidas, conseguiu algumas, mas ficou insatisfeito. Porém, a questão do Ultramar português continuava sem resolução e os EUA assumiram sempre um papel dúbio.

Em meados dessa década surge a oposição “democrática” nas universidades, sobretudo em Lisboa. Incluía maoístas, marxistas-leninistas, trotskistas, hippies ecologistas, geralmente oriundos de famílias abastadas. Do meio empresarial e jurídico emergiu um grupo de liberais com interesses nos negócios e na política. Ambas as facções se posicionaram, ora à Esquerda ora à Direita, no sentido de salvaguardar o seu futuro.

A entrada de jovens tecnocratas na SEDES, para quem o eldorado era a CEE, marcou uma nova fase na contestação ao Estado Novo. O aparecimento da Ala Liberal, dos grupos comunistas e de extrema-esquerda, facilitou o relacionamento destas forças com os diferentes blocos internacionais. A Ala Liberal, oriunda da alta burguesia, formada entre outros por Francisco Sá Carneiro, Magalhães Mota, Mota Amaral e Francisco Pinto Balsemão, defendia um regime parlamentarista de partidos políticos e a adesão à CEE. Não consideravam a defesa do Ultramar como algo importante. Este grupo recebeu fortes apoios de alguns sectores do Estado Novo ligados à tecnocracia, à banca e aos grandes meios monopolistas, assim como aos meios empresariais e firmas jurídicas.

A década de 60 ficou sobretudo marcada pela Guerra do Ultramar. Em 15 de Março de 1961, no norte de Angola deu-se o genocídio de largas centenas de pessoas — brancas, negras, mulatas — por hordas de mercenários vindos do Congo Belga, aliciadas pela UPA, depois FNLA, de Holden Roberto, que era apoiado ostensivamente pela esposa do Presidente Roosevelt e pelo Committee on Africa. Na ONU, Portugal era injuriado por nórdicos e ingleses, e até o representante do Nepal boicotava o nosso país.

O Estado Novo poderia, deveria e estava a ser renovado gradualmente, com índices de crescimento anuais a rondar os 6%, mas o surgimento destas organizações subversivas, a fossilização da Assembleia Nacional, a acção doutrinária clandestina levada a cabo pelos comunistas, a politização radical promovida nos meios académicos e militares e a intromissão estrangeira, precipitaram os acontecimentos.

A partir de 1973, as manobras políticas aceleram-se. Em Abril ocorre o III Congresso da Oposição Democrática, em Aveiro, onde se concretiza um acordo prévio entre socialistas e PCP. Duas semanas mais tarde, com o alto patrocínio do Governo alemão da RFA, é fundado o Partido Socialista, em Bad Munsterfeld (arredores de Bona). No seguimento, ocorre um encontro dos liberais em Lisboa.

Entre 1 e 3 de Junho, realiza-se no Porto o I Congresso dos Combatentes do Ultramar, favorável à defesa do espaço ultramarino “em nome da grandeza e unidade de Portugal”. A frase mobilizadora é: “Não seremos a geração da traição”. Em resposta, 400 oficiais contestatários fazem um abaixo-assinado contra o Congresso e um grupo de oficiais na Guiné envia inclusive um telegrama de desagrado. Por essa altura, é promulgado o Decreto-Lei 353/73 que diminui o tempo do curso de oficiais da Academia Militar e permite a incorporação de milicianos no Quadro Permanente, devido à falta de capitães. Os oficiais da Academia Militar protestam, recebem melhores salários e o decreto é revogado. Mas o protesto continua e, em Dezembro, no seguimento de uma reunião em Óbidos, surge o Movimento dos Capitães.

Uma peça fundamental de toda esta história, e que permite descortinar a real dimensão daquilo que estava em jogo, foi o IV Plano de Fomento para o período de 1974-1979, publicado em 26 de Dezembro de 1973, e que por via do golpe não se implementou. Esse, era o instrumento basilar em matéria de desenvolvimento económico. O que dizia então de tão importante? No capítulo X, alínea b), com o título Energia Nuclear, o Governo estabelecia como prioritária, “a construção, manutenção e condução de reactores nucleares industriais, licenciamento e segurança de centrais nucleares”, prevendo três núcleos em Portugal Continental, na Urgeiriça, Guarda e Nisa, para entrada em funcionamento entre 1976 e 1984. Perante isto, cada um tire as devidas conclusões.

No início de 1974, os generais Kaúlza de Arriaga e Silvino Silvério Marques reúnem-se e concluem que o Presidente do Conselho, Marcello Caetano, já não estaria em condições de liderar o processo da Guerra do Ultramar. O general Spínola foi chamado a participar na mudança, mas afastou-se, regressando porém no dia 25 de Abril.

A NATO, a CIA e a Internacional Socialista comunicavam com o chamado Grupo dos Liberais e Socialistas, enquanto o Partido Comunista era uma marioneta nas mãos da URSS. Não houve nada de português no 25 de Abril: tratou-se de uma acção estrangeira hostil, levada a cabo por forças internas colaboracionistas. Sabemos inclusive que o recém-fundado PS tinha ligações aos Serviços Secretos da RFA e de França. A extrema-esquerda estava divida numa dezena de facções antagónicas, desde o MRPP à LUAR, recebendo apoio de nações tão díspares quanto a Holanda, a Checoslováquia e os países nórdicos. Este era o jogo de forças nas vésperas do golpe. A China e Cuba operavam sobretudo no Ultramar.

Houve jogadas e manobras políticas, no mesmo momento em que as operações militares se desenrolavam. O bluff foi o elemento central dessas operações, pois os golpistas tinham um poder militar muito reduzido. Dentro das Forças Armadas, surgiram várias facções lutando entre si sem qualquer preocupação com a segurança e continuidade histórica de Portugal. A operação foi de tal forma montada que muitos, devido à sua ingenuidade, idealismo ou, em muitos casos, fanatismo, nem se deram conta de que estavam a ser instrumentos de forças antiportuguesas. A actuação psicótica das forças políticas então surgidas lançou o País numa anarquia e numa crise de identidade e sobrevivência que dura desde então.

Nos dias e meses seguintes ao golpe, embarcações de guerra da NATO, porta-aviões norte-americanos, submarinos holandeses, alemães e franceses, aportaram no estuário do Tejo. O aparato parecia o de uma ocupação estrangeira. Na realidade, alguns até já cá estavam antes, a coberto de um exercício dessa mesma NATO. Quando o sistema parlamentarista foi implantado, em final de 1976, levantaram âncora. A infiltração e persuasão dera resultado. Portugal podia começar a ser desmantelado, vendido a retalho, a preço de saldo.

Começou no imediato a lavagem ao cérebro das populações, uma propaganda subversiva, tão ou mais perniciosa do que aquela que pretendia abolir e injectada em grandes doses através dos meios de comunicação social e das escolas.

A “descolonização exemplar”, ou seja, o abandono cobarde e precipitado do Ultramar por parte da nova situação política, conduziu a um traumatismo equivalente ao de Alcácer-Quibir, gerando uma das mais graves agressões à identidade nacional e viciando igualmente as relações entre Portugal e os novos países africanos, situação que se prolonga até à actualidade.

Conclui-se, pois, que o relato oficial do 25 de Abril não trata da verdade dos factos, mas sim da propaganda, doutrinação ideológica e formatação da opinião pública. A versão que consta dos manuais escolares é retorcida e elimina tudo aquilo que é embaraçoso e contradiz a narrativa vigente.

É para nós por demais evidente que Marcello Caetano estava ao corrente das jogadas que se desenrolavam na sombra. O inevitável iria acontecer, o golpe militar estava iminente, faltando então assegurar que o lado vencedor fosse o menos oneroso para o país — o que parece ter sido a sua última tarefa enquanto Presidente do Conselho. Entre a integração no espaço mais próximo dos países da NATO, projecto político defendido pelo general Spínola, e o comunismo dissimulado do Movimento dos Capitães, a escolha era óbvia. Mas Marcello e Spínola não deram conta de que estavam a cair numa armadilha engendrada por poderes sombrios exteriores a Portugal.

Os acontecimentos são estranhos. Na verdade, houve duas tomadas da PIDE, uma pela facção próxima de Spínola e outra pela facção dos capitães. Significa isto que dois golpes ocorriam em simultâneo: a transição para Spínola e o movimento dos capitães. Os elementos da PIDE renderam-se porque pensavam estar a entregar-se às forças de Spínola. Não se deram conta da manobra e caíram na armadilha.

O grande erro de Marcello Caetano foi não ter decretado o recolher obrigatório, o estado de sítio e o estado de emergência. No Largo do Carmo, a massa de populares na rua lançados pelo PCP, MRPP e gente dos futuros sindicatos (UGT e CGTP) impediram as medidas de contragolpe (sobretudo a acção de um helicanhão) no sentido de dispersar as forças revoltosas em redor do quartel aí situado. As forças do MFA, vindas de Estremoz e Santarém, não conhecendo Lisboa, eram guiadas por estudantes universitários ligados a grupos maoístas e da extrema-esquerda.

Cinco mil homens estiveram envolvidos directa ou indirectamente no golpe do 25 de Abril. Muitos não foram membros activos, limitando-se a uma passividade conivente. Todos foram cúmplices do crime de Lesa-Pátria.

Um dos muitos factos curiosos (e pouco explorados) é a participação activa no golpe de pessoas como o tenente de Infantaria Andrade e Silva (parente do Ministro do Exército, general Andrade e Silva, que, sabemos hoje, de acordo com documento de Vasco Gonçalves — actualmente no Centro de Documentação do 25 de Abril — estava ao corrente das intenções do Movimento dos Capitães e nada fez para o impedir), bem como do major de Cavalaria Fernandes Tomás ou do capitão de Infantaria Ferreira do Amaral, ou ainda dos oficiais da família Santos Silva. Todos eles membros de famílias com ligações à Maçonaria, a qual esteve historicamente envolvida na transição de todos os regimes em Portugal, desde o Liberalismo.

Refira-se que o Movimento dos Capitães, depois do sucesso do golpe, mudou a designação, muito convenientemente, para o termo mais genérico de Movimento das Forças Armadas (MFA), fazendo crer enganosamente que as Forças Armadas estiveram envolvidas na nova situação como um todo. Porém, as principais unidades militares do País não se sublevaram, embora algumas tenham optado por uma neutralidade que teve o seu quê de oportunismo, no caso das que ficaram na expectativa de “ver o que dava”. Na verdade, o 25 de Abril não é mais do que uma história de traição. As poucas unidades sublevadas desencadearam um golpe de Estado, que colocou o país na iminência de uma guerra civil. A sociedade foi polarizada até hoje.

O Posto de Comando dos golpistas estava na Pontinha, ou seja, fora da malha urbana de Lisboa, ao tempo, nos arredores. A Rádio Renascença, que era considerada a voz do próprio regime, transmitiu a segunda senha às 0h21m, a canção “Grândola, Vila Morena”, o que significa que houve conivência de alguém da emissora católica. Quem estivesse a ouvir não poderia deixar de estranhar a passagem de um tema tão conotado com a esquerda mais radical. As operações foram desencadeadas de madrugada, na calada da noite.

A Escola Prática de Cavalaria (EPC) de Santarém, com dois esquadrões, foi a principal unidade envolvida nas movimentações militares que se cingiram quase exclusivamente a Lisboa. Tal como no 5 de Outubro, o resto do País soube depois, já não pelo telégrafo, mas desta vez pela televisão. A EPC de Santarém estava encarregue de ocupar o transmissor da Marconi, o Banco de Portugal e o Terreiro do Paço. Duas Companhias de Caçadores 5 foram encarregues de ocupar o Quartel-General da Região Militar de Lisboa e cercar o Rádio Clube Português, que seria o posto transmissor rádio do Movimento.

A Escola de Engenharia e duas companhias de Caçadores ocuparam as duas antenas transmissoras de Porto Alto, para evitar o corte de comunicações. A Escola Prática de Artilharia de Vendas Novas, já ocupada, instalou seis bocas-de-fogo no Cristo-Rei dirigidas à capital. A Força Aérea não agiu, manteve-se “neutral” tal como tinha prometido ao Movimento. A Escola Prática de Administração Militar ocupou a RTP e forças da Carregueira ocuparam a Emissora Nacional. A Escola Prática de Infantaria de Mafra ocupou o Aeroporto de Lisboa com duas companhias. Da Figueira da Foz, veio uma unidade que chegou durante a tarde a Lisboa. De Estremoz saiu um esquadrão que participou na tomada do Quartel do Carmo. Enquanto isso, os Lanceiros e alguns Comandos às ordens de Jaime Neves (não representativos desta força, pois o grosso dos Comandos estava no Ultramar e jamais teria participado na traição perpetrada por este seu oficial) ocupavam o quartel da Penha de França, sede da Legião Portuguesa.

No Porto, a acção passaria pela ocupação do CIAAC e do Quartel-General, com apoio de uma companhia de Comandos de Lamego para servir de reforço. Em Viana do Castelo, duas companhias haviam-se comprometido com o Movimento. Muito pouco para uma revolução que se dizia de cariz nacional. No resto do País, exceptuando a ocupação de certas unidades antagónicas, nada se passou.

O ministro do Exército, Andrade e Silva, estava no Ministério do Terreiro do Paço às três da manhã. Não tomou nenhuma medida efectiva de resposta. O ministro da Defesa, Silva e Cunha, telefonou a essa hora para saber da situação. Foi informado pelo ministro do Exército de que não havia qualquer problema em qualquer unidade, estava tudo tranquilo, não se preocupasse, não havia alteração da situação. Ou seja, Andrade e Silva não sabia o que se passava, ou (mais provável) mentiu para encobrir o golpe e tranquilizar aqueles que poderiam ter reagido para evitar o seu desenlace. Se deveras foi conivente, tal significa alta traição. A verdade é que estava no gabinete a uma hora tão tardia quando iria partir para o Alentejo às 7 horas da manhã, estando fora o dia todo. Lembramos ainda que os telefones do Ministério do Exército estavam sob escuta dos golpistas.

O jornalista Joaquim Furtado estava de serviço nessa madrugada, no Rádio Clube Português, o primeiro alvo a ser tomado porque tinha um gerador e continuaria a emitir em caso de corte da luz. Foi este jornalista quem leu o comunicado anunciando um mero movimento de capitães, como Movimento das Forças Armadas, o que, como já referimos, indiciava falsamente tratar-se de uma sublevação geral. De seguida, tocou o Hino Nacional. Para quem ouvia no resto do país, pareceria tratar-se de um facto consumado. De seguida, a Emissora Nacional e a RTP, ocupadas sem incidentes nem resistência, foram também essenciais para o controlo da informação e contra-informação, se necessário fosse, com a difusão de notícias falsas. A sua acção foi essencial para o sucesso do golpe.

Na verdade, nas primeiras horas só ocuparam os objectivos civis, que no entanto foram vitais. A PIDE informou que havia tropas de Santarém na rua, a coluna de Salgueiro Maia, mandando somente entrar de prevenção. A única reacção foi primeiro a de um esquadrão do Regimento de Cavalaria 7 que, enviado para interceptar a coluna de Salgueiro Maia, dirigiu-se para o Terreiro do Paço. As tropas de Santarém tinham chegado a esse local às 6 horas da manhã. Salgueiro Maia enquadrou o alferes que já estava envolvido no golpe. Ou seja, inadvertidamente, mandaram para a defesa do Terreiro do Paço e dos ministérios uma unidade que estava do lado dos golpistas.

Chegou depois um segundo esquadrão que, estranhamente, também se juntou às forças de Salgueiro Maia. A estratégia de engodo foi a seguinte: diziam às unidades leais que vinham chegando para reagir ao golpe que também estavam ali para proteger os Ministérios e assim as foram enganando e anulando os contra-golpes. As forças militarizadas da GNR que iam também elas chegando ao Terreiro do Paço, ou se renderam ou afastaram-se, sem intervir. A PSP desapareceu de cena. Nesse momento, surge no Tejo a Fragata Gago Coutinho, leal ao Estado Novo, cuja tripulação acabou por se amotinar, possivelmente ao saber que estava na mira das peças de artilharia provenientes de Vendas Novas, já aqui referidas, que a essa hora se encontravam junto ao monumento do Cristo-Rei.

Todas as unidades que vieram para resistir ao golpe e contra-atacar foram enganadas, dizendo-se-lhes que todas as Forças Armadas, inclusive a GNR, estavam envolvidas. Os revoltosos interceptavam comunicações das forças leais, do comandante da Região Militar de Lisboa, a partir do posto de comando, e davam ordens trocadas, desarticulando assim a reacção. Aos militares de patente mais elevada, nas suas comunicações via rádio, afirmavam inclusive que os generais Spínola e Costa Gomes também estavam metidos no golpe, quando haviam tido o cuidado de não se comprometer. Diziam que toda a tropa estava sublevada e incitavam-nos a passar para o seu lado. Tudo na base da batota com que jogavam o destino de Portugal.

Simultaneamente, começava em Lisboa a acção subversiva dos grupos comunistas de várias tendências, que colocaram os seus militantes e simpatizantes nas ruas. Isso inibiu muito uma resposta em força das tropas leais. Seja como for, houve muito jogo duplo e atitudes dúbias.

Deu-se então o episódio do tenente Alfredo Assunção, recebido com um par de estalos do brigadeiro Junqueira dos Reis, que se recusou a conferenciar com um oficial de baixa patente revoltoso. Também o major Pato Anselmo, comandando uma força do Regimento de Cavalaria 7, na rua da Ribeira das Naus, recusou conferenciar com o alferes golpista Maia de Loureiro. Mesmo após várias tentativas de aliciamento, o major continuava sem se render nem passar para o outro lado. Do lado dos golpistas, mandaram então um civil, armado, Brito e Cunha, ex-comandante na Guiné, às ordens do tenente-coronel Correia de Campos, que avançou dando a entender que estava desarmado e depois sacou a arma e ameaçou matá-lo. Só assim (contra as regras militares, pois não se parlamenta armado) o major Pato Anselmo acabou por ser preso.

Silva Pais, director da PIDE informou Marcello Caetano com detalhe sobre a situação. Aconselhou-o a ir para o Quartel do Carmo, o comando central da GNR. Sabemos hoje que Marcello Caetano foi abandonado por todos e traído por muitos. Ainda não se rendera e já havia a circular em Lisboa jornais vitoriando o golpe. A meio da tarde, o general Spínola foi então mandatado pelos Capitães para receber a rendição de Marcello Caetano, que entregou o poder ao general para que não caísse nas ruas. Saiu pelo portão central do Quartel do Carmo dentro de uma chaimite, seguiu para a Ilha da Madeira e depois para o exílio no Rio de Janeiro, onde faleceu. Não voltaria a pisar solo português.

O general Spínola, em 1975, lançou um sério aviso: “o que estes senhores estão a fazer é a levar o Estado à bancarrota, a praticar a política da terra queimada. Estes senhores não são portugueses. São traidores à Pátria”. Tinha razão, como o comprovam três bancarrotas e Portugal queimado em incêndios catastróficos que arrasaram inclusive o Pinhal de Leiria, símbolo da nossa História.

Juntamente com todos estes dados, outras reflexões se impõem, uma vez que também elas contribuem para provar que o 25 de Abril não só começou por ser uma mentira manhosa, como ainda hoje continua a não passar disso mesmo. Vamos aos factos:

a) A “revolução dos cravos” que, pretensamente, se fez contra a exploração capitalista, acabou por abrir as portas a que hoje vigore um capitalismo ainda mais agressivo e um liberalismo ainda mais degradante.

b) A propaganda oficial diz que o golpe se fez para acabar com a intromissão estrangeira nos assuntos nacionais, e hoje até mesmo a quota de pesca da sardinha e o calibre da fruta são decididos em Bruxelas.

c) Ainda hoje há quem acredite na mentira sobre a qual assentou a espoliação de uma parte substancial da população portuguesa radicada no Ultramar, de que Portugal era o último país europeu com colónias. Ora, a França ainda hoje não larga mão nem sequer de Maiote (território insular situado entre Moçambique e Madagáscar), colónia paupérrima que constitui o mais carenciado dos seus departamentos. Nem de Maiote nem de muitas outras colónias, tal como de resto acontece com o Reino Unido, cujos territórios ultramarinos não poucas vezes servem de paraísos fiscais, bases militares ou entrepostos para tráficos e esquemas de todo o tipo.

d) Desde 1986, ano da anexação de Portugal pela CEE, esta III República recebeu um total de apoios comunitários que ronda os 200 mil milhões de euros (segundo estatísticas oficiais). Paralelamente, nesse espaço de tempo, a dívida pública ascendeu a 250 mil milhões e a dívida privada a 500 mil milhões. Os maiores credores são as bancas alemã e francesa. O país que recebe maiores receitas fiscais das nossas empresas é a Holanda.

e) Aquando da recente visita a Angola do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, este homenageou Agostinho Neto, mas não visitou o cemitério de Santana, em Luanda, que se encontra num estado lastimoso e onde jazem militares portugueses caídos em defesa da Pátria, na Guerra do Ultramar. Sabemos pois, através deste e de outros episódios igualmente sintomáticos, com que espécie de “patriotismo” e “amor a Portugal” podemos contar da parte da classe política filha da revolução.

(fim)

16/04/2023

PUBLICIDADE DA RENAMO, ANOS 80

Filed under: Publicidade da Renamo, 1980s — ABM @ 3:25 pm

Imagens retocadas, grato a JC.

Até para uma alma distraída e distante como a minha na altura, era previsível que a ditadura da Frelimo e a sua postura de à guerra colonial seguir-se sem interrupção uma guerra contra os regimes da África do Sul e a Rodésia ia acabar muito mal. O conflito que se seguiu durou quase o dobro do tempo que durou a guerrilha contra o regime colonial português e fez esta parecer uma brincadeira de crianças em termos da destruição e mortes causadas. Nunca percebi, quando parecia que já só faltava à Renamo marchar na Julius Nyerere e bombardear meia dúzia de sítios na Cidade, que a sua liderança aceitou parar o conflito e entregar tudo de bandeja – outra vez – à Frelimo. Nos trinta anos então volvidos, a Frelimo tornou-se perita em gerir eleições, doadores e a máquina estatal, manteve-se no poder a quase todos os níveis e a Renamo foi neutralizada. Neste momento até paira a sombra de a Frelimo mudar a constituição para, entre outras preciosidades, manter Nyusi no poder por mais que os dois mandatos previstos no actual texto constitucional.

1 de 4. Tal como a Frelimo, a Renamo promovia a imagem e o papel das mulheres no conflito, aqui protagonizado como uma “segunda guerra de libertação nacional”.
2 de 4. Cartaz, em língua francesa, referindo o segundo aniversário da morte de André Matsangaísse, um líder fundacional da Renamo.
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4 de 4. Este panfleto é de 1981, quando Samora Machel era acossado por vários sectores, incluindo a Amnistia Internacional, a propósito da situação nos chamados Campos de Reeducação da Frelimo. Na altura lançou a “Ofensiva” a que o texto alude, transferindo para “infiltrados” a responsabilidade sobre o que se passava nesses campos.

14/04/2023

ANTÓNIO PRISTA E MAPUTO EM 2023

Filed under: António Prista e Maputo em 2023 — ABM @ 10:31 pm

Se Lourenço Marques era Uma cidade luzente na colina, mesmo num contexto colonial e apesar dos imensos estragos da explosão de construção nas duas décadas antes de 1975, a verdade é que, quase cinquenta anos volvidos de gestão nativa, num país extenso, muito subdesenvolvido e muito pobre, o que é Maputo em 2023? A peça sobre o assunto, publicada n’O País de hoje, dá algumas pistas, retratando uma explosão continuada e descontrolada no crescimento urbano, com alguns requintes de exuberância milionária, com consequências algumas previsíveis, outras não tanto, em que subjacente está um metro quadrado urbano que vale milhões. António Prista, um arquitecto local, aludiu a algumas situações, aqui retratadas. Um dos meus tópicos favoritos e pouco mencionado é o saneamento e a estrutura eléctrica e de água potável, que não foram mencionados. Terão falado na infra-estrutura de transportes, mas a peça não alude à publicitação de um novo projecto de mobilidade urbana – Move Maputo – que deve estar em condições de arrancar agora. A ver vai-se.

Vista parcial da Avenida Dr. Julius Nyerere (anteriormente, António Ennes) em Maputo, antes da mais recente ronda de edificação de prédios para ricos.

Na peça publicada hoje no excelente diário O País, o arquitecto António Prista disse duas coisas:

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08/04/2023

O RELATÓRIO SECRETO SOBRE AS PERSONALIDADES DA FRELIMO EM MOÇAMBIQUE, 15 DE NOVEMBRO DE 1978

Presumo que a proveniência deste documento seja de alguém ( ou “alguéns”) dos serviços portugueses e para consumo interno. Mas não sei. Julius Nyerere, que não era da Frelimo, foi incluído aqui. O texto faz leitura interessante. Descreve Samora Machel, Julius Nyerere, Sebastião Mabote, Alberto Chipande, Jorge Rebelo, Óscar Monteiro, Mário Machungo, Alberto Cassimo, Joaquim Chissano e Rui Baltazar. menciona Gruveta de passagem. Data de final de 1978, três anos depois da independência e subsequente tomada do poder absoluto por estas pessoas (excepto o Julius que andava a fazer das suas no seu país).

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05/04/2023

GUERRILHEIRO DA FRELIMO, 1974

Filed under: Guerrilheiro da Frelimo 1974 — ABM @ 9:10 pm

Imagem retocada e colorida, autor desconhecido.

Jovem guerrilheiro da Frente de Libertação de Moçambique, algures em Moçambique, cerca de 1974. Quando a Frelimo se dignou parar a guerra, em Setembro de 1974 – 4 meses e meio depois do golpe de Estado que derrubou o então regime português – estavam a cerca de 1200 kms de Lourenço Marques. Especialistas no assunto referem que a guerra basicamente estava perdida mas a Frelimo receava que os brancos poderiam criar um regime minoritário racista. Mas quase todos os brancos fizeram as malas e foram-se embora e a tropa entregou tudo à Frelimo, de bandeja. Ficaram o Mia e mais um punhado de bravos que achavam que as coisas iriam melhorar. A Frelimo entrou a matar, instaurou uma ditadura e basicamente demoliu a economia e considerou prioritário promover a guerrilha contra a Rodésia e a África do Sul. A luta continuaria por quase mais vinte anos e não acabou: foi apenas interrompida.

02/04/2023

A DÍVIDA DE MOÇAMBIQUE À CHINA, 2021

Filed under: Divida de Moç à China 2021 — ABM @ 10:34 pm

O mapa ilustra, por ordem decrescente, os países com dívidas mais elevadas em termos da percentagem do seu Produto Interno Bruto (PIB). Em que Angola e Moçambique se destacam. Segundo um artigo publicado em 2021 pelo Hong Kong Trade Development Council, as dívidas de Moçambique reflectem gastos como a ponte Maputo‑Catembe (US$ 686 milhões), a reabilitação de 287 kms da Estrada Nacional entre a Beira e Machipanda (US$ 416 milhões) e os74 km da Estrada Circular de Maputo (US$ 300 milhões). A estas despesas podem-se juntar o Aeroporto Internacional do Bilene, a reabilitação do Aeroporto de Maputo e o Aeroporto de Nacala, este último penso que uma dívida ao Brasil. Nestas circunstâncias, torna-se difícil dizer não ao colosso chinês.

OS TRÊS MACACOS SÁBIOS, OBRA DE CHARLES VAN ONSELEN, AGORA PUBLICADA

Filed under: Charles van Onselen e Os 3 Macaos Sábios — ABM @ 9:54 pm

Imagens retocadas.

O académico Charles van Onselen acabou de publicar em Pretória uma obra em três volumes sobre as relações entre a África do Sul e Moçambique colonial nos séculos XIX e XX, que, não tendo ainda lido, promete ser interessante para quem estuda o tópico e a julgar pela qualidade de obras anteriores por este autor.

Tanto há para esmiuçar em relação a este tópico, que eu conheço parcialmente através principalmente, dos arquivos e escritos portugueses, mas menos a partir dos arquivos sul-africanos, que apesar de, segundo o Professor van Onselen, terem sido algo sanitizados durante e depois da sua compilação, ainda permitem aferir algumas verdades. Por outro lado, van Onselen parece que não conhece a língua portuguesa, e queixou-se numa entrevista que os arquivos em Moçambique são muito ricos mas parece que estão amontoados e aos Deus-dará. O que é lamentável mas perfeitamente expectável dadas as prioridades do regime desde o dia em que correram com os portugueses da antiga colónia. Portanto a descoberta de uma verdade mais cabal e objectiva é uma corrida contra o tempo e a degradação dos arquivos.

E essa verdade interessa? penso que sim. Mais do que tudo, um país sem história com H é um sítio.

Nesse sentido, este contributo poderá ajudar a esclarecer aspectos do que aconteceu e que viria a ter impacto no desenvolvimento dos dois vizinhos.

A obra de Charles van Onselen, agora publicada, sobre a relação tempestuosa entre a África do Sul e Moçambique ao longo de um século.
Charles van Onselen, um académico sul-africano baseado em Pretória e com obra considerável sobre a história da África do Sul, que reflecte muitos aspectos das relações com Moçambique colonial, agora aprofundados com a publicação de The Three Wise Monkeys.

28/03/2023

BOEING 707 DAS LINHAS AÉREAS DE MOÇAMBIQUE, ANOS 70

Filed under: Boeing 707 das LAM — ABM @ 1:43 pm

Imagem retocada.

Após 1975 e até 1980, a DETA-LAM funcionou mais ou menos como anteriormente. Em 1980 houve uma reestruturação e foi criada a LAM, EP. Nesse período, a companhia usou um conjunto de aviões entre os quais este, um já então velho e algo obsoleto Boeing 707-321,C9-ARF C/N 17593 , que permitia efectuar voos de longo curso e que, a julgar pelas turbinas, devia acordar os mortos com o barulho na descolagem.

TUDO VAI MELHOR COM COCA-COLA

Imagem retocada e colorida.

Um Samora Machel informal bebe uma Coca-Cola ao lado de um Robert Mugabe sempre anal-retentivo, numa cerimónia, anos 80. Sempre considerei o visível ascendente de Samora sobre Mugabe mistificante.

18/03/2023

UMA DECLARAÇÃO DE EDUARDO MONDLANE, MARÇO DE 1968

Filed under: Uncategorized — ABM @ 3:10 pm

Image retocada.

Se o Exmo. Leitor é como eu era até há uma semana, nunca ouviu a voz de Eduardo Mondlane, o primeiro presidente da Frelimo.

Se premir AQUI, ouvirá uma curta declaração de Mondlane, feita no Africa Centre em Londres nos primeiros dias de Março de 1968 e gravada pela British Pathé.

Um ano antes de ser morto, supostamente, por um esquema da PIDE que o chefe da segurança da Frelimo, Joaquim Chissano, não conseguiu precaver.

Como é que nunca ocorreu a Salazar convidar Mondlane para um chá e bolos em São Bento é um relativo mistério para mim, especialmente se se tiver em conta as alternativas. As circunstâncias da sua morte, logo a seguir à nomeação de Marcelo Caetano por Américo Tomás para suceder ao ditador, incapacitado por um AVC, são outro mistério. Mas 1968 foi um ano estranho. Nos EUA, assassinaram Bob Kennedy, o Dr. Martin Luther King. Nixon foi eleito e a Guerra Fria recrudesceu, com impacto directo em África, especialmente Moçambique e na Guiné, pois, ao contrário de Angola, estes territórios tinham vizinhos “amigos” da URSS e da China para onde era fácil enviar cargueiros cheios de armamento e assim ir pacificamente alimentando as guerrilhas. E o Norte de Moçambique, como fora antes, fora então, e continua a ser hoje, era praticamente impossível de policiar.

Mondlane prepara-se para gravar uma declaração no Africa Centre em Londres, Março de 1968.

AUTO-BIOGRAFIA DE URIA SIMANGO, 1930-2023

Filed under: Uria Simango auto-biografia — ABM @ 2:07 pm

Imagens retocadas.

O dia 15 de Março de 2023 assinalou o 93º aniversário do nascimento de Uria Timóteo Simango, um activista pela independência de Moçambique e que durante alguns anos foi o segundo em comando da Frelimo, então liderada pelo Dr. Eduardo Mondlane, até ao assassinato deste em Dar-es-Salaam em Fevereiro de 1969, altura em que ocorreu uma espécie de golpe pela ala mais radical comunista e militarista, liderada por Samora Machel, com o apoio de Chissano. Marcelino dos Santos e outros.

Este grupo assumiria o controlo total da Frelimo e de Moçambique, que se manteria inalterado durante mais que cinquenta anos, até hoje.

Deve ter sido por volta da altura da reviravolta pós-Mondlane que Simango dactilografou e corrigiu o texto em baixo, que encontrei a semana passada à venda num sítio de documentos raros.

Rapidamente, Simango seria declarado proscrito e literalmente fugiu pela sua vida. Seria “apanhado” pela liderança da Frelimo aquando da retirada portuguesa a seguir ao golpe militar do 25 de Abril de 1974 e subsequente entrega directa do poder em 20 de Setembro de 1974, altura em que tentava constituir um partido político de oposição.

Notoriamente forçado a fazer um acto público de contrição e de confissão dos seus “pecados políticos” no principal campo de treino da Frelimo na Tanzânia em 11 de Maio de 1975, Uria seria mantido preso pela Frelimo em parte incerta, juntamente com outros nacionalistas desafectos em relação à Frelimo, sendo todos mandados matar sumariamente pela liderança da Frelimo no final da década de 1970. Entre estes encontravam-se (neste caso inexplicavelmente) a sua mulher, Celina, e também Joana Simeão, Adelino Gwambe, Paulo Gumane e Mateus Gwengere.

Muitos anos mais tarde, os seus dois filhos com Celina participaram na política, mantendo-se ainda activo o seu filho mais novo, Lutero.

Uria Simango, cerca de 1970.
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28/09/2022

A SÉ CATEDRAL DE LOURENÇO MARQUES, 1944

Filed under: A Sé Catedral de Lourenço Marques — ABM @ 6:28 pm

A primeira imagem foi retocada e colorida, estava nos arquivos pessoais do então Governador-Geral de Moçambique, José Tristão de Bettencourt (açoriano), copiada dos arquivos da Fundação Mário Soares.

A Sé Catedral de Lourenço Marques, acabadinha de inaugurar pelo Carddeal Cerejeira em Agosto de 1944 que ali foi de barco em plena II Guerra Mundial, arriscando o pescoço. Sem os prédios à volta, especialmente esse horror urbanístico que é o Prédio Funchal, era imponente. Foi magistralmente desenhada por um obscuro engenheiro dos Caminhos de Ferro que é…. avô do actual ministro da Cultura português.
A entrada da Sé Catedral, vista do interior. A foto foi tirada por Roland Grebbs há cerca de dez anos.
A Catedral em construção, foto do Edgar Marques via o Ernesto Silva, retocada.

09/09/2022

ISABEL II, 1926-2022

Filed under: Isabel II 1926-2022 — ABM @ 4:26 pm

Ontem faleceu, com 96 anos de idade, Isabel II, a soberana do Reino Unido. As notícias não falam de outra coisa, ao ponto da saturação.

A vida tem destas coisas: sem nunca ter feito por isso, a rainha dos britânicos, que nasceu no mesmo ano que a minha Mãe, passou-me à frente do nariz por três vezes.

As duas primeiras vezes aconteceram em Montrèál, no Canada, durante os Jogos Olímpicos em 1976, era eu, algo equivocadamente, um nadador com 16 anos de idade, ali a representar Portugal. Na cerimónia de abertura dos Jogos, fui colocado mesmo em frente a Isabel II, que usava um vestido num cor de rosa berrante, a única em todo o estádio com essa cor. Estava ali na qualidade de chefe de Estado do Canadá. Uns dias depois, apareceu “de surpresa” na piscina olímpica, mesmo ao lado de mim, precisamente no momento em que se realizava uma prova dos 100 metros bruços, em que, se me recordo, ganhou um nadador…britânico. Logo a seguir pirou-se.

Isabel II

A terceira vez foi um pouco mais surreal. Estava eu a viver em Maputo no final de 1999 (com DIRE) a ver se ajudava a endireitar o BCM quando um dia fui-me encontrar com alguém no Hotel Polana. Entrei na zona da recepção do hotel e enquanto esperava, passa por mim, vestida formalmente e com tiara etc e tal, Sua Majestade Britânica, seguida pelo marido, o Duque de Edimburgo, também vestido de rigor, em que ele ralhava com um desgraçado de um assessor deles. Para além do pessoal da recepção, só lá estávamos nós. Do que percebi, tinham uma audiência com Joaquim Chissano, e o presidente de Moçambique fazia-os esperar. Andaram os dois ali às voltas um bocado, até que apareceu um carro que finalmente os levou, o Duque sempre a refilar.

Possivelmente, vicissitudes relacionadas com a relativamente anacrónica entrada de Moçambique na Commonwealth, a CPLP de Isabel II.

Não sou partidário de regimes monárquicos mas não me perturba nada que outros os advoguem. No caso de Isabel II, foram setenta anos seguidos. Memorável, um pouco novela brasileira e certamente irrepetível.

48 ANOS DESDE 1974

Imagem retocada. O texto, acérbico, publicado com vénia esta semana, é de Fátima Mimbire, jornalista, activista e pesquisadora do Centro de Integridade Pública em Maputo. Faz um ponto da situação dos 48 anos do pós-regime colonial.

7 de Setembro de 1974, dia em que, ao final da tarde, foi anunciada em Lusaka a entrega directa do governo, por parte dos militares golpistas de Portugal, potência colonial demissionária, à liderança da Frente de Libertação de Moçambique, a efectivar-se dali a 13 dias. O chamado período de Transição até à data seguinte do aniversário da Frelimo foi um mero formalismo. A liderança da Frelimo governa ininterruptamente Moçambique desde o dia 20 de Setembro de 1974 até hoje. Há 48 anos e sem qualquer perspectiva de alternância. O regime é eufemisticamente rotulado de “democracia musculada”.

A VITÓRIA DOS PORCOS, POR FÁTIMA MIMBIRE

A “vitória” dos porcos!

Neste dia 7 de Setembro de 2022, que celebramos a vitória que veio a concretizar-se no dia 25 de Junho de 1975, com a independência, só consigo pensar na fábula “O Triunfo dos Porcos”, de George Orwell.

O livro de Orwell conta que os animais de uma quinta conduzem uma revolução motivada pelas más condições de vida que lhes eram proporcionadas pelo proprietário da quinta. Ao assumirem o controlo da quinta, os animais estabelecem e afixam publicamente as regras do novo regime que designam de Animalismo. Os sete mandamentos do Animalismo estabelecem que aquele que andasse em duas pernas era inimigo, o que andasse em quatro patas ou asas era amigo, nenhum animal deveria vestir roupas, dormir numa cama, beber álcool, matar outro animal e, por fim, que todos os animais eram iguais.

Com o passar do tempo, e ao invés das aspirações que haviam fundado, todos os animais trabalhavam mais e comiam menos comparativamente com o período anterior à revolução. Todos à excepção dos porcos, que haviam assumido o controlo da quinta – passando a andar em duas patas, vestir roupas, dormir em camas, beber whisky, fumar charutos cubanos e matar os animais que contestassem a sua liderança, justificando as suas condutas alterando os mandamentos sempre que eram confrontados com o facto de estarem a incumprir os mesmos. No final, os sete princípios do Animalismo são substituídos por um único mandamento: “todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que outros”.

A forma de agir da elite dirigista Moçambicana é semelhante à dos “porcos triunfantes”. Venderam ao povo o dinho da liberdade, segurança e bem estar, mas no fim acabaram oferecendo a miséria, o divisionismo baseado na cor partidária, exclusão social e perseguição de todos os que têm opinião contrária ao establishment. Subverteram tudo para que tinham lutado e se tornaram piores que aqueles contra quem lutaram. Deixaram-se corromper pelo poder e pelo gostoso e nutritivo leite que jorra das tetas do Estado. O povo, aquele a quem diziam querer libertar, tornou-se o seu maior inimigo, de tal modo que tudo o que querem fazer é tirar-lhe todos os direitos para que volte a ser escravo ao serviço dessa elite.

Estes 48 anos têm mais sabor a derrota.

Quando é que virá a verdadeira vitória?

15/09/2021

A FACTURA

Filed under: A factura, Marcelo Mosse — ABM @ 12:18 am

Não sigo em detalhe todas as tricas que grassam por África, mas já percebi que Paul Kagame, o actual President for Life do Ruanda, gere um regime musculado e tolera pouco a dissidência.

Há-de haver razões bem fundamentadas porque é que ele se predispôs a fazer a Filipe Nyusi o considerável favor de, ao estilo do defunto Mousinho com os Namarrais nos tempos da Afirmação da Soberania, ir tentar matar gente para Cabo Delgado e assim fazer a Maputo o frete insalubre de eliminar o foco da rebelião na zona, que assim, se não de outra qualquer forma, parece descobrir fazer afinal (e ainda) parte de Moçambique.

Razões essas que eu, claro, desconheço, pois só leio jornais e os jornais, especialmente os de Maputo, têm sido um tanto quanto omissos quanto à questão.

No que parece haver menos dúvidas é a forma como Paul Kagame encara a sua oposição.

Exceptuando a generosa meia dúzia no parlamento que não oferece oposição nem alternativa, a oposição em Moçambique, soi disant, apesar de uma constituição que diz que permite a existência de partidos políticos, desde os chamados Acordos de Paz de 1992, nunca realmente se desarmou. Não confia na Frelimo, a quem chama “cães” (e vice-versa). Andam nisso há décadas, longe de Maputo, e-mail para cá, e-mail para lá. Nem eles vêm a Maputo nem Maputo vai lá. Moçambique felizmente é um bocadinho maior que o Ruanda – e a coisa vai sendo empurrada com a barriga sem ninguém ficar particularmente perturbado.

Em Maputo, como não há insurgentes armados a colocar bombas em carros na Julius Nyerere, a coisa cinge-se a matar -se ou a estropiar-se o ocasional jornalista, o académico com ideias peregrinas ou um qualquer que disse ou não disse alguma coisa. A mensagem que passa para quem tem razão para se preocupar é que, se falas muito levas. As pessoas ficam com medo e calam-se e isso basta. A ordem pública vigente permanece assim vigente, situação que não é inteiramente dispiciente para o 180º país mais pobre e um dos mais corruptos no mundo, dirigido pelo mesmo grupo de pessoas no poder continuamente há mais tempo que os 42 anos do Professor Salazar, o tal que dizia que “Moçambique é nossa”. Ainda por cima eles, que já foram nacionalistas, depois comunistas, e agora captalistas da Nova Vaga, andam correntemente ocupados a tentar descalçar a bota de mais um simples esquema de roubo ao mais alto nível, este de pelo menos dois mil milhões que dólares, uma quantia colossal e que ninguém ainda sabe para onde é que foi, se está em contas no Dubai ou em contas em Abu Dabhi (tenho plena fé que vai tudo acabar bem e que nenhum dos acusados na verdade sabia de nada ou tinha quaisquer culpas no cartório).

No Ruanda não é bem assim. O país é pequeno (literalmente do tamanho de entre Marracuene e a Ponta do Ouro), 13 milhões de habitantes, 95 por cento cristão, gerido a pulso pelo Senhor Kagame, não há lá corrupção nas repartições nem as dezenas de ONG’s que compõem a importante Indústria da Calamidade em Maputo. Têm um exército armado até aos dentes por causa dos vizinhos, que não se sabe bem quem é que paga, e parece que lá mata-se por tudo e por nada.

Parece ainda que a taxa de sinistralidade dos oponentes do Sr. Paul Kagame é muito elevada.

Então, por uma questão de mera sobrevivência, os cidadãos ruandeses dissidentes do regime fogem. Aparenta que há refugiados políticos do Ruanda um pouco por toda a parte e consta que o Senhor Kagame, que se acreditarem foi re-eleito na última vez com uns estonteantes 98.47% dos votos a favor, de vez em quando manda esquadrões da morte para os eliminar fisicamente, preferencialmente com dois tiros na cabeça. Também os há em Moçambique, e presumo que pensariam estes, por estarem longe, estarem mais seguros. Até formaram uma Associação.

Mas afinal nem por isso. Li – e isto antes do anúncio da expedição punitiva ruandesa a Cabo Delgado – que um cidadão ruandês refugiado em Moçambique fora “suicidado” na Inhaca. Desapareceu. E acho que houve mais um caso.

Surgiu entretanto a questão de serem os militares do Ruanda que foram para Cabo Delgado fazer o que os moçambicanos não fizeram em dois, três anos. É um grande favor.

Um que dificilmente tem preço.

Paul Kagame é, então, o novo melhor amigo de Moçambique.

Que tem para com ele uma dívida de sangue.

E os Ruandeses dizem que fazem aquilo tudo da bondade dos seus corações.

Entretanto, hoje, o jornal do Marcelo, que leio quase sempre e que raramente falha nestas coisas, publicou o seguinte:

Uma reportagem posterior da Deustche Welle deu mais alguns detalhes. O assassinato na Matola não foi coisa simples de um gajo com uma pistola. Não. Eram três carros cheios de gente numa perseguição e o cidadão ruandês a quem Moçambique deu refúgio levou seis tiros na cabeça.

Mas ninguém realmente viu as caras e as matrículas.

São “desconhecidos”.

Em Kigali, o Senhor Kagame deve ter recebido as notícias.

Sem surpresa.

25/07/2021

OTELO SARAIVA DE CARVALHO, PORTUGAL E MOÇAMBIQUE

Não se devem misturar as coisas: Otelo Saraiva de Carvalho, o militar reformado que faleceu esta madrugada de 25 de Julho de 2021 com 84 anos de idade, era um comunista radical. Tornou-se incontornável por ser o coordenador operacional do golpe militar que derrubou a ditadura portuguesa em 25 de Abril de 1974, usou o seu controlo das armas logo a seguir para puxar Portugal para o limiar do comunismo e, não sucedendo, tentou mais tarde derrubar o regime socialista e mais ou menos democrático por meio de uma conspiração terrorista criminosa em que os seus correligionários mataram cidadãos que achavam não serem do seu agrado. Identificada a contenda pelas então autoridades portuguesas, sucedeu o quase impensável num regime democrático e num estado de direito: o parlamento português basicamente perdoou-lhes os crimes e fingiu que nada tinha acontecido. Otelo passou o resto da sua vida entre tertúlias e palestras, reclamando raivoso que não tinha feito o seu golpe de 1975 para este regime de socialismo cha-cha-cha que para ele era uma traição ao “povo”.

António de Spinola falando na televisão portuguesa em 1974. Ao lado o General Francisco Costa Gomes, um simpatizante comunista, que o sucederia (30 de Setembro de 1974-13 de Julho de 1976). Então por detrás de tudo, estava Otelo.

Otelo nasceu e cresceu em Lourenço Marques. O seu percurso na Cidade, relativamente inocente por comparação com a sua versão pós-1975, foi o de um jovem branco local, entretido com as míudas, a escola, o teatro e as passeatas.

A sua ligação a Moçambique e o que eu considero um erro curcial e inexcusável por parte do então aclamado presidente relutantemente aclamado pelos militares, o General António de Spínola (15 de Maio-30 de Setembro de 1974) ajudaria a ditar o destino subsequente da colónia, embrulhada numa guerrilha pela sua independência desde Setembro de 1964.

O episódio está bem documentado: enviado Mário Soares à Zâmbia (na qualidade de ministro dos Negócios Estrangeiros) para estabelecer ligações formais entre o novo regime e a Frente de Libertação, que se recusava a estabelecer uma trégua e de facto estava empenhada em escalar militarmente o conflito, ocorreu a Spínola, que não confiava em Soares, enviar Otelo para “vigiar” Soares. Para a missão, Otelo nem sequer tinha estatuto formal propriamente dito. No encontro, para encanto da liderança moçambicana, em vez de tentar negociar uma trégua e um plano de transição faseado para uma independência, para gáudio de Soares, Otelo interrompe-o e diz que em vez de se estar ali a perder tempo, o que tinha que ser feito era simplesmente entregar a governação da colónia imediatamente e incondicionalmente à Frente de Libertação. A liderança da Frente de Libertação ficou encantada e radicalizada. Nas semanas que se seguiram, não haveria trégua militar até se proceder à entrega do poder colonial aos representantes da Frente, mediante um apressado acordo assinado semanas mais tarde, no dia 7 de Setembro de 1974, e numa cerimónia formal no Palácio da Ponta Vermelha no dia 20 de Setembro de 1974.

Assim, de um dia para o outro, quem vivia na colónia passou da última ditadura colonial fascista europeia para uma ditadura radical comunista africana, apoiada relutantemente pelas ditaduras comunistas europeias, soviética e chinesa. Jovem, inexperiente e embriagada pelo súbito acesso ao poder, a liderança embarcou num experimento “marxista científico” que devolveu a sua economia para a idade da pedra e criou os anti-corpos que alimentaram uma longa e mortífera guerra civil. Quase cinquenta anos depois, e após demasiados inenarráveis episódios, as mesmas pessoas que herdaram o poder de Otelo, constituídas numa elite quase impune e milionária, ainda mandam na antiga colónia, que é dos países mais pobres, problemáticos, subdesenvolvidos, corruptos e desiguais do planeta, embrulhados na bandeira e evocando o estatuto de Libertadores.

Os Pais da Nação e Donos Daquilo Tudo, e com quem Otelo manteve sempre uma relação amistosa.

Otelo, graduado em brigadeiro, na capa da “Revista do Povo”, 1 de Novembro de 1974. Tinha 37 anos de idade.

Otelo retornaria a Portugal para derrubar Spínola e protagonizar o 28 de Setembro de 1974, o 11 de Março de 1975 e o Verão Quente de 1975, o verniz democrático do novo regime a estalar pelo fervor revolucionário comunista, a sanidade nacional salva por um triz pelo (nunca celebrado) contragolpe ocorrido no dia 25 de Novembro de 1975 e o quase milagre de se ter permitido implementar a nova constituição (socialista comunizante) e especialmente realizar a primeira eleição parlamentar em 25 de Abril de 1976. Em que – surpresa- afinal os comunistas que tanto mandavam e que tanto barulho faziam se revelaram uma minoria parlamentar quase negligível. O milagre teve muito a mão dos norte-americanos e dos europeus, que assistiam preocupados à tomada de poder comunista e que teriam em Soares um trunfo e em Ramalho Eanes uma figura providencial.

O regime ainda viveria até 1982, vigiado humilhantemente por um quase obsceno Conselho da Revolução e Otelo ainda concorreu a Presidente e viria a ser a alma por detrás das infames Forças Populares 25 de Abril. Preso com os seus colaboradores, viria a ser libertado e no meio dum mega-processo judicial, as instâncias acharam procedente simplesmente meter tudo na gaveta. A esquerda, especialmente a radical, continuaria intocada até hoje.

Tal como em Moçambique, embrulhada na bandeira nacional e no estatuto de Libertadora, os putativos Pais da Nação.

Volvidos cinquenta anos, este é em boa parte o legado de Otelo, com quem tive o curioso prazer de ver na televisão, junto com o General José Loureiro dos Santos, em Nova Iorque, numa memorável noite de Novembro de 1989, os alemães delirantes a começarem a demolir, à paulada e à martelada, o Muro de Berlim, assinalando exuberantes o fim das ditaduras comunistas na Europa e Leste e na União Soviética. Pelo meio, falámos do seu passado de Lourenço Marques. Não disse muito. Foi a única vez que o vi.

Aparentemente insanável, incapaz de se reformar, falido e corrupto, em 2021 o Portugal socialista continua a caminhar paulatinamente para se tornar o estado mais pobre e dos mais endividados da Europa, sustentado pelo acesso a dívida barata e sucessivos balões de oxigénio europeus, a sua população envelhecida. As pessoas deixaram de ter filhos e os mais jovens emigram em vagas sucessivas para onde há empregos mais decentemente remunerados e menos tributados. À miséria aparente as elites respondem empurrando os problemas para a frente com a barriga, com mais socialismo. mais despesa pública, maior rigidez nas políticas de investimento e do trabalho e mais impostos – e mais demagogia. Seduzidos por uma dispersão eleitoral oportunista em que o exercício do poder é traduzido por uma aliança de conveniência entre os socialistas e um cocktail de esquerdistas radicais e borlistas, a agenda política repleta de chavões da esquerda.

Um país apenas bom para funcionários públicos (alguns), para corruptos, ladrões, imigrantes miseráveis da Ásia, milionários de vistos Gold chineses e brasileiros, reformados de sucesso da Europa e quem se conseguir encaixar no peculiar estatuto fiscal de “não residente habitual”.

Naturalmente que este não era o Portugal que Otelo pensava que iria surgir e em que iria viver. Nem eu. Numa entrevista em 2014, ele explicou que, se fosse para isto, não tinha feito o seu golpe em 1974 e que na verdade se pudesse, derrubava o actual regime. Talvez para tornar a velha nação num regime de partido único de esquerda radical.

Não me surpreende.

21/06/2021

OS CÃES DE MOÇAMBIQUE, POR OSVALDO PERALVA, 1986

Filed under: Osvaldo Peralva e os Cães de Moçambique 1986 — ABM @ 2:37 pm

O texto que segue foi escrito e publicado em 1986 na Folha Ilustrada, em São Paulo, no Brasil, imediatamente a seguir ao acidente aéreo que vitimou, entre outros, Samora Moisés. Osvaldo Peralva não era uma pessoa qualquer. Ver uma breve descrição de quem ele foi em baixo a seguir ao texto que escreveu.

O texto de Osvaldo Peralva, final de Outubro de 1986, presumivelmente acabado de sair de Maputo, onde fora para um evento que não ocorreria dada a queda do Tupolev em que, entre outros, pereceu Samora Moisés.

Quem foi Osvaldo Peralva

Peralva, brasileiro, foi um comunista convicto e um importante quadro do Partido Comunista Brasileiro que perdeu a convicção no final dos anos 50 quando conheceu o comunismo soviético em pessoa – e sobre o qual publicou um contundente livro. Eis como a Folha de São Paulo, de que Osvaldo Peralva foi colaborador, o descreveu, no dia em que foi noticiada a sua morte em 1992:

Recorte da Folha de São Paulo, seggunda-feira, 19 de Outubro de 1992.
Osvaldo em São Paulo, 1985.

18/05/2021

A HISTÓRIA DE UM MISTÉRIO MOÇAMBICANO, POR R W JOHNSON

Nasce a Pátria Amada em 1975. Em baixo, um ponto da situação de RW Johnson sobre a mesma em 2021.

Com vénia, reproduz-se o artigo de opinião publicado ontem pelo Senhor RW Johnson, no seu habitual estilo algo cáustico.

A História de um Mistério Moçambicano


A crescente ameaça constituída pelos jihadistas da Ansar al Sunnah na província de Cabo Delgado, no extremo norte de Moçambique, finalmente causou grande preocupação internacional, depois de os insurgentes ligados ao ISIS atacarem a vila de Palma no dia 24 de março. Os americanos, portugueses e outros, ofereceram apoio e treino militar ao débil exército moçambicano, que parece totalmente incapaz de lidar com a ameaça. Além disso, os líderes da SADC ficaram alarmados com a ideia de grandes forças estrangeiras se envolverem na região e numa cimeira em Maputo em 8 de Abril, resolveram enviar uma missão técnica para avaliar a situação e recomendar que tipo de força poderia ser necessária.

Até agora tudo bem. Mas quando a missão técnica chegou a Maputo, foi informada que só poderia passar um dia em Cabo Delgado. De facto, desde logo se tornou claro que o governo moçambicano não estava nada entusiasmado com a ideia da missão ir a Cabo Delgado.

Em última análise, a missão recomendou que uma força de 2.900 militares com quatro helicópteros e algum apoio naval seria necessária – uma força ridiculamente inadequada aos olhos da maioria dos analistas e especialistas militares. Cabo Delgado é grande – 82.000 km2 – com 16 centros distritais que precisam ser protegidos contra ataques.
Mas o presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, não gostou nada. Na verdade, desde que a crise arrebentou, ele tem-se oposto sistematicamente a qualquer intervenção regional para ajudá-lo, embora tenha ficado satisfeito em contar com a ajuda de mercenários russos e sul-africanos (os grupos Wagner e Dick Advisory Group, ou DAG).

Era para ser tomada um decisão na cimeira de segurança da SADC a 29 de Abril. No dia anterior, os ministros dos Negócios Estrangeiros da SADC aprovaram por unanimidade o relatório da missão técnica e disseram que as forças de Moçambique precisavam de “apoio imediato”. Mas o presidente Nyusi estava claramente determinado a evitar tal resultado. Ele conseguiu engendrar o “adiamento indefinido” da cimeira de segurança, e assim os líderes da SADC nunca se encontraram e o relatório da missão nunca foi ratificado.

Então aqui está um homem cuja casa está a incendiar-se. As chamas chegaram a um ponto em que não apenas os seus vizinhos regionais estão alarmados, mas os alarmes também estão tocando em Washington, Londres e Lisboa.
É um facto conhecido que a sua própria brigada de incêndio (ou seja, o exército moçambicano) não está preparada para a tarefa. No entanto, embora Nyusi tenha recrutado os serviços de organizações de mercenários também inadequados para a tarefa, ele parece determinado a expulsar os bombeiros regionais e internacionais que poderiam apagar o fogo.

O que diabo, então, está acontecendo?

Para melhor compreender a situação, é necessário primeiro dissipar quaisquer romantismos persistentes sobre o “movimento de libertação” em Moçambique. Na verdade, todos os movimentos de libertação da África Lusófona foram todos não apenas para o mal, mas para o pior.

Não há necessidade de falar mais sobre o regime de José Eduardo dos Santos, que governou Angola entre 1979 e 2017, inteiramente no interesse de uma só família, mas ainda existem alguns pan-africanistas que gostam de idolatrar o herói Amílcar Cabral da Guiné-Bissau.

Os irmãos Cabral eram mesmo bons homens (eu conhecia o irmão do Amílcar, o Luís) mas o facto é que, ao contrário de tudo o que pregavam, no fim Cabo Verde separou-se para se tornar num país independente e a Guiné-Bissau tornou-se num narco-estado.

Venerar heróis como os Cabrais é como ser um devoto de Toussaint Louverture, o libertador do Haiti – como muitos pan-africanistas ainda são – sem se preocupar em notar a podridão absoluta dos regimes que governaram o Haiti desde então.

Moçambique não é excepção a esta Lei da Decadência dos Movimentos de Libertação. O principal ponto a compreender é que a heroína foi o maior produto de exportação de Moçambique nas duas últimas décadas e que este tráfico está a aumentar. A heroína vem do Afeganistão, do Paquistão e do Iémen, chega ao largo da costa norte de Moçambique por dhows, onde é depois descarregada em barcos mais pequenos, armazenada em Cabo Delgado e depois transportada para Joanesburgo por estrada.

Se estiver num contentor, ela vai para o Terminal de Contentores de City Deep, se não, vai para o Aeroporto Oliver R. Tambo em Joanesburgo – ambos os destinos são notoriamente corruptos – e é então transportada para a Europa (uma certa quantidade de dagga e mandrax (methaqualone) também chega ao mercado sul-africano).

As rotas de tráfico que passam por Cabo Delgado estão estabelecidas há muito tempo. Moçambique não tem marinha ou guarda costeira portanto para todos dos efeitos a longa linha costeira das províncias do norte não é policiada. Não são apenas as drogas que vêm por aqui – o mesmo acontece com rubis, ouro, madeira, exportações proibidas de animais selvagens e, claro, tráfico de pessoas. Afinal, aquela era uma antiga costa de comércio de escravos.

A única (pequena) pedra no sapato é a base naval francesa em Mayotte, uma ilha no topo Norte do canal de Moçambique, que não só faz patrulhamento marítimo ao longo da costa leste africana com os seus navios e aviões, mas também inclui um pequeno destacamento da Legião Estrangeira. Até agora, entretanto, embora os franceses tenham perturbado um pouco o tráfico de drogas, eles não mostraram interesse em se envolverem mais intensamente.

A razão pela qual Moçambique alcançou um estatuto central no comércio de drogas é simples. As agências de combate ao tráfico de drogas do mundo desenvolvido tornaram o acesso a seus mercados difícil e perigoso, de modo que os sindicatos do narcotráfico buscaram novas e engenhosas entradas pela porta de trás.

Moçambique funciona bem neste sentido porque o norte de Moçambique é tão selvagem e tão pouco policiado como não acontece em mais nenhum outro lugar do planeta e a elite governante do país é fabulosamente corrupta, facilitando os negócios.

Melhor ainda, Moçambique é vizinho da África do Sul, que não é um produtor de drogas pesadas, ainda tem um fácil acesso ao mundo desenvolvido e é igualmente susceptível à corrupção. Essa combinação mágica é, obviamente, o que atraiu os Guptas e muitos outros criminosos para a África do Sul.

Tradicionalmente, o comércio de heroína em Moçambique tem sido controlado por um pequeno número de famílias muçulmanas asiáticas, principalmente Mohamed Bachir Suleman, nomeado em 2010 pelo Presidente Obama como um “barão da droga”.

Desde o início, este comércio funcionou sob a protecção da liderança da Frelimo, que alegadamente embolsou milhões por ano com isso. Suleman é provavelmente o maior doador da Frelimo.

A relação entre Suleman e a Frelimo começou sob o presidente Joaquim Chissano (1986-2005). Chissano era o chefe da segurança da Frelimo desde 1966 e estava, portanto, numa posição ideal para garantir a cooperação das forças de segurança de Moçambique.

Quando o segundo filho de Mohamed Bachir Suleman se casou, num casamento com 10.000 convidados em 2001, Chissano foi o convidado de honra. (Os paralelos com o casamento de Gupta em Sun City, com a presença de membros da elite do ANC, são óbvios.) Posteriormente, o acordo comercial foi entregue ao sucessor de Chissano, Armando Emílio Guebuza (Presidente 2005-2015). Guebuza, o homem mais rico de Moçambique, é conhecido como “Sr. Gue-business”.

Graças a estes esquemas, o comércio da droga decorreu sem problemas. Na verdade, a Frelimo regulou cuidadosamente o comércio – não queria que a heroína fosse vendida em Moçambique e não queria que o comércio fosse visível para os doadores do país.

Portanto, não houve guerras de drogas entre as famílias traficantes, nem prisões, nem condenações, nem apreensões da heroína que passava. A polícia, a alfândega e os líderes da Frelimo receberam a sua parte. Com a heroína chegando a ser cotada a US $ 300 milhões por tonelada na Europa e até 40 toneladas por ano chegando à costa moçambicana, o comércio valia US $ 1 bilhão ou mais por ano só em comissões.

Desde 2020, o comércio de heroína tem sido fortemente suplementado por metanfetamina, também proveniente do Afeganistão – tanto assim que, em 2021, 50% dos carregamentos de drogas nos dhows eram de metanfetamina. Parte dessa droga chegou ao mercado sul-africano, mas deve-se salientar que aquilo que os comerciantes de heroína estão realmente procurando é populações numerosas e ricas, capazes de pagar seus preços de topo. Isso significa que o que eles realmente querem é levar as suas mercadorias para a Europa, a Austrália e os EUA.

Desde 2017, grandes quantidades de cocaína também chegaram à Austrália, vinda da África do Sul (a Austrália e a Nova Zelândia têm a maior prevalência de consumo de cocaína do mundo). De facto, em 2017-2018, a Austrália recebeu nove vezes mais o volume de cocaína por carga aérea da África do Sul do que de qualquer outro país.

Além disso, a cocaína tem surgido nos embarques de contentores da África do Sul. Em 2019, 68 kg de cocaína foram encontrados num carregamento de móveis proveniente da África do Sul e noutra apreensão 384 kg. O grande tamanho dessas remessas sugere que a rota África do Sul-Austrália é considerada segura e confiável.

O aumento do comércio de cocaína sinalizou uma grande mudança. A heroína veio da Ásia, mas a planta da coca é cultivada exclusivamente na América Latina, então isso indicou que os cartéis de drogas latino-americanos também se estavam a envolver. Provavelmente a chave foi o acordo comercial assinado em 2015 entre Moçambique e Brasil. Isso facilitou muito a importação de mercadorias em contentores oriundas do Brasil e muito rapidamente alguns desses contentores transportavam cocaína. Mais uma vez, a intenção era encaminhar a droga através de Moçambique, Malawi e África do Sul para destinos finais na Europa, Austrália e EUA.

Naturalmente, isso chamou a atenção das autoridades norte-americanas e, em outubro de 2018, Tanveer Ahmed, um traficante paquistanês, foi preso em Moçambique graças a uma operação liderada pela US Drug Enforcement Administration (DEA). Ahmed liderava uma grande rede de tráfico de heroína, cocaína e haxixe em Moçambique . Em 2020 ele foi extraditado para os Estados Unidos.

Isso foi seguido em abril de 2020 pela prisão em Moçambique de Gilberto Aparecido Dos Santos, um grande traficante de drogas brasileiro ligado ao Primeiro Comando da Capital (ou PCC), o maior e mais poderoso grupo de crime organizado do Brasil. Dos Santos, que andou fugido da polícia brasileira durante mais de vinte anos, foi acusado de controlar o tráfico em grande escala de cocaína e armas com ramificações por toda a América Latina. Ele aparentemente adquiriu bases em Moçambique e na África do Sul.

Dos Santos foi preso, juntamente com dois associados nigerianos, num luxuoso hotel de Maputo numa operação em que a polícia moçambicana cooperou com a Polícia Federal brasileira e, mais uma vez, com os americanos da DEA. Dos Santos foi imediatamente extraditado para o Brasil – a Força Aérea brasileira enviou um avião especial a Maputo para o ir buscar.

A prisão de grandes traficantes como Ahmed e Dos Santos não era, em grande medida, a maneira moçambicana de fazer as coisas. Noutros tempos, podia-se ter como uma certeza que homens como eles teriam pago a polícia moçambicana, oferecido presentes chorudos à liderança da Frelimo e depois continuado alegremente com os seus negócios. O que mudou esses arranjos amigáveis foi claramente a entrada em cena da DEA, uma agência habituada a conseguir o que quer, com um forte apoio das autoridades americanas.

Além disso, tudo mudou com a descoberta em 2015-2016 dos 2 bilhões de dólares em empréstimos secretos organizados por Armando Guebuza. Os governos e entidades doadores ficaram furiosos com a falsificação deliberada das contas de Moçambique. Cortaram a sua ajuda para apoiar o orçamento moçambicano, causando uma grande crise financeira; deixaram claro que Guebuza tinha de ir; e em geral começaram a questionar que outros golpes haviam sido praticados com base na sua boa vontade ingénua. Nesse novo clima de desconfiança, o narcotráfico – que os doadores até então benignamente ignoraram – destacou-se como outro grande escândalo.

Foi neste clima que Filipe Nyusi ascendeu ao poder em 2015. Guebuza, ao estilo africano clássico, andava ocupado a tentar alterar a constituição para poder concorrer a um terceiro mandato presidencial, mas tudo isso desapareceu assim que Moçambique renegou as dívidas associadas ao escândalo do empréstimo.

Muito claramente, Nyusi precisava de se distanciar de Mohamed Bachir Suleman e de outros traficantes conhecidos e, pelo menos publicamente, deplorar o comércio de drogas e, pelo menos, parecer apoiar os esforços internacionais para combater o tráfico.

Por outro lado, o comércio de drogas tornou-se numa das maiores e mais lucrativas exportações de Moçambique e proporcionou um enorme e constante rendimento em divisas para a elite da Frelimo. Simplesmente não havia como aquela elite tolerar um corte nessa fonte de renda: na verdade, a elite havia-se tornado tão viciada quanto qualquer drogado.

Portanto, era uma condição básica da presidência de Nyusi manter o equilíbrio de modo a apaziguar os americanos da DEA e os doadores, por um lado, mas garantir que a elite da Frelimo continuava a conseguir a sua dose, por outro.
Se olharmos agora para a geografia do comércio ilícito na costa da África Oriental (ver mapa), podemos ver como o aumento da pressão exercida pelos governos do Quénia e da Tanzânia nos antigos centros comerciais de Zanzibar, Mombassa e Dar-es-Salaam forçou uma mudança de enfoque para o sul.

Fonte: Iniciativa Global contra o Crime Organizado Transnacional, com base em entrevistas em toda a região, setembro de 2017.


Neste novo contexto, os dois portos principais são Pemba em Cabo Delgado e Nacala na província de Nampula. Nacala tem o porto mais profundo da África Oriental enquanto que Pemba tem um fluxo de contentores e o seu grande apelo é que fica situado tão a norte que está fora da vigilância de qualquer pessoa baseada em Maputo.

Em 2010, Celso Correia, então presidente da Insitec Lda. – então qualificada como “uma empresa de fachada Guebuza” – assumiu a gestão do porto de Nacala. Correia posteriormente actuou como gestor da campanha presidencial de Nyusi e actualmente é Ministro da Terra e do Desenvolvimento Rural. Acresce que, uma vez privatizada a gestão dos portos sob Chissano, foi aberta uma única excepção para o porto de Pemba, que permaneceu sob a alçada da empresa estatal Portos e Caminhos de Ferro de Moçambique (CFM). Este foi um passo muito deliberado da liderança da Frelimo para manter o controlo deste centro ultra-sensível do tráfico de droga.

Todos esses arranjos delicados e sensíveis foram, no entanto, ameaçados pelo surgimento da insurgência jihadista em Cabo Delgado a partir de 2017. Ainda não há evidências de que os insurgentes estejam envolvidos no tráfico de drogas, embora seja geralmente assumido que tal seja apenas uma questão de tempo, simplesmente porque essa é a forma transacional como a política moçambicana funciona.

Quer dizer, depois de um breve período de retórica revolucionária, a elite da Frelimo decidiu usufruir de todos e mais algum dos privilégios que os portugueses tinham antes. Nas guerras da Renamo contra a Frelimo que se seguiram, a Renamo não insistiu na corrupção da Frelimo porque, é claro, a luta era realmente sobre qual a participação nos lucros que a Renamo poderia vir a obter. Os jihadistas também vão querer a sua parte. A insurgência precisa de dinheiro. Quando tomaram Palma, os insurgentes prontamente roubaram todos os bancos locais.

A insurgência de Ansar al Sunnah é, obviamente, um grande problema para Nyusi e a Frelimo. Há anos que a Frelimo tem salivado com os mega-lucros resultantes das novas descobertas de gás – na verdade, os $ 2 bilhões de Guebuza em empréstimos secretos assentavam no pressuposto de que o país iria receber o dinheiro de volta das receitas do gás e ninguém jamais quereria saber do buraco nas contas do Estado. (Na verdade, metade desses US $ 2 bilhões nunca foram contabilizados.) Portanto, a decisão da Total, à luz da insurgência assassina, de invocar força maior e retirar-se, é um golpe tremendo.

Esta, então, é uma explicação para a desconcertante relutância do Presidente Nyusi em acolher a ajuda militar estrangeira contra os insurgentes jihadistas em Cabo Delgado. Desde o momento em que a insurgência começou e ficou claro que o exército moçambicano não conseguiria lidar com ela, tem sido um objetivo fundamental da Frelimo manter as forças estrangeiras longe deste centro nevrálgico do tráfico de drogas.

Assim que tropas da SADC, quanto mais americanas, portuguesas ou outras, começassem a patrulhar o território de Cabo Delgado, iriam inevitavelmente descobrir o que se passava, os jornalistas internacionais iriam expor e, Deus sabe, os estrangeiros poderiam atrapalhar o comércio ou mesmo tomar um quinhão para eles mesmos.

Tudo isso é impensável e a elite da Frelimo claramente não tolerará um presidente que permita que esta fonte de rendimento-chave seja cortada.

Entretanto, académicos, jornalistas e trabalhadores humanitários estão todos proibidos de entrar em Cabo Delgado. O jornalista Tom Bowker foi recentemente deportado porque queria fazer uma reportagem sobre a insurgência. Apenas para garantir que outros jornalistas não começassem a vaguear por Cabo Delgado, o aviso de deportação de Bowker impede-o de regressar durante dez anos.

Pois então Nyusi chamou primeiro o grupo Wagner e depois o grupo DAG, pois sabia que nem os russos nem os mercenários em geral perderiam o sono – ou fariam barulho – com o tráfico de drogas. Esses cães de guerra esperam que a África seja venal, brutal e cínica. Mas almas gentis como Cyril Ramaphosa da África do Sul ou Mokgweetsi Masisi do Botswana ficariam chocados – quase se pode ouvir Ramaphosa dizendo “oh, fiquei chocado, chocado” – enquanto que, se os americanos se envolvessem, sem dúvida trariam a DEA. Ora isso seria impensável. É por isso que Nyusi conseguiu com sucesso arrastar os pés e evitar a intervenção da SADC, por enquanto.

Para já, a situação está neste ponto. O problema é que Ansar al Sunnah não vai embora e eles já sucederam em comprometer enormes investimentos estrangeiros. Isto é mau para toda a região da África Austral, pois dá aos investidores estrangeiros a impressão de que, por mais convidativas que sejam as oportunidades, os riscos nesta vizinhança são simplesmente proibitivos. Além disso, a DEA está agora envolvida e, sem dúvida, entende a situação o suficiente. Um grande problema está à espera mesmo ao virar da esquina.

Como a maioria dos políticos africanos, Nyusi está interessado na gestão das crises no curto prazo – portanto a opção preferida é aquela que vai manter o dinheiro a fluir e que suceda em empurrar o problema para a frente por mais algumas semanas, talvez até um mês ou dois.

Mas vá prestando atenção a este espaço.


(assina RW Johnsonin em politicsweb.co.za)

texto original em inglês
17 de Maio de 2021

17/02/2021

MÁRIO FERNANDES DA GRAÇA MACHUNGO

Filed under: Mário Machungo 1940-2021 — ABM @ 7:36 pm

O Dr. Mário Machungo, que conheci no início de 2000, morreu há um ano. Sinto a sua falta.

 

Mário Machungo em 2003, quando era, entre outros, Presidente do Conselho de Administração do BIM, este BIM resultante da fusão do Banco Internacional de Moçambique original e do Banco Comercial de Moçambique.

Uma alminha caridosa escreveu mais ou menos um esboço do seguinte texto, que foi publicado no Wikipédia e que editei pesadamente pois era curto e tinha uns erros. Eis a minha versão preliminar:

“Mário Fernandes da Graça Machungo (Chicuque, perto da Maxixe, Inhambane, 1 de dezembro de 1940 – Lisboa, 17 de fevereiro de 2020) foi um político e um gestor moçambicano.

Um de sete irmãos, fez a escola primária na Missão da Munhuana, em Lourenço Marques, e o ciclo preparatório na Escola Industrial, a antiga Escola Técnica Sá da Bandeira, tendo terminado este nível em 1958.

Machungo fez parte de uma hiper-minúscula minoria negra moçambicana que estudou até ao nível universitário antes da década de 1970, tendo obtido uma licenciatura em economia no então ISCEF (Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras) em Lisboa em 1969.

Expulso, mas pelos vistos voltou e concluiu depois o curso.

Ainda antes de 1975, Machungo trabalhou no Banco de Fomento Nacional como economista e foi professor na Faculdade de Economia da Universidade de Lourenço Marques, tendo entrado no palco da política moçambicana praticamente no dia em que os militares portugueses formalmente entregaram o poder à Frelimo (20 de Setembro de 1974).

Como membro da Frelimo desde o seu início (supostamente, ficou a trabalhar “do lado português” a pedido do movimento independentista), foi desde logo co-optado e ocupou vários cargos ministeriais antes e após a independência de Moçambique em Junho de 1975. Foi ministro da Cooperação Económica do Governo de Transição entre 1974 e 1975. Foi Ministro da Indústria e Comércio entre 1975 e 1976, Ministro da Indústria e Energia de 1976 a 1978, Ministro da Agricultura de 1978 a 1980 e Ministro do Planeamento e Desenvolvimento de 1980 a 1986. Entre 1983 e 1986 foi ao mesmo tempo governador da província da Zambézia. De 17 de julho de 1986 a 16 de dezembro de 1994 ocupou o posto de primeiro-ministro de Moçambique, apanhando o final da presidência de Samora Machel e a primeira parte do mandato de Joaquim Chissano. Foi o primeiro primeiro-ministro que Moçambique teve.

Foi membro do Comité Central da Frelimo (já “partido”) e o seu Secretário para a Politica Económica.

Durante anos, foi Deputado da Assembleia Popular e Deputado na primeira legislatura multipartidária.

Após ter sido substituído no cargo de primeiro-ministro pelo Dr. Pascoal Mocumbi no final de 1994, Mário Machungo virou-se para o nascente sector privado. A partir de 1995 fundou e tornou-se Presidente do Conselho de Administração do que viria a ser o maior banco do país, o Banco Internacional de Moçambique, que actualmente usa a Marca comercial Millennium Bim. Esteve lá até 2014, quando foi, com pouca pompa e menos cerimónia, substituído. Entre 1995 e 2008, foi membro do Conselho Superior do Banco Comercial Português, a entidade, em Portugal, que detinha a maioria do capital social do BIM e com cujos responsáveis máximos, Jardim Gonçalves e Filipe Pinhal, se dava bem. Foi também Presidente do Conselho de Administração da Seguradora Internacional de Moçambique (SIM) e Presidente da Associação Moçambicana de Bancos, criada em 2000.

Morreu em Lisboa no dia 17 de fevereiro de 2020, de doença. Tinha 79 anos e deixou mulher e duas filhas. O seu corpo levado para Maputo, foi sepultado no Cemitério de São José de Lhanguene no dia 24 de Fevereiro, após dois dias de luto nacional e um funeral de Estado em que compareceram as mais altas entidades do seu país.

Sobre ele, Fernando Lima diria o seguinte, citado pela Deustche Welle: “o ex-primeiro-ministro foi uma das pessoas que [em meados da década de 1980] compreendeu a “necessidade de o país optar por outras políticas e não apenas o socialismo”, face à guerra e à pobreza no país. Machungo impulsionou o Programa de Reabilitação Económica (PRE), que trouxe consigo uma mudança fundamental no rumo da Frente de Libertação de Moçambique, o partido que governa, afastando-se do socialismo.”

06/08/2020

MULHERES A BUSCAR ÁGUA, DE RICARDO RANGEL

Imagem retocada, de Ricardo Rangel, parte de uma exposição em Maputo dedicada às mulheres de Moçambique.

Mulheres numa bicha, à espera para obter água. Não sei o local ou a data em que foi tirada.

04/08/2020

A LUTA CONTINUA – 2020

Filed under: A Luta Continua - 2020 — ABM @ 12:29 pm

Sempre que leio as recorrentes notícias sobre o que alguns chamam, algo eufemisticamente, “violência xenófoba”, contra os cidadãos oriundos de Moçambique que vivem na África do Sul, Zimbabué e Malawi, invariavelmente, lembro-me do verdadeiro inferno de morte e miséria a que a Frelimo do Samora sujeitou Moçambique e os moçambicanos a seguir à independência, e durante anos a fio, para -justamente- “libertar” os “irmãos” dos apartheids e afins. Em vez de usarem a independência para desenvolver o país, os acólitos do novo Regime implantaram uma ditadura militar comunista e toda aquela cena sob o que se tornou num popular slogan de esquerda – o de “a luta continua”- repetida inúmeras vezes por Samora Machel nos comícios e discursos que fazia, e que se traduziu em guerra, morte e fome.
Hoje, aburguesadas e passada a fase do liricismo marxista, as elites destes países beijam-se para a fotografia e entrecasam-se enquanto, segundo as várias organizações que percebem disso, conspiram para roubarem e ficarem perpetuamente ricas.

Mas no terreno, para o povo, é isto, que cito em baixo, num texto da Agência Lusa, publicado ontem ao princípio da noite.

Parece mesmo que, para eles, abusados pelas suas elites e despeitados pelos mesmos que supostamente ajudaram a libertar, a luta continua.

O texto da Lusa:

Um imigrante moçambicano morreu e pelo menos 18 pessoas também de nacionalidade moçambicana ficaram desalojadas por alegada violência xenófoba no leste de Joanesburgo, África do Sul, que eclodiu na semana passada.
“Houve um moçambicano que foi morto, queimaram tudo o que tinha, e levaram tudo, todos os moçambicanos ficaram sem nada”, relatou o imigrante moçambicano David Machava em declarações à agência de notícias Lusa. “Ele morreu anteontem [sábado], quando eles entraram aí a bater em Tokoza Pola Park”, adiantou David Machava, que vive na África do Sul desde 1987, onde constituiu família com oito filhos.
Segundo o imigrante, a maioria dos moçambicanos afetados pela recente onda de violência xenófoba residem em Pola Park, uma área do bairro de Tokoza vizinha a Katlehong. “Pode chegar a 18 moçambicanos, porque há muitos a viverem aqui em Pola Park”, contou Machava.

“Pediram documentos, bateram-me à queima-roupa, um outro moçambicano abandonou a casa dele porque lhe disseram que o iam matar e eu também estou a procurar outro sítio”, declarou. “Viraram-me o carro que estava estacionado”, referiu ainda o imigrante.
Ataques violentos desde a semana passada
Por seu lado, José Sobrinho, 37 anos, natural de Chokwé, distrito de Gaza, sul de Moçambique, disse à Lusa que o seu negócio de reparação de televisores não sobreviveu aos ataques violentos. “Destruíram os televisores que eram dos meus clientes”, adiantou, sublinhando que “a situação já está mais calma hoje, mas o que era dos clientes ficou destruído”.
José Sobrinho contou que abriu o negócio de reparação de televisores no bairro de Tokoza em 2016, embora tenha imigrado para a África do Sul em 2007. “Tenho quatro filhos, até a minha esposa não está bem [de saúde] devido a uma queda e estou a preparar dinheiro para lhe enviar porque está hospitalizada [em Moçambique]”, declarou o imigrante moçambicano, que procura agora refazer a sua vida.

A violência xenófoba contra imigrantes moçambicanos em Tokoza, referiu José Sobrinho, eclodiu na passada terça-feira (28.08) e só viria a dissipar-se no domingo (02.08) após a intervenção do exército sul-africano e do ministro da Polícia, Bheki Cele.
“Foi quase toda a semana, porque começou na terça e na sexta-feira e no sábado [a violência] piorou, há muitos moçambicanos afetados e ontem [domingo] apareceram os militares e o ministro da Polícia Bheki Cele esteve cá, e essa guerra parou. A situação ainda está calma”, disse José Sobrinho.
Casas e lojas vandalizadas
O moçambicano referiu que os responsáveis, de etnia AmaXhosa, justificaram a violência contra os imigrantes moçambicanos e a vandalização das suas casas e lojas alegando “falta de eletricidade” no bairro de Tokoza há três semanas. “Mas depois começaram a dizer que todos os estrangeiros têm de sair do país, e aí começaram já a entrar nas lojas e nas casas, tiraram coisas, mobílias e queimaram tudo. Basta ser estrangeiro e ter uma loja, que eles entram e destroem tudo”, adiantou.
Questionado pela Lusa sobre os motivos da recente onda de violência xenófoba, este imigrante moçambicano sublinhou: “O problema é que nós aqui trabalhamos, estamos em ‘lockdown’ devido a essa pandemia do novo coronavírus, mas conseguimos colocar pão na mesa, e eles não fazem nada, dependem do Governo, enquanto nós fazemos pela vida. Esse é o problema”, disse José Sobrinho.
Contactada pela Lusa, a esquadra de Polícia em Tokoza remeteu esclarecimentos para o comando da Polícia sul-africana (SAPS, na sigla em inglês) na província de Gauteng que não respondeu ao pedido até ao momento.

Em 2019, o distrito de Ekhuruleni, onde se situa o bairro de Tokoza, foi um dos focos de saques de violência xenófoba que atingiu o país em setembro, forçando cerca de 1.500 estrangeiros africanos a abandonarem a África do Sul. Cerca de 800 pessoas, na sua maior parte originária de Moçambique, Malawi e Zimbabué, procuraram refúgio em salas comuns no bairro de Katlehong, vizinho a Tokoza, a cerca de 35 quilómetros a leste de Joanesburgo, referiu o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR).
Mais de 11 pessoas morreram e cerca de 500 foram detidas pela polícia sul-africana em setembro de 2019 durante uma onda de violência xenófoba, pilhagem e destruição de vários negócios, na maioria de imigrantes estrangeiros na província de Gauteng, a mais populosa da África do Sul.

20/07/2020

O PANO DE FUNDO PARA UM FILME DE TERROR

Presumo que por mera coincidência, em Outubro de 2019 a estaçãozinha pública de televisão de Portugal, paga com anúncios de publicidade e por uma taxa mensal imposta a quem consome electricidade no território português, mudou a música que usa para abrir o seu principal telejornal, às 20 horas (hora de Portugal, que é também GMT ou UTC).

Penso que a razão formal foi assinalar o 60º aniversário do telejornal da televisão estatal.

Gostaria de dizer que a obra em si, originalmente concebida por César Veríssimo e com arranjo de Anne Victorino de Almeida, interpretada por uma orquestra que não sei quem são e dirigida por Joana Carneiro, é soberba. Magnífica. Faz a versão anterior parecer música de elevador.

Mas tenho outra interpretação.

Outubro de 2019 assinala também uma mudança em Portugal e no mundo, para pior. E na altura ninguém sonhava o que estava para vir da China.

Em Outubro houve uma eleição parlamentar em que, essencialmente, foi reforçado o clima geral de “socialismo de esquerda” instaurado pelo golpe de António Costa em 2015, criando a Geringonça, nas costas dos enormes aumentos de impostos feitos pelo governo anterior (o de Passos Coelho) por sua vez em resposta à crise de 2008 e gritante e escandalosamente agravada pelo governo de José Sócrates.

Para todos os efeitos práticos, deixou de haver direita política em Portugal.

Desde 2015, Costa manteve os impostos altos e distribuiu uns dinheiros por aqui e por ali, cortando ao mesmo tempo despesas ali e aqui. Com taxas directoras perto dos zero por cento, permitindo ignorar o efeito arrasador de uma dívida pública de 140% do PIB, os socialistas dançaram com taxas e taxinhas e a economia lá foi seguindo anemicamente, ajudada em parte por um crescimento do turismo e pelo wishful thinking de tanta gente que confundiu um “novo” Portugal, aparentemente moderno, bonito e acolhedor como um porto seguro, para os nacionais e para os turistas.

Foi e é tudo menos isso. Para a “recuperação da crise de 2008, o brutal aumento de impostos foi acompanhado pela emigração de mais que 500 mil portugueses em idade de trabalho. Para ajudar a contrariar a razia demográfica, Costa abriu as fronteiras a uma cacofonia de estrangeiros que as pessoas nem entendem bem quem são.

Em termos de capital, o país está a saque de entidades estrangeiras, pois o capital nacional, largamente, inexiste.

Assim, o final de 2019 fazia prever a chegada de tempos difíceis.

Mas os seis meses que se seguiram mostraram que isto vai ser muito pior.

Curiosamente, o surgimento da Pandemia teve a dúbia vantagem de constituir, para o Partido Socialista de Portugal, uma quase perfeita justificação para os tempos difíceis, ainda que de forma espectacular: por um lado, a dívida pública vai ascender a níveis estratosféricos, acima de 150% do PIB. Por outro lado, a desgraça já é tal que a União Europeia viu-se forçada a dar milhares de milhões de euros ao governo de António Costa, para mitigar a catástrofe, que no momento em que escrevo estas linhas, ainda não se fez sentir minimamente a sério.

Portanto, se, nos últimos três anos, o Exmo. Leitor habituou-se a quase diariamente, ligar o noticiário da RTP à noite para observar as diatribes do Sr. Donald Trump e as notícias oficiosas do Regime, prepare-se para começar a assistir à mega-operação de relações públicas com o fim de mitigar os efeitos da Pandemia. Que, prevejo, mais vai parecer um filme de terror.

A desgraça transmitida ao som belo, dramático e prenunciador de algo que não é pacífico, nem bom, nem que vai acabar bem, e que segue em baixo.

Quão épico. Quão apropriado.

A actual canção de abertura do Telejornal da RTP.

08/04/2020

A EVOLUÇÃO CLIMÁTICA EM ANGOLA, MOÇAMBIQUE E PORTUGAL, 1901-2018

Um sítio gerido pelo Instituto de Análise Ambiental publicou no seu sítio os seguintes mapas, indicando a evolução das temperaturas (neste caso) em Angola, Moçambique e Portugal entre os anos de 1901 e 2018.

Conclusão: no tempo colonial era mais fresquinho.

 

Angola, 1901-2018.

Moçambique, 1901-2018.

Portugal, 1901-2018.

09/03/2020

DENNIS JETT RETRATA MOÇAMBIQUE NA REVISTA FOREIGN POLICY

Filed under: Dennis Jett retrata Moç 2020 — ABM @ 3:26 am

A influente revista norte-americana Foreign Policy, publicou na sua edição de ontem (requer subscrição) um longo e demolidor texto de opinião de Dennis Jett sobre a actualidade moçambicana.

Jett foi o embaixador daquele país em Maputo entre 1993 e 1996, por nomeação de Bill Clinton. Actualmente, ensina política externa na Universidade Estatal de Pennsylvânia, estado que fica situado a meio caminho entre Nova Iorque e Washington.

O artigo, que tem feito as rondas entre quem segue a realidade moçambicana, revela que Jett acompanha os eventos desde que acabou o seu mandato de embaixador.

O excelente sítio em língua portuguesa da Voz da América pegou na história e fez um resumo adequado, que penso traduz o que Dennis Jett escreveu e que, com vénia e alguma edição, se reproduz em seguida.

Dennis Jett.

(início)

Moçambique “está prestes a tornar-se num estado falhado, cuja democracia é uma farsa” disse o antigo embaixador dos Estados Unidos em Moçambique, Dennis Jett.

Jett acusou os países ricos e doadores internacionais como o Programa de Desenvolvimento da ONU e a Conta do Desafio do Milénio, de contribuirem para a manutenção do sistema de corrupção e abuso de poder, deixando o povo moçambicano apenas com opções de revolta armada, emigração ou “resignação”.

Escrevendo na revista “Foreign Policy”, Jett disse que as riquezas energéticas recentemente descobertas em Moçambique não vão garantir a segurança ou a melhoria da governação em Moçambique e acusou os países ricos de “inadvertidamente acabarem por assegurar que a sua pobreza vai continuar”.

No seu artigo, Dennis Jett criticou também asperamente as organizações internacionais de ajuda por serem “cúmplices” na manutenção da actual situação em Moçambique.

Dennis Jett disse que a principal causa do pessimismo em relação ao futuro de Moçambique se deve principalmente à corrupção “do pequeno grupo de políticos” que governa o país desde 1975.

“Como um país em que o Produto Interno Bruto é menos de um por cento daquele dos Estados Unidos, Moçambique é simplesmente demasiado pobre para financiar as necessárias instituições da democracia que poderiam fornecer contrapesos (checks and balances) ao poder da elite governante”, escreveu o professor, acrescentando que os governantes moçambicanos têm sido ajudados “pela cumplicidade de alguns países, companhias de energia como a ExxonMobil e organizações de ajuda como o Programa de Desenvolvimento da ONU e Corporação do Desafio do Milénio e pela indiferença de outros”.

O antigo embaixador americano em Maputo disse que Moçambique não estava preparado para se auto-governar quando alcançou a independência em 1975 “porque as autoridades portuguesas não tinham investido na educação da população local”.

Os líderes da Frelimo que assumiram o poder realizaram eleições após o fim da guerra civil “mas o governo tem continuamente usado do seu poder para as falsificar”, escreveu Jett, que dá depois pormenores da falsificação das últimas eleições , da violência contra opositores e da corrupção, exemplifcada com o caso das “dívidas ocultas”.

“Devido ao facto da sociedade civil ser fraca, do parlamento e do sistema judicial estarem debaixo da mão da Frelimo e a imprensa ser em grande parte controlada pelo governo ou totalmente intimidada, os líderes fazem face a pouca pressão para governarem democraticamente e ou honestamente”, opinou Dennis Jett para quem “a única esperança é que a comunidade internacional possa tentar impor algumas (limitações ao poder do governo)”.

Mas o antigo diplomata disse que isso levantaria acusações de neo-colonianlismo e para além disso “os países ricos estão mais preocupados com a estabilidade em países que são parcialmente estados falhados, do que com a democracia”.

No seu artigo, o antigo embaixador dos Estados Unidos no Maputo criticou o Departamento de Estado dos Estados Unidos por ter apelado às autoridades moçambicanas no sentido de“resolverem as preocupações graves de missões de observação das últimas eleições”.

“Por outras palavras, o que o Departamento de Estado estava a sugerir era que o governo moçambicano deveria investigar-se a si próprio quanto às tácticas que ele próprio usou para assegurar que vencia as eleições”, escreveu Dennis Jet, que criticou também um plano do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas, no montante de 60 milhões de dólares, para ajudar “a descentralização do governo e encorajar a participação digital na democracia”, recordando que apenas 21% dos moçambicanos têm acesso à internet e que “uma coisa que a Frelimo tornou claro ao longo dos anos, é que não tenciona abrandar o seu controlo do poder, dando a entidades locais que podem não ser leais à Frelimo, qualquer medida de autoridade”.

Dennis Jett criticou também o plano da Conta do Desafio do Milénio e outros doadores, de doarem dinheiro “sem imporem quaisquer limitações ao abuso do poder por parte do governo moçambicano, embora sejam (essas organizações) que fornecem metade do orçamento do governo”.

Dennis Jett afirma que “a insurgência e terrorismo no Norte vão permancer e o povo moçambicano vai ficar a pomderar quanto ao que é mais destrutivo, se os ciclones que têm atingido o país ou o seu próprio governo”.

Para Dennis Jett, a comunidade de países doadores “ignora a corrupção em Moçambique e continua a oferecer ajuda humanitária e de desenvolvimento,” o que não resolve os problemas do país.

“Tratar a raíz dos males do país – a má governação – em vez dos sintomas do problema, parece ser algo para além da capacidade de atenção dos países ricos e contrário aos seus interesses comerciais”, escreveu Dennis Jett.

“E por isso ao povo de Moçambique restam apenas as opções da resistência armada, do terrorismo Islamita, da emigração ou a resignação”, concluiu o antigo embaixador norte-americano em Moçambique.

(fim)

27/02/2020

A BOMBA ATÓMICA DE MOÇAMBIQUE

Filed under: A Bomba Atómica de Moçambique — ABM @ 2:33 am

 

Na sua edição de 26 de Fevereiro, o excelente jornalista Adérito Caldeira, do jornal A Verdade, de Maputo, que geralmente é melhor que a média naquilo que publica, aludiu a uma apresentação em que o perpetuamente discreto mas genial economista António Francisco, publicou o quadro que em seguida reproduzo (com uns retoques):

A Bomba Atómica de Moçambique.

Isto a propósito duma daquelas discussões académicas insanas (e demasiadamente frequentes) sobre pobreza, modelos de desenvolvimento, bla bla bla.

Daquelas a que quase ninguém vai e que quase ninguém liga.

Só que aqui o assunto é verdadeiramente explosivo.

Os pontos que o Adérito diz que o António Francisco fez, mais ou menos, são simples, por isso faço-o aqui, resumidamente:

  1. A população, maioritariamente pobre, rural, miserável e analfabeta de Moçambique, hoje é de 30 milhões de almas, o triplo do que havia em 1975;
  2. Daqui a trinta anos somará 65 milhões de pessoas; no centenário da independência, 100 milhões;
  3. Mas da maneira como as coisas têm andado em termos da economia e das infra-estruturas, mesmo com os dinheiros do gás e tudo o mais o que se prevê que se possa vir a arranjar, e não fôr entretanto roubado ou derretido em guerras indecifráveis, não vai haver maneira de dar de comer, educar, vestir, arranjar emprego e cuidar destas pessoas; os efeitos no território e nos recursos será arrasador, para não falar que se vai acentuar o peso da maioria da população na Zambézia e Nampula, até agora politicamente quase omissa;
  4. Sendo as coisas como são, e prevendo-se melhorias assinaláveis na taxa de mortalidade da população, a única solução para assegurar um mínimo de chance para se proporcionar uma vida de melhor qualidade para os futuros moçambicanos é….nascerem menos;
  5. E não há muito tempo antes que se tenham que (ou deviam-se) tomar medidas específicas para se tentar convencer os casais moçambicanos a deixarem de ter uma média de seis filhos por casal, e passarem a terem (e efectivamente criarem e suportarem) três filhos por casal em média;
  6. Pois, aos actuais níveis do que Francisco chama, quase simpaticamente, “fecundidade”, a nação moçambicana vai ser uma mãe ainda mais madrasta para os seus filhos do que aquilo que já foi nos últimos cem anos. E isso é perfeitissimamente evitável. E é algo que está literalmente nas mãos dos moçambicanos e das moçambicanas.

É melhor começar a falar-se disto duma forma menos discreta.

Pois esta já é e vai ser a verdadeira bomba atómica que Moçambique enfrenta no seu futuro.

25/02/2020

MÁRIO FERNANDES DA GRAÇA MACHUNGO, 1940-2020

Filed under: Mário Machungo 1940-2020 — ABM @ 2:25 am

Foi hoje (24 de Fevereiro de 2020) a sepultar, em Maputo, o corpo do Dr. Mário Machungo, após uma cerimónia pública.  O Dr. Machungo faleceu em Lisboa no dia 17 de Fevereiro.

Ainda não escrevi sobre ele.

 

O Dr. Mário Machungo no seu gabinete na sede do Banco Internacional de Moçambique, 2004. Foto tirada por mim.

20/02/2020

MÁRIO MACHUNGO E MARCELINO DOS SANTOS, DEZEMBRO DE 2003

Filed under: Mário Machungo e Marcelino dos Santos — ABM @ 12:32 am

Por ironia do destino, aconteceu que Marcelino dos Santos e Mário Machungo, que, pode-se argumentar, representam dois pólos que se opõem (se é que se pode ousar dizer eles terem existido na mistórdia negocial interna da organização) do que terá sido a Frelimo nos anos depois da independência, faleceram no espaço de uma semana um do outro, – o primeiro a 11, o segundo a 17 – provocando algum ruído no que terão sido os respectivos legados ao que hoje é Moçambique.

Sobre Marcelino, 11 anos mais velho que Machungo, já escrevi uma nota.

Sobre Mário Machungo, lá chegarei.

Mário Machungo com Marcelino dos Santos no edifíio do Private do BIM em Maputo, 12 de Dezembro de 2003, aquando da cerimónia de lançamento de um livro do Sr. José Craveirinha, que ajudei a lançar e a realizar (com, entre outros, um filho do Sr. Craveirinha e o Pai do Mia Couto). Machungo era então o Presidente do Conselho de Administração do Banco Internacional de Moçambique. Marcelino era a Eminência Parda do regime.  Joaquim Chissano estava no último ano do seu mandato e Guebuza montava os alicerces do seu império e preparava a sua desastrosa presidência. Fui eu que tirei a fotografia.

12/02/2020

REQUIEM POR MARCELINO DOS SANTOS, 1929-2020

Marcelino dos Santos, uma das figuras mais influentes e duradouras da Frente de Libertação de Moçambique e do seu sucedâneo “político”, e que nasceu no Lumbo (um lugarejo em frente à Ilha de Moçambique) em 20 de Maio de 1929, faleceu hoje (11 de Fevereiro de 2020), em Maputo, com 90 anos de idade.

Desde os primórdios das movimentações nacionalistas com o fim de pôr um fim ao regime colonial português em Moçambique, nos anos 40 do Século XX, Marcelino dos Santos foi, de dentro do grupo de pessoas presentes na altura, a meu ver, a pessoa mais central e crucial do processo que culminou com a formação de uma frente unida e que, a partir do então Tanganica, iniciou, no final de 1964, uma guerrilha contra as autoridades coloniais portuguesas, de que resultou posteriorente a independência de Moçambique.

Se há um fio condutor em tudo o que aconteceu primeiro à Frelimo e depois ao nascente país, para melhor e para pior, esse fio condutor foi Marcelino dos Santos.

Que, infelizmente, era tão nacionalista como comunista, o que, com o apoio de Samora e de Chissano (e de mais meia dúzia de guerrilheiros notáveis, e ainda – principalmente, acho – de uns heróicos 3-5 mil moçambicanos, anónimos hoje, que foram quem de facto andou no mato a arriscar as vidas, aos tiros e a colocar minas terrestres durante dez anos), orientados pelos chineses de Mao e demais países comunistas da época, sucederam em forçar uma independência a martelo, mudando o país nascente de uma ditadura colonial de partido único empenhada em adiar a independência política, para uma infame ditadura comunista de partido único, empenhada em libertar os vizinhos do apartheid.

A revolta em 1974 dos militares portugueses, comandados por um lourenço-marquino comunista, veio mesmo a tempo para a Frelimo, pois Marcelo Caetano na altura preparava-se para despachar as colónias até 1980, pois que já davam mais prejuízo que o que ele achava que o seu país estava disposto a sustentar, sob um manto de “autonomia soberana”. Em Lourenço Marques, ao contrário do que todos hoje parecem julgar, rigorosamente ninguém estava preparado para nada, muito menos os brancos. Como aliás se viu.

Em 1975, perante a impotente, obediente e excitada maralha, reunida em comícios infindáveis, pouco depois de assumir o cargo de líder incontestado, e para que não houvessem dúvidas, o carismático Samora proclamou que, afinal, a coisa não tinha acabado: afinal, a coisa apenas tinha começado.

E repetia vezes sem conta, nos seus comícios obrigatórios sem fim: A Luta Continua. A Luta Continua. A Luta Continua. A Luta Continua.

E assim a luta continuou, agora para todos, no púlpito, Samora, secundado por Marcelino dos Santos.

O resultado foram mais vinte anos de guerra civil e com os vizinhos, que mataram mais que um milhão de cidadãos moçambicanos e destruiram o pouco que havia depois da auto-destruição ao estilo pol-potista dos primeiros anos após 1975, tida como medida necessária para se criar o Novo Moçambique. Todos a ferro e fogo, solidários na miséria e sujeitos às investidas da Snasp e à chambocadas repetidas por causa de tudo e de nada, ajudados depois pelos rodesianos e pelos sul-africanos.

Antes e após 1975, e praticamente até esta data, Marcelino dos Santos, temido e celebrado como o verdadeiro mandarim do regime, permaneceu uma peça-chave na Frelimo, que governou em ditadura até 1994, após o que, já num contexto constitucional multipartidário, concebido antes de Roma principalmente para ficar bem na fotografia e agradar as potências envolvidas, continuou a governar com uma maioria parlamentar e presidencial, operando à superfície como um partido, na prática o efectivo detentor da totalidade do poder político e com uma captura total de todas as instituições do estado moçambicano, incluindo a máquina eleitoral e os tribunais. Que usou.

Mas no seu seio, malgrado a fachada “democrática”, a máquina não mudou quase nada. Tudo ainda é decidido à porta fechada lá naquela sala de reuniões no único prédiozito no meio da Somershield.

É a mesma máquina que, por alturas de 1975, e nos anos seguintes, decapitou e mandou decapitar toda e qualquer oposição ou voz minimamente dissonante aos seus ditames. Em que Marcelino assinou por baixo no infame decreto que supostamente legalizou os assassinatos de, entre outros, o Reverendo Simango e sua mulher e a Dra. Simeão.

E, de facto, a guerra realmente não acabou em 1994. Parou, apenas, por pura exaustão e por acordo entre as partes, que nos anos seguintes mantiveram a mesma animosidade com que se degladiaram anteriormente, a Frelimo sempre com a faca e o queijo na mão, o lado contrário a rosnar com as armas. Foi um mero cessar-fogo, as partes incapazes de se reconciliarem. Os conflitos seguiram-se. O tempo foi passando.

Recentemente, o país viu-se envolvido em mais um escândalo em que 2 mil milhões de dólares em empréstimos fraudulentos foram usados para alguma da sua elite política, ao mais alto nível do Estado, obter benefícios de forma corrupta. Uns foram presos, outros continuam a usufruir do seu pecúlio. Predominantemente, com corajosas poucas excepções, a sociedade moçambicana assobia para o lado, com medo dos esquadrões da morte e dos sucessivos G-40s. A imprensa manda palpites muito ténues e não há oposição. Lá fora, eufemisticamente, refere-se ao regime como uma “democracia musculada” a resvalar para o autoritarismo puro e duro.

Entretanto velho, doente, alheado, desgastado, nos últimos anos, mais ainda passando por uma inédita euforia pelas catorzinhas (nisso de alguma forma ofendendo a alguma dignidade da sua companheira, a nada menos monumental Pamela dos Santos, que, justamente, o abandonou), Marcelino criou uma fundação, escreveu uns poemas e viveu pacatamente os seus últimos dias na mansão que lhe deram na Somershield, na esquina ao pé da antiga Sociedade de Estudos. Adoptou filhos. O seu marxismo impenitente foi pouco discretamente desacreditado e posto pelos seus acólitos na gaveta, respeitosamente, para não o ofender. Ele quase tudo ignorou. Ficou puro nas suas convicções, na sua lapela a nação que ajudou a criar.

O que tanto mais de notável é se se considerar que ele era um mulato culto num ambiente e numa organização em que, desde o primeiro momento, não negros cultos eram, comprovadamente, desconsiderados e rotulados de quase traidores só pelo mero facto de não serem pretos. Mas Marcelino foi sempre eficaz na sua dança, mortíferamente assim e sempre absolutamente fiel à causa da Frelimo e especialmente aos seus líderes (a excepção singular e gritante sendo o Dr. Mondlane, claro, que em 1968 já era um miscast na organização que supostamente liderava), sendo por isso sucessivamente recompensado com o estatuto de Intocável do Regime, desempenhando cargos da maior confiança e responsabilidade – sempre a um passo do poder máximo, especialmente no caso de Samora, o cavalo em que apostou em 1968 e 1969, com estrondoso sucesso. Dizem que Samora não ligava a isso das raças (duvido mas enfim) e parece-me que, para poder governar, ele acharia que tinha que ir buscar apoio e talentos onde os encontrasse. Se há um exemplo disso, ele é, de facto, Marcelino dos Santos.

E Marcelino tinha a vantagem de saber, sem ninguém ter que lhe dizer, que o seu lugar era sempre o de segundo atrás do líder. O que sempre soube fazer, de forma exímia.

A Eminência Parda do regime.

Economicamente, Moçambique hoje produz camarões, vende alguma electricidade aos vizinhos a partir da agora moçambicana Cabora Bassa, na Matola refina escória de alumínio que vem da Ásia e que a Mozal exporta logo de seguida, exporta algum carvão que vem de Tete e está em estágio de iniciar a exportação de gás natural, que se espera que traga alguma receita fiscal- e encha os bolsos pelo menos de alguns (empregos, nem vê-los, apesar da vigorosa e inútil ginástica reguladora da Vitória Diogo). A maior parte da população, que já se cifra em mais que 30 milhões de almas, sobrevive da agricultura de subsistência, do pequeno comércio e da prestação de serviços nas principais cidades e respectivas periferias. Os chineses, os sul-africanos e os indianos estão a tomar conta de tudo, a levar o ouro, as esmeraldas, as florestas e a pesca. E tudo o que se pode converter em dólares ou permita comprar prédios milionários em Maputo. Ninguém os pode parar. E ainda há o tráfico de droga, em que a sua longa costa se tornou numa rota necessária e conveniente. Daqui a trinta anos, serão 60 milhões de moçambicanos.

No mais, não se antevêem perspectivas de nada mudar significativamente, aparte haver mais bocas para alimentar e aparecerem mais uns ricos.

Moçambique, que é independente há 46 anos, sempre sob a égide da Frelimo, permanece um dos países mais pobres, mais corruptos e mais vulneráveis do planeta. Aguenta-se porque tem a África do Sul ali ao lado e porque continua a merecer, legitimamente, toda a ajuda que puder obter. Pois a miséria que prevalece, essa, também é verdadeira.

Quanto ao epílogo colonial, hoje já não há portugueses em Moçambique. Ou melhor, há alguns, são 0.0001% da população. Se bem que, localmente, ainda sabe bem falar-se deles de vez em quando, displicentemente e se calhar apropriadamente, sobre os ex-colonos e os alguns bimbos que vieram a seguir. Há algum investimento português, mas apesar das mais róseas profecias da câmara de comércio bilateral, os riscos são titânicos. A verdade é que há muito que os portugueses já viraram a sua atenção para outros mercados e outros destinos. Curiosamente, a TAP ainda mantém a sua rota para Maputo e o governo português continua a dizer que Moçambique é “muito, muito importante”, dando todos os anos milhões que os portugueses simplesmente não têm. Mas não é muito importante. É muito menos que isso. Portugal não é o Reino Unido e a CPLP não é a Commonwealth. O seu maior feito é ser o país onde fica o Benfica, que tem adeptos em Maputo. O actual presidente português, que passou lá uns breves tempos na juventude, quando o pai era o braço direito do sucessor de Salazar, diz nas entrevistas que ama o lugar e que quer ser sepultado lá quando morrer. Pois, que vá.

Recentemente, parece que o país se tem vindo a meter noutra guerra, desta vez centrada em Cabo Delgado, não se sabendo bem a que propósito, não se percebe ainda para quê e quem anda a mexer os cordelinhos. Já estão novamente a morrer civis inocentes moçambicanos e muitos mais a fugir das miseráveis casas onde sobrevivem.

Não sei se este é o país que Marcelino dos Santos sonhava que viria a ser em 2020.

Mas este é o país que deixou, hoje.

Certamente, num ritual pirotécnico e algo quixotesco, herdado dos tempos da Ditadura, o regime provavelmente irá proclamá-lo novamente Herói da Nação e colocar uma medalha no seu caixão, que depositará numa caixa lá na Praça a caminho do Aeroporto, solenemente.

E depois ficará mais ou menos esquecido nos livros de história.

Bem ou mal, depois se verá.

Marcelino dos Santos mostra as medalhas, anos 80.

26/01/2020

SAMORA MACHEL ENFERMEIRO? OS FACTOS

Filed under: Samora Machel foi enfermeiro? — ABM @ 12:50 am

Há anos que venho lendo textos mais ou menos líricos sobre o percurso pessoal daquele que em 1969, após Chissano se ter esquecido de proteger o Dr. Mondlane da alegada bomba da PIDE, se tornou no warlord  incontestado da Frente de Libertação de Moçambique, de onde transitou directamente para Presidente do novo regime de partido único. Cargo que provavelmente teria sido vitalício (bem, foi) não tivesse acontecido o episódio algo rocambolesco do despenho do avião presidencial russo em Mbuzini.

Um facto central do período do jovem Samora Machel antes da Frelimo, é o de – alguns alegam – ele ter sido enfermeiro em Lourenço Marques e na Inhaca, no final dos anos 50 e início da década de 1960. Há quem jure que ele foi enfermeiro. Outros apenas o aceitam como facto.

O episódio mais recente foi o testemunho do João de Sousa, que, a propósito duma efeméride (a data de nascimento do Guilherme de Melo, no Big Slam), refere que Samora fora enfermeiro.

Pois.

Só que não foi.

Aí há uns trinta e tal anos, ao falar em Coimbra com a Mãe de um amigo de infância, o Diogo, ela, que foi uma enfermeira de renome em Moçambique, explicou-me que ele gostaria de ter sido enfermeiro e até tentou obter a certificação, mas chumbou o curso.

O nome dela (que ainda vive em Coimbra e conheceu o jovem Samora perfeitamente) é Maria Fernanda de Gouveia Pinto. Os dois davam-se tão bem que, supostamente, ele se foi despedir dela antes de se ir juntar à nascente Frente de Libertação no Tanganica.

De facto, ela fez parte do júri que administrou o curso de enfermagem no último trimestre de 1961, no qual Samora chumbou o exame final, com uma nota de 8 valores.

E portanto não era, não foi, enfermeiro. Pode ter trabalhado como auxiliar de enfermagem (que não é a mesma coisa), maqueiro, etc, mas Samora nunca foi enfermeiro.

O documento em baixo, uma cópia do Boletim Provincial em Janeiro de 1962, refere o chumbo de Samora Machel.

 

O Boletim Provincial, Janeiro de 1962.

 

Detalhe. O nome de Maria Fernanda Gouveia Pinto em baixo. O de Samora mais em cima.

25/01/2020

A ESTREIA DO FILME O ZÉ DO BURRO EM LOURENÇO MARQUES, JULHO DE 1971

Filed under: Estreia do filme O Zé do Burro 1971 — ABM @ 3:00 pm

Por cortesia dos senhores do Arquivo da RTP, eis um minuto e meio da estreia do filme “O Zé do Burro”, realizada por Eurico Ferreira, no Cinema Dicca, na Baixa de Lourenço Marques (construído há pouco sobre os escombros do Varietá, em 27 de Julho de 1971, exactamente um ano depois de António Oliveira Salazar ter morrido.

Eurico Ferreira com uma jovem no palco do Cinema Dicca no dia da estreia do “Zé do Burro”, 27 de Julho de 1971.

Na altura com 11 anos, fui ver o filme, não sei bem porquê, talvez porque me tinham vendido a ideia que era um filme divertido para miúdos verem. E recordo-me de na altura o filme ter sido muito badalado, o que era incomum pois ninguém, mas ninguém, passava filmes portugueses em Lourenço Marques.

Na verdade, achei o filme tão patético que até eu achei que aquilo era demais. Aquilo nem para propaganda do regime servia, tão primitivo era na fórmula da missão “civilizadora” dos portugueses em África, em que o pretinho era uma criança imberbe e o mais básico patego português das Boiças um epíteto da modernidade. Eu de facto ri-me muito a ver o filme, mas ri-me por ser tão ridículo.

Ver o vídeo premindo aqui.

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