THE DELAGOA BAY REVIEW

17/12/2011

ZECA AFONSO EM LOURENÇO MARQUES, 1964-1967

Filed under: Música, Zeca Afonso e Moçambique — ABM @ 2:38 pm

José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos, ou Zeca Afonso, falecido em 1987, e cuja música marcou uma era e permanece um valor apreciado, teve uma relação indescurável com Moçambique.

Entre 1937 e 1938 esteve brevemente em Moçambique (8-9 anos de idade) onde viveu pela última vez juntamente com os pais e irmãos, que viviam em Lourenço Marques (e tanto quanto eu saiba, viveram, até 1974).

Dois dos seus filhos cresceram em Lourenço Marques.

A filha mais nova, Joana, nasceu em Moçambique em 1965

Entre 1964 e 1967 deu aulas de geografia no Liceu Pêro de Anaia na Beira (1965) e em Lourenço Marques no Liceu António Enes, este último que eu frequentei brevemente entre os 13 e os 14 anos.

Em 1967 regressou à então Metrópole, deixando os filhos com os seus pais.

Zeca Afonso, ao centro de óculos e gravata, com os rapazes em Lourenço Marques, no Liceu António Enes. A foto é do Filipe Vieira.

Na Beira, quando deu ali deu aulas por um período, musicou Brecht na peça A Excepção e a Regra e colaborou com o Teatro de Amadores da Beira.

A sua Canção de Embalar foi também composta em Lourenço Marques em 1965. “Toada medievalesca em tom menor. Letra e música ocorreram quase simultâneamente. A estrela d’alva surge acima do horizonte para os lados de Xipamanine com a cumplicidade das res­tantes. Quando os adultos dormem e as luzes se apagam nas janelas os meninos levantam-se e vão cumprimentar as estrelas.”

Sobre a canção do Desterro (emigrantes) do Álbum “Traz outro amigo também” de 1970, José Afonso terá dito: “[foi] sugerida em Lourenço Marques, pela leitura dum artigo da Seara Nova sobre as causas da emigração portuguesa. Tenta-se evocar a odisseia dos forçados actuais, partindo em modernas naus catrinetas, como os Mendes Pintos de outras épocas, a caminho dum destino que na História se repete como um dobre de finados.”

Sobre como foi em parte Lourenço Marques para Zeca Afonso, José de Viseu escreveu o seguinte: “Conheci-o na Beira, aí por alturas de 1959. Era professor do Liceu. Pediu-me para lhe arranjar um guitarrista, pois sabia compor, cantar e de que maneira, mas os seus conhecimentos na guitarra eram parcos, como me confessou.
Falei com o Fernandes, amigo, que tinha um conjunto que tocava no Beira Terrace nos fins de semana e feriados.
O Fernandes era pai da Zizi, uma cantora de muito mérito e que num concurso promovido pelo Rádio Clube de Moçambique, “Moçambique a cantar” ou coisa parecida, foi destronada por uma cançonetista bastante inferior, mas que era filha do então Presidente da Câmara Municipal da Beira. Para ser agradável ao Zeca, que já tinha nome pelas canções que se ouviam muito em segredo, o Fernandes lá tentou o guitarrista. Não soubemos se o conseguiu ou não pois entretanto fomos transferidos para Lourenço Marques. Aqui, decorridos alguns meses encontrámo-nos de novo nas tertúlias do Café Continental, onde na companhia do Dr. Filipe Ferreira, Dr. Barradas, mais tarde professor do Conservatório Nacional, Armando Morais, o médico dos C.F.M., Zeca Afonso, sempre só e nós, com as respectivas esposas, conversávamos sobre os problemas que então nos inquietavam. E eram muitos. A guerrilha no norte, a política na Metrópole, a incerteza de um futuro que muitos de nós acreditávamos ser de crise grave, a polícia secreta, que sabíamos estar ali ao nosso lado tentando escutar as nossas conversas, as injustiças que havia em determinados sectores da Administração Pública, nomeação de pessoas colocadas directamente pelo Governo Central em lugares que gostaríamos de ver ocupados por moçambicanos, a falta de liberdade de imprensa que era obrigada a publicar notícias, que só poderiam ser compreendidas pelas entrelinhas, a leitura do Le Monde, que o Armando Morais recebia directamente do Consulado Geral da França em Lourenço Marques e que era proibida e que passávamos uns aos outros para ler sofregamente pois dava especial realce às notícias sobre Portugal, a politica ultramarina do governo de então e a forma como era entendida a guerrilha pelas nações europeias e Estados Unidos e a possível independência de Moçambique, tendo em vista a posição dos Democratas de Moçambique, bem como as ideias oriundas da Frelimo, tudo bem reflectido pelos vários comentadores do Le Monde.
O Zeca muito dado a explosões de revolta, exprimia-se quase sempre em voz alta, não se importando que estivessem ou não na vizinhança os pides que vigiavam o local. Alguns não disfarçavam e olhavam em desafio para a nossa mesa, como se fossemos nós agentes do mal…Sabíamos quem eram, pois não era normal que para ali viesse tanta gente, desconhecida, com aquela côr “muito branca”…de quem chegara recentemente da Metrópole. As nossas tertúlias do Café Continental!… Ainda hoje nos lembramos de como nos faziam bem…”

Talvez a memória mais gráfica desses tempos seja a que se segue, de Guilherme Pereira:

“Nos meados dos anos sessenta (1965), aluno do então 4º ano do liceu, em Lourenço Marques, vi na pauta que esse ano teria como professor de geografia e história um tal de José ( nota: a pauta omitiu o nome Afonso) Cerqueira dos Santos, ilustre desconhecido. O professor, soube depois, tinha sido proíbido de ensinar no então continente e desterrado em Moçambique, sob condição, da PIDE, de não se meter em política. Sentado na primeira fila da aula, reparei no primeiro dia de aulas que o professor trazia um par de peúgas de cores diferentes. Penteava-se com os dedos. O ar era displicente, o sorriso cúmplice e doce. Tais ingredientes, por serem nesse tempo contra a corrente, fascinaram-me. Apresentou-se timidamente e omitiu a actividade no mundo das cantigas. Era um professor excepcional. Incitava-nos à investigação e a questionar tudo, desde os manuais a ele mesmo. Retive para sempre uma frase:” Não estou aqui para impingir, mas para insistir e resistir, convosco de preferência”.

Um dia, na discoteca Baily, em Lourenço Marques, descobri entre os velhos discos em saldo, um single com o meu professor agarrado a uma velha viola. Zeca Afonso. Duas músicas: “Menino do Bairro Negro” e “Natal dos Simples”: Comprei o disco. Na aula seguinte, quando os colegas tinha saído, confrontei o professor com o disco. Disparou, estupefacto: “Onde é que arranjaste isso?”. Expliquei o que se tinha passado. O espanto do mestre era legítimo – ele fora expulso de Portugal e proscrito nas rádios justamente por causa daquele disco e das posições que defendia em defesa dos humilhados, contra a hipocrisia intelectual dominante, todos os dogmatismos e o regime fascista.

Havia, no então Rádio Clube de Moçambique, um programa em que semanalmente eram divulgados os cantores mais votados. Elvis Presley liderava. Organizei no liceu uma votação para o disco do nosso professor. Teve adesão maciça. Na semana seguinte, Zeca Afonso liderava o “Hit Parade” e assim esteve durante nove semanas. Tive que emprestar o disco ao radialista João de Sousa, mais tarde meu colega, que desconhecia o autor. A PIDE acordou. Mandaram confiscar o móbil do crime, sentenciando a proibição do cantor. Por essa altura, já eu andava em tertúlias clandestinas com o meu professor. Ele cantava. Eu dizia o “Mostrengo” de Fernando Pessoa. Imaginam o resultado: no fim do ano, a PIDE decretou novo exílio ao professor, que foi ensinar para o Liceu Pêro de Anaia, na cidade da Beira, a mais de 500 quilómetros. Depois, seria recambiado para Portugal e definitivamente banido do ensino.”

E uma nota do Professor João Boaventura, que foi meu professor de ginástica no Liceu António Enes: “Lembro-me de [Zeca Afonso] me ter perguntado qual era a actividade desportiva que lhe podia aconselhar, tendo-lhe indicado o judo porque estava em Lourenço Marques um colega meu, o Prof. Pedreira, a ensinar a arte marcial. E de facto foi praticante interessado e aplicado.”

Para quem quiser ler mais umas coisitas, o Alexandre Felipe Fiúza escreveu um texto com 21 apetitosas páginas algo pomposamente intitulado Representações do Espaço Africano na Moderna Canção Popular Portuguesa: O Caso José Afonso. Que pode ser lido premindo AQUI.

E aqui vai a Canção de Embalar:

E um testemunho em vídeo sobre os seus tempos de Moçambique:

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