THE DELAGOA BAY REVIEW

24/03/2011

A LÍBIA EM TEMPOS DE MUDANÇA

Filed under: Internacional, Khadafi e a Líbia — ABM @ 3:02 pm

José Sócrates numa recente viagem a Tripoli.

A actual situação na Líbia espelha a eterna dificuldade em conciliar a formalidade das relações entre nações-estado e o facto de num ou mais estados perdurarem situações internas não democráticas, ainda que aparentemente estáveis.

A situação de contestação interna na Líbia não surje num vácuo. Todos assistimos, nalguns casos com enorme surpresa, ao que pareceu uma onda de contestação em toda a orla islâmica da fronteira Sul da Europa.

A surpresa derivou de percepções fixas do que ali se passava. A percepção de que os regimes, as culturas, as sociedades, a particularidade da presença de uma religião apercebida como pouco afeita aos ditames de Montesquieu e aos efeitos, nas sociedades europeias e norte-americana, da revolução francesa.

E ainda às particularidades físicas, geológicas e históricas da região. Na maioria dos casos, são desertos com petróleo e gás por debaixo do chão que foram em tempos recentes dominados, por algum tempo, por países da Europa.

Estando geograficamente localizados no continente africano, a meu ver são “africanos” – com aspas. Ainda que a designação do continente – África – dali tenha sido cunhado, aparentemente tendo sido o nome de um general romano, Africanus, que ali fez nome quando o mundo organizado naqueles lados tinha como epicentros Roma, Atenas e Alexandria e o Mar Mediterrâneo era um lago em redor e dentro do qual se viajava.

A Líbia é apenas um destes territórios. Fronteiras coloniais, independência após a II Guerra Mundial, petróleo debaixo do chão que baste, uma população ainda meio fragmentada em termos étnico-tribais.

E há 42 anos seguidos gerida com mão de ferro pelo Sr. Khadafi.

Nada demais. No Egipto e no Iémen, Tunísia, etc, onde em semanas recentes houve revoltas que conduziram ou vão conduzir a derrubes de regime, os titulares andam por lá há vinte, trinta, quarenta anos.

Mais importante, era fácil constatar haver nessas sociedades um fosso entre o tradicional pacto entre povo e ditador (pacto aqui usado no sentido mais lato possível) e uma nova classe e uma nova geração que parece exigir outro ordenamento político-social.

Obviamente, o petróleo ajuda. Pelas suas características, o negócio do petróleo ajuda sempre o regime e o homem forte do regime, seja onde ele fôr, seja onde estiver. Ele pode comprar, reprimir, chantagear, negociar a sua posição. Pode comprar a sua posição, comprar influência dentro e fora das suas fronteiras, roubar e enriquecer desalmadamente, até fazer alguma obra.

Os principais problemas são dois. O primeiro, é que eventualmente o povo farta-se do regime e não parece haver mecanismo de sucessão. O segundo, é que as vastas fortunas e influência associadas ao negócio do petróleo, afuniladas nas mãos do homem forte do regime, dão-lhe uma enorme capacidade de resposta.

É o caso na Líbia. Ou melhor, teria sido, não fosse a circunstância dos antecedentes recentes, especialmente na Tunísia e no Egipto.

E a localização do país, mesmo em frente à península italiana.

E a percepção de que o Sr. Khadafi pretendia resolver a constestação no seu país pura e simplesmente matando os seus opositores, aparentemente gente normal que já estava farta dele e do seu regime.

Rapidamente, e sem que antes, em Portugal, um litro de gasolina (em boa parte graças ao peculiar sistema de preço e distribuição portugueses) chegasse a cerca de 1.6 euros, um conjunto de países agiu. Decidiram que era tempo do Sr. Khadafi sair e que o morticínio esperado deveria ser impedido. Chegou-se a um consenso muito precário quanto ao que fazer e para já, numa semana de acções militares concertadas, foi eliminada a capacidade do regime de usar o seu espaço aéreo para ataques militares contra uma resistência desorganizada e desarmada.

O que se vai seguir nos próximos dias, não sei.

O que tudo isto significa, não sei também. É um bocado cedo ainda para aferir. Talvez signifique que afinal as pessoas nos países onde estes eventos esttão a ocorrer sejam como nós, que gostariam de viver em paz em casa e ter governos em cuja gestão possam ter alguma opinião. Talvez signifique que a fasquia para a avaliação dos regimes corruptos e imorais tenha subido. Talvez signifique que entrou-se numa era em que, mesmo em ditaduras, de um tipo ou outro, tenha que haver um novo pacto entre o regime e o povo, sem o qual a estabilidade, fundamental para o desenvolvimento económico e social, sejam postas em causa.

É preciso esperar para ver.

Mas que o que aconteceu está a fazer muita gente pensar um pouco por toda a parte sobre o que significa governar e ser governado, isso é inegável.

E é bom.

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