THE DELAGOA BAY REVIEW

25/11/2009

Bryson e o Paradoxo de Holst


(Júpiter, de Os Planetas, composto por Gustav Holst)

por ABM (Cascais, 25 de Novembro de 2009)

Numa crónica em que salientei o grande prazer que tive em ler o lvro de Bill Bryson intitulado A Short Story of Nearly Everything, a Sra Baronesa de Lioness referiu (acho que correctamente) que a demais obra dele era, na melhor das hipóteses…menos recomendável. Ainda que antes e depois de ler este livro, Bryson era-me alguém perfeitamente desconhecido (cacei-o numa prateleira da Exclusive Books em Nelspruit) não me surpreendi.

Pois não é a primeira nem a última vez que vejo isto acontecer, e que aqui chamarei o Paradoxo de Holst.

Eu explico.

Nos meus tempos de mufana, a minha vida centrava-se, para além dos deveres escolares, no Desportivo, onde, cerca dos 12 anos de idade, era conhecido no clube por ser irmão da minha irmã, uma conhecida nadadora, campeã nacional etc e tal – e filho do pai BM, que toda a cidade conhecia. Nada de material daí advinha – excepto algo, que para mim na altura era de extrema importância. Havia no clube um senhor, que na altura parecia-me ter 200 anos de idade mas que devia ter uns 50, que era um doente do Desportivo e que era também bilheteiro na plateia do Cinema Gil Vicente. E que me conhecia bem.

Naquela altura, como agora, os filmes eram classificados em termos da idade da audiência. E ir ao cinema em Lourenço Marques era um fenómeno cultural e social que hoje ninguém entenderia. Era “o” divertimento do quotidiano semanal. A maioria dos programas de fim de semana passavam por ir ao cinema e as pessoas vestiam-se a preceito para ver um filme. As salas de toda a cidade estavam repletas aos fins de semana. Só que naquela altura era mandatório não deixar entrar alguém com 12 anos para ver um filme para maiores de 17 anos. O que então se aplicava a mim – excepto no Cine-Teatro Gil Vicente, onde este senhor me deixava entrar e ver o que quisesse. A entrada era uma operação discreta, eu só entrava quando a sessão já começara e às escuras, sentava-me nas cadeiras de trás, com a Anabela Gouveia.

É preciso dizer que naquela altura se num filme aparecesse o canto da parte de cima duma maminha a 200 metros de distância, o filme era logo classificado para maiores de 17 anos pela Comissão de Censura.

Para mim o bilheteiro – o Senhor Santos – era um homem modesto e pobre e sem história, até que, mais tarde descobri, na sua juventude ele tinha sido campeão de atletismo do Desportivo durante anos e anos, sendo em toda a sua vida a sua única obra de que se orgulhava e por que era conhecido. Lembro-me bem de uma fotografia dele repleta de medalhas ao peito, que está mais abaixo.

O Senhor Santos podia ser pobre e o bilheteiro da plateia do Gil Vicente, mas no Desportivo ele era um Senhor, primus inter pares, respeitado como um campeão, um exemplo de valor e excelência do Desportivo – detentor de uma Águia de Cobre, uma das raras honrarias que o clube atribuía (em 1972 recebi um medalhão de “Mérito no Desporto” de um Eduardo Paixão mal humorado).

alberto matos santos

Tive uma surpresa semelhante com a indescritível, arrepiante beleza da música que acima reproduzo graças a esta maravilha que é o Iutube, e que ouvi pela primeira vez no Rádio Clube de Moçambique por essa altura. Uma pequena parte de Júpiter tocava no jingle de abertura dum programa qualquer que eu costumava ouvir, e sempre tive a curiosidade de saber do que se tratava. Anos mais tarde, já a viver nos Estados Unidos, e mais velho, descobri que fazia parte de uma obra intitulada Os Planetas, por um tal de Gustav Holst. Quando mais tarde ouvi Os Planetas na totalidade, fiquei estupefacto, completamente rendido. Meu Deus, que beleza. Quem era este Holst? que tesouros me aguardavam?

O fascínio e a desilusão, quando mais tarde pesquisei o homem, a sua vida e obra.

Holst foi um inglês, já de si uma relativa raridade no que eu considerava ser o créme de la créme da composição clássica. Nasceu pobre, foi doente toda a vida, nunca teve dinheiro nenhum e para ganhar a vida dava aulas de música numa escola para meninas algures perto de Londres.

A sua obra de composição sinfónica foi a meu ver relativamente medíocre ou decente – excepto com Os Planetas, onde parece que, se há um Deus, Ele desceu à Terra e ditou a mais excepcionalmente sublime das composições a este apagado, tímido, doente, de outro modo modesto professor de música inglês, que nunca conseguiu viver do que compunha.

Tal como o bilheteiro do Gil Vicente, Holst viveu uma vida discreta e atribulada, sem grandes concretizações, mas no meio daquele aparente mar de cinzentismo havia em ambos algo em comum: a realização de uma obra por que, se por mais nada, eles serão sempre lembrados.

Por um momento indelével, estiveram junto com os deuses.

O que, de certa forma constitui um paradoxo – que eu, algo jocosamente, chamo de Paradoxo de Holst. Gente cinzenta uma vida inteira, mas que algures e sem razão aparente, fizeram algo de absolutamente excepcional.

Parece-me que, salvaguardadas as devidas proporções em cada caso, aconteceu o mesmo com o nosso Bill Bryson(se a Exma Senhora D Vera ler isto leia-se “Richard”) no seu livrinho.

Pode ser que toda a obra de uma vida dele seja banal. Mas acho que as descrições que ele fez sobre o Universo no livro que mencionei brilharam e são memoráveis.

Poderá ser este o seu momento de glória num mar de realizações inconsequentes.

Que, num mundo cinzento, brilha como uma estrela cadente no céu mais escuro.

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