THE DELAGOA BAY REVIEW

01/06/2018

PICCANINNIES VEM DE PEQUENINOS?

Filed under: Pickanninny ou Pequenino — ABM @ 11:21 pm

Hoje, 1 de Junho de 2018, é assinalado como o Dia Internacional da Criança. Nem de propósito, um Exmo. Leitor Especial contactou-me para apontar algo que eu já havia lido mas que na altura não fazia a mínima ideia do que significava.

Veja o Exmo. Leitor estas imagens de Lourenço Marques e da Beira, no início do Séc. XX, e em especial as legendas.

 

Postal de Lourenço Marques, início do Século XX. A tradução inglesa refere-se às crianças na imagem como piccaninnies.

Picc article Beira.jpg

Postal da Beira

Picc Article Lazarus

Postal dos Lazarus, Lourenço Marques.

Confesso que nunca tinha ouvido falar deste termo, picaninies, que surge aqui num dos postais como tradução para “crianças indígenas”. Mas mesmo aí supus que não tivesse significado ou conotação especial.

Mas nem sempre é assim. O termo inglês/boer kaffir, em português “cafreal”, que penso que inocentemente, no caso português, descreve um não cristão, e que sobreviveu quase inocentemente na culinária moçambicana como uma forma de grelhar frangos (a galinha à cafreal do Piri-Piri em Lourenço Marques era famosa), na vizinha África do Sul tanto afectou a maioria negra pela sua natureza insultuosa e uso pelos brancos locais (supostamente, os boers), que, após o fim do regime de minoria branca em 1994, a sua utilização foi decretada crime com direito a prisão e tudo.

Em vários postais de Moçambique da primeira fase da era colonial africana, invariavelmente a tradução para o termo “indígena” ou “preto”, é kaffir.

No primeiro caso, o tal de piccaninny, como me enganei quanto ao seu significado. Como felizmente hoje pode-se fazer uma consulta rápida na internet, digitei a palavra “piccaninny” e descobri que:

  1. em quase todo o mundo anglófono, incuindo os Estados Unidos da América, a Austrália e Nova Zelândia, é um termo considerado profundamente ofensivo e racista, pelos visados, e é geralmente dirigido a não-brancos;
  2. Em vários países (muitos outros, incluindo vários países africanos, das Caraíbas, etc) o termo piccaninny parece manifestar-se de várias formas;
  3. poderá ter origem na palavra portuguesa “pequenino”, que no Século XIV se escrevia “pequeninno”. Há quem refira que a origem possa ser na língua castelhana. Entre uma e outra versão, penso que a origem portuguesa poderá ser mais credível, se bem que, quem como eu, constata esta situação pela primeira vez, surpreende pela (longa e complexa) evolução etimológica, numa língua estrangeira, de um significado à partida aparentemente inocente, para um insulto racista. Há evidências, no Século XVIII nos Estados Unidos, de o termo significar, literalmente, qualquer coisa pequena, não apenas crianças. Mas esse significado eventualmente perdeu-se. Ficou o insulto. Na língua portuguesa, definitivamente, pequenino não retém estas comotações.

Tão recentemente como há dois anos, quando Boris Johnson, o actual e algo estapafúrdio ministro dos negócios estrangeiros do Reino Unido, terá proferido a palavra algures , daí resultou uma verdadeira tempestade de críticas e acusações de racismo.

Isto porque, descobri, o tal termo “piccaninny”, é usado há centenas de anos no mundo anglófono para rotular essencialmente, por britânicos (e americanos e afins) miúdos não brancos, depreciativamente.

Se de facto o termo teve origem na língua portuguesa (falta fazer esse estudo pelos entendidos nesta língua, que pelos vistos estão a dormir) há quinhentos anos, seria uma improvável herança dos tempos em que os portugueses andavam por aí no mundo a descobrir sítios para fazer negociatas e tentarem enriquecer depressa.

Pessoalmente, não tenho a impressão que esses portugueses antigos fossem particularmente racistas, no sentido em que tal seria, obviamente, mau para os negócios nem o registo das primeiras sortidas pelo mundo o comprova. Aliás, sendo entre os primeiros europeus a chegarem a tantos lugares pelo mundo, deve ter sido qualquer coisa de insólito aquilo que viram e aquilo com que tiveram que lidar, sem terem, inicialmente, qualquer preparação para tal. Eram, notoriamente, adversários de muçulmanos, que aliás reciprocavam à letra em relação aos cristãos. Mas isso era comum em quase toda a Europa desde o fim da Idade Média, a braços com uma guerra religiosa – e comercial – que duraria centenas de anos e que, segundo alguns, ainda não está totalmente resolvida.

O significado último da abertura da rota marítima para a Índia e o Oriente em redor de África foi que assim foi neutralizado o “bloqueio” do Médio Oriente muçulmano entre a Europa e aquela parte do mundo. Os portugueses simplesmente cortaram o papel intermediário dos árabes e muçulmanos e ganharam fortunas incontáveis no processo (quase tudo desperdiçado pelas elites em guerras, porcarias e na boa vida). A partir daí a experiência descambou para, em muitos casos, o aproveitamento das estruturas da escravatura que encontraram em África (que eram, note-se  quase exclusivamente africanas e árabes muçulmanas), a exploração de sociedades ainda fragmentadas em tribos, primitivas e tecnologicamente inferiores e a pilhagem organizada, pura e dura.

Tirando a extracção do ouro do que é hoje o Brasil, os portugueses não enriqueceram particularmente com a coisa. Os verdadeiros campeões foram os britânicos, os holandeses, os franceses, os espanhóis os belgas e as comunidades judias. Pois foi desta longa e vasta investida para fora da Europa que se constituíram as bases para o surgimento do que veio a seguir: a criação de uma enorme reserva de riqueza, a formação das estruturas do capitalismo, da exploração científica e da acumulação do conhecimento que eventualmente estiveram na génese de, inicialmente no Reino Unido, da Revolução Industrial.

E do mundo que temos hoje.

 

 

Site no WordPress.com.