THE DELAGOA BAY REVIEW

13/07/2023

A ERA DO REPOLHO E DO CARAPAU

Filed under: A Era do Repolho e do Carapau — ABM @ 5:09 pm

Imagens retocadas.

Quando visitei Moçambique pela primeira vez em fins de Novembro de 1984, impressionou a mudança desde os tempos pré-independência. Não havia carros nas estradas. Fui desaconselhado a ir até à Costa do Sol por causa dos “bandidos armados”. Praticamente não havia nada para fazer nem nada para se vender nas lojas. Passeei a pé.

A única coisa que comprei naquela viagem (só mesmo quem tem costela moçambicana é que se lembrava naquela altura de viajar de Nova Iorque para Maputo … de férias) foi um maço de postais velhos do Santos Rufino, a um velhote monhé, acho que na Travessa da Boa Morte, que era o que ele tinha. Sentado à porta da sua modesta loja, ele, simpático, lamentava-se num português que devia ser a terceira língua: “no tempo dos portugueses havia pão. No tempo dos portugueses havia galinha. No tempo dos portugueses havia camarão. No tempo dos portugueses havia carne. E agora não há nada”. E por aí adiante. Eu calado. Dei-lhe cinco dólares, o que o deliciou e deu nuns cinco cêntimos por postal. Eles hoje valem dez dólares cada um.

Praticamente não havia comida.

Quer dizer, haver havia. Mas não à venda.

A procura de comida, a entrada nos esquemas mais elaborados de identificação e troca de alimentos era praticamente uma ocupação. As pessoas gastavam parte considerável do seu quotidiano neste processo.

Os mais afortunados tinham dólares ou randes, ou algo com que trocar. Trocava fruta por pão, pão por leite, leite por café, arroz por camarões, etc etc.

Imagino que havia muitos que passavam fome. com F grande.

Uma vez fui comer ao Mini-Golfe, que, curiosamente, estava aberto. Nessa noite não estava lá quase ninguém. No menu anunciavam sopa de legumes e arroz à valenciana. Era o prato do dia e era o que havia. Os preços eram irrisórios para quem vinha de Nova Iorque. Até ver o que serviram. A “sopa de legumes” era um caldo amarelado transparente com duas rodelas de cenoura e uma folha de repolho. O “arroz à valenciana” era um arroz branco tipo pedra, com uma rodela de chouriço mais duas rodelas de….cenoura.

Mais divertido foi a visita ao Hotel Polana, que mais parecia um hotel zombie. Na zona da piscina, onde fui pela primeira vez na vida (antes da independência nunca lá tinha entrado), sentei-me numa mesa pequena. Dali a nada aparece um homem, de fato branco imprecável, se um pouco gasto, com botões dourados, para me servir. Começou a falar inglês mas interrompi-o: “eu falo português”. Silêncio. Entregou-me o menu que me pareceu impresso ainda no tempo colonial, com tudo e mais alguma coisa. Pedi uma sandes e uma coca-cola. “Não tem”. Para fazer uma longa história curta, depois de perguntar se havia isto ou aquilo, enquanto que respondia que não havia, ele no fim lá disse que o hotel tinha apenas uns amendoins e uma club soda, que era tudo o que tinham.

Não estivesse Moçambique a entrar na fase comunista, e dado o colapso do que havia antes, a Frelimo criou o…… Gabinete de Organização do Abastecimento da Cidade de Maputo. Que organizavam um esquema de distribuição de um cabaz básico pela população a preços suponho que mais acessíveis.

Anúncio do Notícias de Maputo, 25 de Abril de 1986, a detalhar o que é que estaria disponível para os residentes da Cidade no mês de Maio de 1986. Nos locais designados, as pessoas iam lá comprar os bens. Para além deste sistema, em que que as pessoas tinham uma cédula penso que emitida pelos célebres Grupos Dinamizadores da zona que as habilitava a aceder a estes bens (que nem sempre havia, mesmo quando anunciado). Havia ainda umas lojas dos funcionários públicos e a famosa Loja Franca, essencialmente para os poucos estrangeiros ali residentes e os que tinham acesso a dólares e randes. E depois havia alguma candonga para os que iam a Nelspruit – enquanto a fronteira esteve aberta.

Para muitos moçambicanos da Cidade, especialmente o punhado de brancos, a chamada Era do Repolho e do Carapau, que deve ter durado entre 77 e 92 (sujeito a revisão) é quase vista com saudade e referida como uma medalha na lapela. Para além de ser um tempo simples em que os convívios eram uns em casa dos outros a ouvir discos do Neil Diamond, ir à praia estar com os amigos, ler os livros que havia e, a partir do final dos anos 80, o ocasional vídeo americano do Rambo traficado habitualmente por alguém que conhecia alguém duma embaixada, há algo que não tem palavras e que credencia (para esses) que é o efeito de fuçar na desgraça com todos os outros: passar fome, estar na bicha, sofrer como os outros. Especialmente os brancos e estrangeiros, que basicamente a qualquer altura podiam-se meter num avião e bazar dali para fora. A lógica é que se ficaram e passaram por aquilo tudo, é porque são mesmo Moçambicanos. Não sei até que ponto isto convenceu os 99.79% da população negra (a mim não convence) mas esta era a lógica, que ouvi ser enunciada mais do que uma vez. Só quando o Dr. Mário Machungo lá convenceu os bosses da Frelimo que aquilo estava tudo a cair ao mar e era insustentável, é que começou a muito lenta evolução para o actual regime, que, dizem os analistas, é ainda mais ou menos de partido único mas com laivos de capitalismo selvagem com muita corrupção, compadrio e esquemas. E muita, muita ajuda de países doadores, a que chamam “cooperação”.

Mas ao menos agora já se vê comida nas prateleiras das lojas. É preciso é ter o dinheiro para a pagar.

As pilhas no cabaz lá em cima eram para usar nos Xiricos, uns rádios como o de cima e um dos projectos da Frelimo. Os aparelhos eram montados na Fábrica de Aparelhos Electrónicos da Electromoc EE, a partir de partes importadas da Stern Radio, da Alemanha comunista. Presumo que para se ouvir os discursos do Samora e as emissões da Rádio Moçambique. Hoje são uma raridade.

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