THE DELAGOA BAY REVIEW

01/12/2023

CATARINA DE BRAGANÇA E O 1º DE DEZEMBRO DE 1640

Filed under: Catarina de Bragança e o 1 de Dezembro — ABM @ 1:06 pm

Imagem retocada e colorida.

A primeira vez que prestei atenção a Catarina de Bragança e a data de 1 de Dezembro de 1640 foi em Nova Iorque, quando, numa visita àquela cidade, a Glória Melo, que era a exuberante relações públicas da TAP para a América do Norte (e que eu conhecera com 16 anos em Montréàl, no Canadá, onde ela estava a viver então) me disse que eu devia conhecer o Manuel Andrade e Sousa, na altura um relativamente jovem executivo a viver naquela cidade, e que criara uma associação cívica chamada Amigos da Rainha Catarina, e que organizava um baile anual formal em honra da rainha portuguesa no salão nobre do Park Plaza Hotel, um enorme e luxuoso hotel que Donald Trump, então um conhecido supostamente milionário do imobiliário local, tinha comprado e restaurado.

O Manuel, que parecia que quase vivia para isto, procurava angariar dinheiro para mandar fazer uma estátua evocativa da rainha, para colocar em Nova Iorque.

Na altura achei aquilo tudo muito rebuscado, eu ainda não era craque no que respeitava a rainhas portuguesas (soberanas, só houve duas) e ainda não havia internet nem google nem wikipédia. Para se saber alguma coisa nos anos 80, tinha que se ir às bibliotecas e passar lá horas a pesquisar e tomar notas à mão. O que eu fazia por desporto.

A Friends of Queen Catherine era uma ONG devidamente constituída, os donativos podiam ser deduzidos para efeitos fiscais e tinham uma longa e sonante lista de patrocinadores, desde Sua Alteza Duarte Pio, o actual Duque de Bragança, até um cocktail de personalidades e instituições que o Manuel aturadamente ia recrutando e cortejando.

Gravura alegórica de S. Freeman (séc. XIX) de Catarina de Bragança, filha do Duque de Bragança, depois João IV, fundador da quarta e última dinastia real portuguesa que se estendeu entre 1 de Dezembro de 1640 e 5 de Outubro de 1910. Apesar de contradicentes entre si, as duas datas ainda hoje são feriados nacionais portugueses. No topo da imagem, o brasão real da que assinava “Catherina R.”. Há várias gravuras de Catarina, desde jovem e magra a esta, presumo que depois de comer uns bifes e uns pastéis de nata.

A epopeia do Manuel Andrade e Sousa afinal tinha a sua lógica. Catarina foi rainha, não de Portugal, mas sim de Inglaterra (por casamento com o rei Carlos II), que na altura estava a formar umas pequenas colónias no que são hoje os Estados Unidos. E a principal urbe (na realidade uma feitoria) de uma dessas colónias, originalmente holandesa, era a actual Nova Iorque, que na altura se chamava Nova Amsterdão e era um fortezinho e umas casas no Sul da Ilha de Manhattan. Por coincidência, na altura em que Catarina se casou com Carlos II, os ingleses tomaram Nova Amsterdão aos holandeses, mudaram-lhe o nome para o que tem agora e isso incluiu tambám baptizarem um dos seus maiores bairros com o nome Queen’s, em honra de….Catarina. Ou seja, o Bairro da Rainha. Queens, ao lado de Manhattan, é um vasto bairro populoso e digamos que menos vistoso que a ilha adjacente e significativamente habitado por americanos de ascendência africana, o que importa para esta história.

Para fazer uma longa história curta, apesar de vários “bailes da Rainha” no imponente Park Plaza (eu fui a dois) e de aí ter apertado a mão a Trump (o que hoje parece surreal) e a Sua Alteza o actual Duque de Bragança, o fim da história foi inglório. Quando quase já tinha tudo pronto para fazer a estátua e a colocar num pedestal em Queens mesmo em frente à sede das Nações Unidas, do outro lado da margem ocidental do Rio Hudson, surgiu um dos primeiros casos que conheci de wokeismo, ou do politicamente correcto: alguém finalmente foi ver quem era Catarina, estabeleceram a ligação Catarina de Bragança-Portugal-potência colonial esclavagista-escravos-racismo-horror, meia dúzia de organizações de Queens insurgiram-se. apareceram uns grunhidos na televisão sobre o assunto e tudo acabou em nada.

Não ajudou que precisamente na altura dos finalmentes da estátua de Catarina, surgiu um (excelente) filme de Steven Spielberg, chamado Amistad, sobre um episódio real de tráfico de escravos negros trazidos de África para a América à paulada e numa embarcação espanhola, ocorrido em 1839, em que havia lá um ou dois portugueses. E o caldo ficou entornado.

No fim, apesar de bem intencionado, o Manuel fartou-se daquilo tudo e desapareceu lá para os lados de Cape Cod, em Massachusetts, sem antes despachar uma versão inicial da estátua para Portugal, onde, discreta e inconsequentemente, foi colocada perdida num jardim qualquer de Lisboa, onde ainda se encontra. Hoje, o bairro de Queens permanece Queens e praticamente ninguém sabe da sua ligação a Catarina de Bragança.

Catarina e o 1 de Dezembro de 1640

Hoje, jocosamente, a maior parte de quem sabe dois dedos de história em Portugal refere que, enquanto foi rainha de Inglaterra, Catarina introduziu o hábito de beber chá e o uso de talheres nas refeições, sugerindo basicamente que os ingleses eram uns javardos à mesa e que ela ao menos fez isso. Apesar de poder ser verdade, o contributo maior de Catarina não foi em benefício do país onde supostamente reinou.

O seu casamento, digamos que de conveniência como eram quase todos os casamentos reais na altura, beneficiou Portugal.

Remontemos setenta anos relativamente a 1640. A grande dinastia de Avis (estão quase todos sepultados no Mosteiro da Batalha), a segunda de Portugal, e que, pouco coincidentemente, nascera em 1385 de um esforço de se evitar que Portugal ficasse sob domínio espanhol, acabava muito mal, com as rotas comerciais criadas pelos portugueses disputadas pelos espanhóis, ingleses, franceses e holandeses e o que se tornaria em mais uma crise sucessória quando Sebastião, o penúltimo rei Avis, um jovem de 25 anos, solteiro e desejoso de conquistar partes do que é hoje Marrocos, aposta todos os cavalos nessa operação, e não só perde como morre (ele está sepultado numa caixinha no Mosteiro dos Jerónimos – supostamente). Sem descedência directa nem irmãos, a coroa passa para um tio velhote e padre (um cardeal!), que morre logo a seguir. A outra alternativa na linha dinástica era o monarca de Espanha, o poderoso Filipe II. A nobreza portuguesa, num vacilo formal, aceita a sucessão. Portugal passa a ter um rei espanhol, mantendo-se em teoria independente de Espanha. E isso durou sessenta anos, até que essa mesma elite mudou de ideias. Sim, porque tudo aparenta que o povão não ia lá muito com o arranjo. Após uma breve conspiração em que se recrutou João, o então 8º Duque de bragança, iniciou-se a conjura em Lisboa no dia 1 de Dezembro de 1640 e duas semanas depois ele foi aclamado rei.

E isso é o que se assinala hoje.

Mas aquilo não era favas contadas. Espanha era um potentado e o neto de Filipe I não deixaria Portugal escapar facilmente. Felizmente para os portugueses, os espanhóis andavam muito ocupados com outras guerras e ou falhavam ou não tinham recursos para submeter os portugueses, que por sua vez, faziam os impossíveis para sobreviverem a estas situações . A coisa prolongar-se-ia durante décadas, para além da morte de João IV em 1656. A Espanha só voltaria a reconhecer a independência de Portugal com o Tratado de Lisboa, assinado em 1668 – 28 anos após o golpe de 1 de Dezembro.

A peripécia está toda reflectida na Praça dos Restauradores na Baixa de Lisboa.

A descendência de João IV – sete filhos da mulher e uma filha de uma qualquer – foi aparentemente uma pequena desgraça, sendo que o primeiro filho Teodósio, que é descrito como um grande príncipe, morreu cedo (1634-1653), o que, quando João morre em 6 de Novembro de 1656 deixou o trono de Portugal nas mãos de outro filho, Afonso (1643-1683), que não podia ser pior. Descrito muito generosamente na Wikipédia como ” mentalmente incapaz de governar, foi deposto do trono pelo irmão D. Pedro (1648-1706) que o sucedeu no trono quando ele morreu”. Aquilo foi tão mau, tão mau, que os historiadores ainda hoje têm dificuldade em descrever quão mau aquilo foi. Basta recordar que às tantas arranjou-se um casamento entre ele e a princesa Maria Francisca de Sabóia. Eles estiveram casados dois anos, mas nunca consumaram (maneira simpática de dizer que nunca tiveram relações sexuais). Depois de, com o apoio da corte, despacharem Afonso, ele é efectivamente sucedido pelo irmão Pedro – que procede a anular o casamento e casa ele com a Maria Francisca, que assim foi rainha consorte duas vezes, por casamento com os dois irmãos. Mas da segunda vez Maria foi rainha durante apenas duas semanas, após o que morreu. Pedro casaria uma segunda vez, e foi da segunda mulher, Maria Sofia de Neuburgo, alegadamente escolhida pela reputação “parideira” da sua família, que ele finalmente teve o futuro rei de Portugal, o fleugmático D. João V. Afonso foi mais ou menos afastado do poder primeiro para a Ilha Terceira, depois para o palácio de Sintra, onde morreu após anos de loucura.

Catarina

Enquanto esta saga dinástica dos primeiros Braganças reais decorria, com o destino de Portugal sempre na corda bamba, temos a nossa Catarina.

Catarina (1638-1705) parece ter sido infeliz e desgraçada toda a vida. O seu casamento com Carlos II de Inglaterra em 1662 resultou de um tratado de apoio mútuo entre Portugal e aquele país em 1661 – para, em princípio, ajudar a resistir aos embates de Espanha – e porque Carlos II, que também passava pelo seu próprio processo de “restauração” após a “República” de Oliver Cromwell e que estava endividado até à ponta dos cabelos, precisava muito muito muito de dinheiro. E dinheiro e bens os portugueses pagaram. Sendo Carlos e a Inglaterra protestantes, a mui católica Catarina foi sempre destoada pela corte inglesa, e ainda mais porque apesar de três abortos espontâneos, não conseguiu dar um herdeiro a Carlos. Ainda por cima problema dela, já que toda a gente sabia que Carlos, um libidinoso inveterado, tinha uma abundância de filhos das suas várias amantes. Após a morte de Carlos em 1685, a função da aliança cumprida e a independência de Portugal assegurada, Catarina regressa a Portugal em 1693 e morre em 1705.

Create a free website or blog at WordPress.com.