THE DELAGOA BAY REVIEW

21/10/2011

SAMORA MACHEL VINTE CINCO ANOS DEPOIS: OS EVENTOS E A NOTA DE FERNANDO LIMA

Samora Machel revisitado - mais uma vez.

Por razões evidentes de regime, mas também históricas e de senso comum, Samora Machel é lembrado e comemorado, mesmo vinte cinco anos após o seu desparecimento físico num acidente, ou incidente, aéreo, cujas causas ainda fazem correr tinta (vejam-se os esforços continuados de Mamã Graça e os tiros quase hilariantes trocados entre o Sérgio Vieira e o João Cabrita).

Lamentavelmente (suponho que deve ser qualquer coisa ainda a ver com a herança cultural portuguesa) celebra-se, não o dia em que nasceu, mas o dia em que morreu. Eu sei que Samora Machel nasceu num 29 de Setembro e que em Moçambique este mês já está pejado de feriados. Mas comemorá-lo não tem que ser um feriado. Senão qualquer dia Moçambique fica como Portugal, com tantos feriados que não se trabalha. E acima de tudo, Moçambique precisa que se trabalhe. Não querendo ser dogmático, eu diria: querem celebrar Samora? então trabalhem mais.

Esta semana, por exemplo, finalmente, lá se fez o gesto de colocar no lugar vago por Mouzinho de Albuquerque uma estátua menos má de Samora (importada da Coreia do Norte, doze metros de altura, sem pedestal, um bocadinho demais ao estilo do Querido Líder lá nos confins da península coreana mas enfim) mais uma vez recompondo a bem conseguida estética da praça em frente ao edifício do Conselho Municipal e, espero, salvando-a de vez de um plano de reconfiguração totalmente surreal que circulou em tempos pelos circuitos subterrâneos da máfia moçambicana na internet, creio que da autoria do Sr. Arquitecto José Forjaz.

36 anos depois de Mouzinho out, Samora in.

Mas, para além de uma romaria ao local do acidente/incidente em Mbuzini, na vizinha África do Sul, e do gesto simpático de Jacob Zuma e de Sua Eternidade salazarenta o Sr. Robert, terem publicamente agradecido qualquer coisinha pela catástrofe libertadora infligida ao povo moçambicano sob a liderança de Samora logo a seguir à declaração de “independência” (na verdade, Moçambique tornou-se independente dez dias após a assinatura dos acordos em Lusaka, no final da primeira semana de Setembro de 1974), o prato forte foi uma conferência sobre Samora em Maputo.

A conferência teve a interessante, e provavelmente única, e irrepetível, característica, de reunir sob o mesmo tecto uma boa parte dos protagonistas ainda vivos dos eventos de que resultou, entre 1974 e 1992, a entrega, ou a tomada, dos governos da maior parte dos países da África Austral, para as mãos de elites nacionais, seguindo apenas um pouco mais tardiamente o curso de quase todo o resto da humanidade.

Papá António e Mamã Graça na Conferência sobre Samora.

Sobre a mesma, com profunda vénia, reproduzo em seguida o magnífico texto da autoria de Fernando Lima, participante, espectador, jornalista e também gestor de media, que viveu muitos dos eventos ali tratados e que pelos vistos esteve sentado lá o dia inteiro a ouvir o que as pessoas tinham para dizer. Este texto foi publicado no jornal Savana, que se publica em Maputo, na sua edição de hoje.

Aqui vai:

Quando Samora era Jack Dempsey

Por Fernando Lima em Savana, 21 de Outubro de 2011

Terça-feira fui ao Centro de Conferências, ali para os lados do Miramar, aqui na capital, e fiz como disse que faria o Dr. Almeida Santos, um dos ilustres oradores no simpósio dedicado a Samora Machel. Apesar de não ter convite, fiz-me à sala e passei lá o dia todo. Ouvi 15 intervenções e como não levava bloco de notas passo a citar de memória.

Do que gostei mesmo foi das memórias de Albino Maheche, um “mais velho”, enfermeiro de profissão, que fui aprendendo a conhecer pelas bandas do ministério da Saúde no pós-independência.

Maheche, um contemporâneo e amigo de Samora, trouxe à colação as suas recordações da vivência em comum com o então jovem enfermeiro Machel. E ficámos todos a saber do seu fascínio pelo boxe, como era hábito na década de 50/60. Craveirinha, também contemporâneo de ambos, redige o famoso poema de exaltação ao combate de desforra protagonizado pelo pugilista negro Joe Louis em Berlim. (“A desforra do nosso Joe Louis frente ao Max Schmmeling/veio no telégrafo e saiu no jornal Notícias/mas quanto ao resto em Lourenço Marques…/Nada !/O resto não saiu no jornal Notícias/Não saiu na Rádio Clube de Moçambique./Só o Brado Africano é que está a dizer./Portanto guarda bem guardado este Brado/e treina muito bem este boxe !”).

Samora, na camarata onde viviam os aspirantes a enfermeiros, levava a alcunha de Jack Dempsey, um formidável boxeiro americano, campeão de pesados entre 1919 e 1926. Para melhorar o seu boxe, Samora golpeava com frequência um saco de areia na casa de banho e assistia aos combates que tinham lugar habitualmente no pavilhão do Malhangalene (hoje Estrela Vermelha).

Também ficámos a saber que um padre católico na Catedral o apoiou nas matérias lectivas do 2º. ciclo dos liceus, que gostava das disciplinas de História, Geografia e Português, sabendo de cor várias estrofes dos Lusíadas de Luís de Camões, leitura obrigatória na escola.

Quase inevitavelmente, os jovens Maheche e Machel cruzam-se com o Dr. Mondlane, então hospedado no Khovo (Missão Suiça), vindo dos Estados Unidos. Ali se cruzam também com o poeta Virgílio de Lemos (exilado desde 1963 em França) que queria que os dois se juntassem ao movimento independentista. Lemos tornou-se conhecido por ter apelidado a bandeira portuguesa de “kapulana verde e vermelha” e mais tarde foi preso durante 14 meses por advogar a independência de Moçambique.

Na opinião de Maheche, o estilo contestatário de Machel não ajudou a sua progressão na enfermagem. Numa das aulas, a propósito de enfermeiros e massagens, Samora jocoso quis saber quem dava massagens ao ditador Salazar, conhecido como asceta e celibatário.

Os monitores tomaram-no de ponta e nem sequer o deixaram fazer prova oral de um exame onde tinha positiva na escrita.

Pelo relato da sua filha Ornila fiquei a conhecer um bocadinho mais do Samora doméstico. Dos jantares em família, apesar de ser o “camarada presidente”. Dos treinos dedicados às meninas “para saberem caminhar como senhoras” equilibrando um livro no alto da cabeça, como cruzar as pernas, como sentar e levantar. De como o trautear a canção “canta, canta minha gente, deixa a tristeza para lá” deu origem a semanas de rigoroso “chá” sobre liberalismo e libertinagem.

Não sabe a Ornila porventura que o dito Martinho da Vila, o autor brasileiro da canção, em carne e osso, na sua primeira visita a Moçambique depois da independência, por causa da “libertinagem”, foi impedido de actuar em Maputo e, para salvar a digressão, foi mandado para a Beira, onde actuou para uma plateia de militantes da Frelimo no pavilhão do Ferroviário.

Por causa da mesma libertinagem, anos mais tarde, Bob Marley foi impedido de vir a Moçambique, pois passou a cerimónia da independência do Zimbabwe, no Rufaro Stadium, a fumar vigorosos charros de suruma, mesmo por detrás da delegação oficial moçambicana. O que me recorda a simpatia que os “freaks” citadinos nutriam por Samora à altura da independência, alegadamente por não ser contrário à legalização da “cannabis”. As razões prendem-se com um famoso discurso, em que perante o rufar inebriante dos tambores, Samora disse qualquer coisa como “a cultura é como a suruma a subir pelas nossas veias”.

Voltando para o Zimbabwe, da ajuda de Samora à independência da Rodésia do Sul se encarregou Robert Mugabe, também convidado do simpósio. E como a história é habitualmente feita pelos vencedores, ficaram na gaveta as memórias de Mugabe como pacato professor de inglês na cidade de Quelimane, enquanto Samora apostava numa guerrilha vitoriosa das forças com a sigla ZIPA (Exército Popular do Zimbabwe). E como a história dá muitas voltas, mais tarde os comandantes do ZIPA acabaram presos em Moçambique por solicitação de Mugabe, como documentado por Dzinashe Machingura. Mas isto seria matéria de dissertação para os saudosos Fernando Honwana e Rafael Maguni, por sinal o primeiro embaixador de Moçambique no novo Zimbabwe.

Mugabe falou de Samora, mas aproveitou o microfone aberto e um moderador temeroso do [seu] estatuto “chefe de Estado” para perorar longamente sobre a guerra no Iraque, a selvajaria de George W. Bush, as maquinações de Sarkozy, a ineficácia da União Africana na questão líbia e até o harém de prostitutas à disposição do primeiro-ministro italiano Sílvio Berlusconni.

Quando um jovem exaltado o interpelou sobre os moçambicanos pretos que hoje se substituem aos colonos brancos na partilha das riquezas, Mugabe passou ao lado do debate dizendo secamente que era melhor que as riquezas fossem desfrutadas por nacionais do que por estrangeiros.

Almeida Santos, provavelmente o mais famoso advogado do Moçambique colonial, amigo de Craveirinha, Nogar, Luís Bernardo, Malangatana, de Graça e Samora, mostrou que tem a oratória em forma. Chamou de “preguiçoso” a Luís Bernardo Honwana, o moderador do seu painel, por continuar a ser o nosso escritor de uma obra só, o cão tinhoso que as nossas crianças descobrem na escola pública.

E como Almeida Santos não deixa créditos por mãos alheias, disse ao simpósio que sugeriu a Samora o pacto com a África do Sul que ficou conhecido como o Acordo de Nkomati e organizou a apresentação em Londres a Harry Oppenheimmer, o sul-africano patrão da Anglo-American e crítico do apartheid. Tal como tinha acontecido com Ronald Reagan, Samora descrito por Almeida Santos como “um conquistador” , “um sedutor” , entrou na sala onde estava Oppenheimmer e, por entre efusivos abraços, tratou-se como “Senhor Capital”. Aparentemente, foi “amor à primeira vista”.

Menos simpático ficou na fotografia o já falecido jornalista Pinto Coelho, a quem Almeida Santos revelou ter pedido o “frete” de fazer uma reportagem favorável sobre Samora para preparar o que depois foi a sua viagem triunfal a Portugal [em 1983]. E lá deixou cair também que Samora se “esqueceu” dos papéis para o discurso na Assembleia da República mas conseguiu arrancar um dos mais espectaculares improvisos da sua primeira visita à antiga metrópole colonial.

Noite fora, Marcelino dos Santos, que já disse que ele era a própria Frelimo, vestiu pose mais modesta para falar do humanismo do companheiro Samora, dando os respectivos recados, socorrendo-se do belo poema de Jorge Rebelo, “não basta que seja pura e justa a nossa causa/ é necessário que a pureza e a justiça vivam dentro de nós”. Uma espécie de desforra à recente afronta na reunião nacional de quadros da Frelimo onde o mandaram calar.

Gostei da postura mais académica, menos presidencial de Joaquim Chissano dissertando sobre o Estado-Nação, dos “conselhos” de Prakash Ratilal à juventude que pensa que o futuro é um pronto-a vestir e Óscar Monteiro, que replicou sobre a tradicional “intuição” atribuída a Samora. Gostei que Mário Machungo tenha desenterrado o “samorismo” que defendia Aquino de Bragança, ele que foi um dos vergastados do congresso de Quelimane por defender regras e o rigor na economia moçambicana. Gostei da intervenção emocionada do general Chipande, clarificando a morte do padre holandês (se não me engano em Nangololo) às mãos de dissidentes da Manu ( que um lapsus linguae atribuiu à Renamo), embora não estivesse lá Gruveta para contestar a teoria do primeiro tiro em Chai. Na versão portuguesa, e na cola dos acontecimentos em Angola e no Congo, o assassinato do padre foi o início da luta armada.

A Universidade Eduardo Mondlane organizou o debate mas esteve muito fraca na matéria crítica que podia e deveria ter trazido ao Simpósio. Quando se elevam a categorias históricas termos como “o pai da nação” e o “criador da geração 8 de Março”, fica a impressão que a academia continua a reboque dos acontecimentos, incapaz de aportes críticos e investigações sérias e seguras, indicativas de protagonismo independente dos poderes do dia. Deliberado ou não, os louros das contribuições foram para fora dos muros da universidade.

Armando Guebuza, fez questão de seguir o debate de fio a pavio. Certamente que já deitou contas à vida de como quer ficar na história dos seus dois mandatos constitucionais: eventualmente pela via das presidências abertas ou pelos sete bis aos distritos.

Porém, na “família da Frelimo”, há duas famílias que lhe estarão indelevelmente gratas: os descendentes de Mondlane e Samora. A presidência Guebuza, aparentemente, sarou ou procurou claramente pôr fim às feridas expostas destas duas famílias com contas a ajustar no seio da Frelimo.

Com a poeira e os ventos que nos afagam a memória, o futuro será certamente o melhor juiz.

(fim)

06/10/2011

BARNABÉ LUCAS NCOMO ESCREVE SOBRE BONIFÁCIO GRUVETA

Esta semana, por decreto governamental, Bonifácio Gruveta foi elevado ao estatuto de "herói nacional" de Moçambique.

Na semana em que Bonifácio Gruveta Massamba foi a enterrar na Zambézia, e o governo decretou o seu estatuto de “herói nacional”, o Sr. Barnabé Lucas Ncomo escreveu o texto que se segue e que foi publicado no dia 4 de Outubro de 2011 em Maputo no Canal de Moçambique e que aqui se reproduz na íntegra e com vénia.

Bonifácio Gruveta foi um dos membros da original equipa da Frente de Libertação de Moçambique que tomou o poder na então ainda colónia portuguesa escassos dias após a assinatura da rendição e a entrega do governo aos seus membros. Efectivamente, governou a Zambézia entre 1974 e 1977.

Sobre ele, redigi o texto que pode ser visto premindo AQUI.

Segue o texto de Barnanbé Lucas Ncomo.

Sobre “a compaixão”, “a bondade”, e “o heroísmo” de Bonifácio Gruveta

Seria bom – julgamos nós – que as emoções de alguns não resvalem em insultos à inteligência de outros moçambicanos. Isso obrigaria a que se chame para a tribuna pública outras testemunhas, de entre os quais também alguns mortos, combatentes da primeira hora na luta de libertação nacional a partir de Tanzania, tais como o Francisco Cufa, o Lino Abraão, o Lourenço Mutaca e muitos outros que, por sinal, eram também zambezianos de gema como o próprio Bonifácio Gruveta, que caíram na desgraça por consequência da brutalidade e da cobardia de homens como Bonifácio Gruveta e de outros que, hoje, graças a exclusão a que os novos tempos os sujeitam na distribuição do bolo na “manada humana” a que sempre pertenceram por vontade própria, despertam para a realidade amarga e crua em que se mergulharam.

Lamento ter que escrever isto num momento em que o sangue nas veias de Gruveta ainda não secou, exactamente num momento em que o seu corpo acaba de descer à terra. É o preço da imprudência de alguns que fazem da comunicação social televisiva, da imprensa escrita, do Facebook e de alguns sites da Internet locais de orgias de insultos. Não estaria aqui.

Importa imiscuirmo-nos nas emoções que a morte do major-general Bonifacio Gruveta Massamba levantou no seio de algumas pessoas neste país. Não o faríamos se tais emoções se situassem apenas do lado dos históricos camaradas do finado, e da sua família em particular.

Outras vozes se fizeram presentes no exaltar da “compaixão” que caracterizou o finado em vida. Entre soluços e lamentações se recorreu até à figura do malogrado Dr. David Alone para testificar “a bondade” e “a humanidade” heróica do morto.

Julgamos que é preciso respeitar os mortos, sim senhor, mesmo que em vida tenham sido torcionários! Mas endeusá-los pode chocar suas vítimas, estejam estas vivas ou mortas. Há pessoas a quem, simplesmente, se deve inclinar a cabeça perante os seus cadáveres, e pedir que descansem em paz. O ir para além disso pode conduzir a grosserias do tamanho do mundo e a insultos à inteligência de muitos.

Que alguns dos ilustres que proclamaram a independência de Moçambique tenham tido alguma compaixão para com quem tenha tido o azar de cair-lhes nas mãos, a ponto de livrar este ou aqueloutro da forca durante a época em que tais ilustres assassinavam a seu bel-prazer, não se nega. Mas isso não os transforma em homens bondosos, e nem os exime da responsabilidade sobre as vidas tiradas aos que não tinham quem por eles intercedesse nos tempos da dança macabra imposta por esses ilustres.

Neste momento de dor pela morte física de quem se permitiu, por opção, de forma voluntária e em consciência, pactuar com o pior das maldades humanas, é preciso virarmo-nos para o nosso interior e reflectir. A morte não se trata de brincadeira nenhuma. É dura, embora para alguns seja dura apenas quando lhes invade o tecto. Alguns dirão: “outros é que mandavam matar, Gruveta não concordava, até salvou do Dr. David Alone!”.

Que seja! Mas, e os outros, a quem ele permitiu seu fuzilamento, liderando até tal acção em praça pública, eram menos pessoas do que o Dr. Alone, ou simplesmente fê-lo porque aqueles não tinham diplomas que lhes conferisse o estatuto de gente? Mesmo que admita que tais assassinados em público haviam cometido algum crime de sangue, ficou sempre por desvendar os tribunais que os julgaram e as condições de defesa que se lhes foram proporcionadas.

Nenhumas, que saiba!…

Há um facto que importa compartilhar com outros cidadãos deste país: Em algumas circunstâncias, existe alguma semelhança de objectivos entre os “assassinos em nome dum Estado” e os “assassinos vulgares” quando estes dão de bandeja o que outros não têm. Tal objectivo repousa sempre nos benefícios que advêm como contrapartida da sua aparente benevolência para com outros seres humanos.

Os assassinos de que estamos aqui a falar são pessoas que acidentalmente fazem bem a alguns na esperança de angariarem aliados.

Moldam as consciências das pessoas para que os ajudem a varrer para debaixo do tapete o sangue de suas vítimas. Tais pessoas, por eles beneficiadas, estão proibidas de cuspir-lhes na memória, mesmo que estes estejam a par das atrocidades praticadas pelo benevolente. O custo benefício é sempre a formatação mental dos beneficiados, que devem saber relevar as acções criminosas protagonizadas “acidentalmente” pelo benevolente no decurso da luta pelo bem-estar na vida, elevando para o patamar de heroísmo apenas as acções de beneficência que o assassino benevolente lhes proporcionou. O contrário seria uma ingratidão imperdoável.

Dado que as mortes dos inocentes assassinados transformam-se sempre no quinhão que permite aos beneficiados saírem da desgraça em que estão mergulhados, estes, nada mais de bom têm a fazer senão fechar os olhos aos crimes de sangue que o seu benevolente comete. Testemunhar, em praça pública, sobre os benefícios adquiridos na hora da sentença fúnebre daquele, é a marca que caracteriza o espectáculo da relação entre o benfeitor morto e as suas vítimas de esmola. Os beneficiados de circunstância, transformam então suas vozes, de órfãos desmamados, num todo o país; numa toda a Zambézia: “Ele era boa pessoa; “Preocupava-se com o desenvolvimento da Zambézia; “Dava apoio a toda a gente; etc., etc”. Como se o favor a si proporcionado pelo torcionário de ontem tivesse resolvido o problema de todos outros moçambicanos à sua volta!?…

De seguida, os beneficiados não tardam a exigir que se erga na sua cidade uma estátua, bem enorme, do seu herói, para que todos passem então a venerá-lo.
Tivemos também o privilégio de conhecer o Dr. David Alone, a tal figura que se exuma, e se destaca, para fundamentar a “humanidade” manifesta de quem em contrapartida permitiu a morte de milhares de outros fora dos tribunais.

Com ele (David Alone), também privámos, tendo-nos posto ao corrente das suas peripécias da vida e da mágoa que transportava na alma. Não é verdade que morria de amores pelo finado de hoje a ponto de conjecturar homenageá-lo em obra escrita. Alone conhecia a pele de lobo que o seu salvador de circunstância vestia.

Mas o problema não se reduz a isso: Invocar-se o nome duma ilustre figura como o Dr. Alone para testemunhar em defesa de quem “se vinha de gozo” pela dor de outrem sem ter em conta que aquele Doutor teve apenas a sorte de encontrá-lo num momento em que alguma lucidez lhe invadia o cérebro, pode conduzir a situações extremas de análise, o que não se pretende neste momento em que as atenções de muitos estão viradas para a consolidação e desenvolvimento da instituição democrática no país.

Seria bom – julgamos nós – que as emoções de alguns não resvalem em insultos a inteligência de outros moçambicanos. Isso obrigaria a que se chame para a tribuna pública outras testemunhas, de entre os quais também alguns mortos, combatentes da primeira hora na luta de libertação nacional a partir de Tanzânia, tais como o Francisco Cufa, o Lino Abraão, o Lourenço Mutaca e muitos outros que, por sinal, eram também zambezianos de gema como o próprio Bonifácio Gruveta, que caíram na desgraça por consequência da brutalidade e da cobardia de homens como Bonifácio Gruveta e de outros que, hoje, graças a exclusão a que os novos tempos os sujeitam na distribuição do bolo na “manada humana” a que sempre pertenceram por vontade própria, despertam para a realidade amarga e crua em que se mergulharam.

Está claro que enquanto naquela “manada” se lhes garantia o quinhão por direito de participação efectiva nas tramas contra as vidas de outros cidadãos, tudo estava bom. Agora que se entrou na fase histórica de “cada um por si, Deus por todos” descobrem os nossos heróicos senhores que não têm poder nenhum, “foram simplesmente usados por outros” e é preciso denunciá-lo aos irmãos, a quem ontem se virou as costas.

Muitos destes senhores, da verdade absoluta de ontem, como o finado de que se fala, já rendidos, proporcionam-nos um espectáculo absolutamente espantoso. No leito da morte, assumem-se já como islâmicos ou bons cristãos depois de terem pactuado na destruição das vidas de outros seres humanos em nome do “pensamento comum” e da “inexistência de Deus”. Num divórcio que aparenta ser todo ele contencioso, recusam-se que seus corpos se juntem a de seus camaradas no mausoléu que juntos construíram para si próprios nos tempos áureos da unidade de pensamento.

Numa atitude que caracteriza a sina dos homens pequenos, apartam-se de tudo na esperança de quebrar os corações dos da casa, na esperança de que estes venham em socorro do irmão em apuros.

O que repugna nesta história toda é que há gente que cai na cilada. Acham que todos os moçambicanos devem sentir pena dum homem “que tudo fez para nos libertar do colonialismo português”, mas que já não é suficientemente valorizado. Exige-se então que todos nós descubramos as mágoas do defunto nos últimos anos de sua vida (mágoas eventualmente confessadas em privado com próximos), e que passemos então, todos, a acreditar que o homem foi usado e descartado, por ser de lá e não de cá, como se todos nós tivéssemos culpa que alguns nasçam com vocação congénita de serem usados!

É preciso que reflictamos: Bonifácio Gruveta não foi usado por ninguém. Fazia parte de um todo que jamais se preocupou com o desenvolvimento nem dos zambezianos, nem dos quelimanenses quaisquer como se procura propalar por aqui. Ele e seus camaradas na FRELIMO preocuparam-se, sim, foi com o seu desenvolvimento pessoal.

É verdade que Gruveta lutou contra um sistema condenável para libertar o país e seus concidadãos, não o negamos. Contudo, Gruveta está entre os históricos da FRELIMO que não foram honestos connosco. Se tivesse dito aos moçambicanos que longe de “libertar o homem e a terra” a missão que o movia resumia-se à continuação da opressão em substituição do colonialismo português, talvez muitos não o tivessem seguido. Porque decidiram de livre e espontânea vontade instituir um sistema sanguinário no país. Ninguém os mandou fazer o que fizeram.

Cansados de matar às escondidas como o fazia o colonialismo português, Bonifácio Gruveta e seus camaradas acabaram, eles mesmos, instituindo o que o próprio colonialismo português se esqueceu de instituir oficialmente em Moçambique: a pena capital.

Embora se louve a iniciativa de luta empreendida por Gruveta contra o colonialismo português, não deixa de ser verdade que longe de libertar acabou por transformar, por iniciativa própria e de seus camaradas todos os moçambicanos em escravos do seu pensamento. Mandava matar todos aqueles que não concordassem com ele e seus camaradas, imputando a esses crimes sem sequer conduzi-los aos tribunais para serem julgados. Nos tempos áureos do seu “bem-estar político e social” a lei era ele e seus camaradas.

As pessoas resistiram, uns de armas na mão, outros por outras vias, acabando por ganhar a batalha, vencendo-o a ele e a seus camaradas. É este o quadro real que alguns procuram esquecer.

Não somos contra os que se beneficiaram da “sua bondade” em vida; aqueles que por mão dele conseguiram coisas que a maioria não conseguia. Somos contra aqueles que, na sua pobre inocência, insultam outros, transformando a amizade pessoal que os ligava ao finado Gruveta em tábua de limpeza onde se procura escorrer o sangue dos que por iniciativa dele, e de seus camaradas, morreram.

Gostaríamos que ao chorarem seus mortos “bondosos”, os familiares, amigos e camaradas o fizessem no silêncio dos seus seres, sem precisarem de ferir a sensibilidade de outros. Porque os familiares, amigos e camaradas do “bondoso morto” da Zambézia, não são, por si sós, todos os moçambicanos ou todos os zambezianos. Há zambezianos e muitos outros moçambicanos que foram enlutados pela acção voluntária do homem cujos feitos positivos, direccionados apenas a alguns, se generalizam a todos os zambezianos.

Lamentamos ter que escrever isto num momento em que o sangue nas veias de Gruveta ainda não secou, exactamente num momento em que o seu corpo acaba de descer à terra. É o preço da imprudência de alguns que fazem da comunicação social televisiva, da imprensa escrita, do Facebook e de alguns sites da Internet, locais de orgias de insultos. Não estaríamos aqui.

Com o mundo cheio de torcionários benevolentes, só nos falta um dia vir a público alguém a exigir que se eleve ao estatuto de “grande benevolente” o assassino (escondido – diga-se de passagem) de Siba Siba Macuacua e outros mais, simplesmente porque um dia se beneficiaram de algo desse assassino. Porque tal como os heróicos assassinos da República moçambicana de ontem, que bondosamente não se cansavam de dar apoio, bolsas de estudo e uma mão carinhosa aos que a eles se aproximavam de mão estendida, não espanta que o oculto assassino do malogrado jovem economista esteja hoje também a salvar “alguma humanidade” à sua volta, dentre os quais filhos, sobrinhos, enteados, vizinhos, conterrâneos, etc.

Em jeito de despedida, gostaríamos de inclinar a nossa cabeça e dizer o seguinte: Desejamos que o major-general Gruveta descanse em paz.
Aos Sheiks e Padres atiramos a espinhosa missão de salvar a sua alma: tal como todos, os que vão a Deus de alma aberta, se lhe perdoem os “deslizes pecaminosos” que tenha cometido em vida, pois a ser verdadeira a teoria da sua marginalização e exclusão nos últimos anos da sua vida, fora apenas vítima de si próprio, e daquilo em que acreditou.

Avisos não lhe faltaram.

Gostamos de ver nas suas exéquias fúnebres um dos sonantes filhos de duas das vítimas do regime que ele impôs aos moçambicanos – o Lutero Simango – a inclinar-se perante o seu corpo inerte. A ter que se falar de grandezas humanas, isto é quanto basta: conhecer e viver na essência do termo. Nada obrigava Lutero a estar no funeral dum homem como Bonifácio Gruveta senão o amor ao próximo e à vida.

29/09/2011

BONIFÁCIO GRUVETA MASSAMBA, 1942-2011: UM LIBERTADOR

Filed under: Bonifácio Gruveta Massamba, História Moçambique — ABM @ 12:18 am

Bonifácio Gruveta Massamba, numa foto recente. Faleceu ontem (28 de Setembro de 2011) com 68 anos de idade.

Até esta manhã nunca tinha ouvido falar de Bonifácio Gruveta.

Mas um curto sms de um amigo meu de Moçambique ao fim desta manhã despertou-me a atenção.

A mensagem, quase críptica, dizia apenas “morreu o bonifácio, uma das figuras mais tenebrosas da frelimo, que ordenou os fuzilamentos do campo de futebol de quelimane.”

Fui ver na internet quem era, ou melhor, foi, Bonifácio Gruveta.

Bonifácio Gruveta Massamba, ultimamente general na reserva, deputado com assento na Comissão Permanente do parlamento moçambicano, alto quadro dos históricos da Frelimo, ex-Coordenador da Região do Delta no Gabinete do Plano do Zambeze. membro do Conselho de Estado por efeito do Despacho Presidencial Nº133/2005, de 14 de Dezembro desse ano, e “empresário de sucesso”, terá sido um dos originais, verdadeiros Libertadores moçambicanos.

Tinha 69 anos de idade.

Ele estava lá desde o Início, ou seja de 1964, e nos meandros da guerrilha, ao ponto de parodiar, numa entrevista que concedeu ao Diário da Zambézia de 8 de Setembro de 2010 (entrevista dada no dia anterior na conceituada se algo atribulada Universidade de Mussa Bin Bique, que na altura lhe atribuiu o grau de Doutor Honoris Causa) se de facto teria sido ele e não Alberto Chipande a dar o tal famoso primeiro salvo nas guerra para expelir o vírus lusitano das terras de Moçambique. Ele sugere que não foi Chipande. Não que interesse muito, mas enfim, a versão Chipandiana já fazia parte do folclore nacional e da aura daqueles tempos.

Assunto pelos vistos de interesse nacional, e que fez jorrar rios de tinta nos jornais, a julgar inclusivé pelo texto do oficioso Notícias de Maputo de hoje (28 de Setembro de 2011), onde, não se sabendo ainda que Bonifácio havia falecido (nenhum jornal tendo por isso noticiado a sua morte) Eliseu Machava rosnava contra os detractores da versão chipandiana do Tiro Original e descreve em detalhe o primeiro tiro da guerra pela Independência, que terá sido desferido contra os famigerados colonialistas às 19 horas do dia 25 de Setembro de 1964 na localidade de Chai. Foram onze os libertadores, para além do então jovem Chipande, um tal António Chicapa.

Mas Bonifácio na ocasião da sua investitura com o Honoris Causa foi mais incisivo noutros temas. Referindo-se a recentes livros de “memórias” dos seus colegas da Libertação Sérgio Vieira e o legível “Voo Rasante” de Jacinto Veloso, disse – e cito: ““Tudo aquilo que os meus companheiros escreveram não é verdade, por isso, tenham calma”.

Como? o quê? é tudo mentira?

O Jovem Bonifácio

No que li na internet – essencialmente testemunhos avulsos – parece haver alguma percepção de ter havido “falhas” na chamada Frente da Zambézia na altura do arranque das hostilidades, e cujo responsável seria Bonifácio, então um miúdo com 22 anos de idade.

Que era, consoante a estratégia de penetração da Frente, nascido lá, a 6 de Junho de 42.

Na tese de doutoramento de José Luis Cabaço (475 páginas cuja leitura recomendo e em que Bonifácio é citado cinco vezes no texto em si), lê-se que Gruveta não precisou de grande incentivo para se juntar à guerra contra os portugueses. Nascido perto de Quelimane, em miúdo vira o seu pai ser obrigado a fazer trabalhos forçados na zona do Gurué: “ Numa noite, os sipaios vieram à procura do meu pai. Tiraram-lhe o casaco, amarraram-no e foram. Dois dias depois apercebemo-nos que já estavam preparados e iam partir para o Gurué. Então eu fui-me despedir do meu pai. Entre duas estações havia um pequeno apeadeiro. Eu vi o meu pai a ser levado para o trabalho forçado. Acenei-o e ele também levantou a mão acenando para mim. Todos nós chorámos. Lá no Gurué, aonde ia meu pai, vivia um primo meu. Filho da irmã do meu pai. Então ele tomou conhecimento, tratou lá com os amigos e ele ficou a trabalhar numa carpintaria da empresa, portanto, do Manuel Freitas Junqueiro.”

Citando ainda da tese do José Luis Cabaço, com 19 anos Bonifácio sentia na pele o que era ser “preto do mato” na nomenclatura colonial moçambicana. Nas suas palavras, “Nós sentíamos a dominação colonial porque sem você ser assimilado você não tinha direito a bom emprego, porque mesmo para ser motorista você tinha que ser assimilado. Fui a Gurué para trabalhar na fábrica de chá da Companhia da Zambézia, e lá eu ganhava um escudo por dia, isto em 1958. Tinha ração, farinha e carne seca,, que vinha do mato, dos caçadores.”

Essencialmente, Bonifácio conta a história que foi comum à esmagadora maioria dos habitantes de raça negra que viviam na outrora colónia portuguesa: que eram menos que cidadãos de terceira classe e sem grandes hipóteses ou oportunidades de ultrapassar o paradigma então existente.

Exceptuando nos tempos mais recentes, em que já era afectuosamente apelidado de “velho Gruva”, ele é distinta mas discretamente, quase mudamente caracterizado como uma figura sinistra nos anos logo após 1975. Ele foi Governador da Zambézia entre 1975 e 1977 e depois perdi-lhe o rasto. Tirando a mensagem que recebi, não encontro quase nenhuns registos específicos de em que consistiu a sua actuação para que merecesse o rótulo, para além duma segunda mensagem, em resposta à minha expressão de desconhecimento, que vai mais abaixo, e uma referência numa reportagem de 1994.

Bonifácio o Libertador

Tendo passado os anos da guerra no esquema de protecção pessoal dos líderes da Frente, havendo ainda uma referência a ter coadjuvado Francisco Manyanga, comandante do Campo de Tunduru, na Tanzânia, Bonifácio foi o primeiro governador da Zambézia após a entrega do poder pelo governo português à Frelimo em 1975. Aliás, Bonifácio entrou na cidade de Quelimane (parando brevemente na sua terra natal, Namacata, para abraçar a mãe, que não o via há dez anos) seguido das suas forças da Frelimo em apoteose popular no dia 17 de Setembro de 1974, uns dias após fechada a rendição portuguesa e a transferência formal de poderes para a Frente, tendo, depois de um comício “de ordem”, ficado instalados na casa dos Padres Capuchinhos de Puglia em Quelimane, para total espanto dos mesmos, incluindo os padres Prosperino Gallipoli e Francesco Monticchio, e que não sonhavam ser essa considerada por estes a moradia mais segura da cidade. Isto durante um mês, até a tropa portuguesa vagar o quartel militar da cidade.

Antes disso, Bonifácio fez parte da delegação da Frente que se sentou na State House em Lusaka com os novos líderes portugueses em 1974 para negociar e assinar os termos desa rendição e a entrega do governo do território.

Que, como se sabe, foi coisa rápida. A partir do dia 20 de Setembro de 1974 – uma semana e meia após os acordos assinados em Lusaka, Moçambique efectivamente estava sob o controlo da Frente. A cerimónia em 25 de Junho de 1975, nove meses mais tarde, foi apenas uma formalidade administrativa.

Bonifácio o Governante

Talvez um ténue indício de como terá sido esse período da inaugurada Soberania Popular na Zambézia nas mãos de Bonifácio, então um líder guerrilheiro batido e muito bem relacionado dentro do novo paradigma do poder e com apenas 32 anos de idade, é dado quase inocente, se inadvertidamente, numa entrevista que Manuel Araújo, um político da Zambézia que agora vai concorrer pelo partido MDM para a liderança da municipalidade de Quelimane na eleição intercalar naquela cidade em 7 de Dezembro próximo. Numa entrevista ao País que foi publicada há pouco mais que uma semana, a certo passo Manuel Araújo, que pertence a uma geração que já nada tem que ver com a anterior, disse o seguinte:

“Na história de Moçambique, a Frelimo tinha criado quatro frentes. Eu tive o privilégio de ter tido uma cadeira sobre a história da Frelimo, no Instituto Superior de Relações Internacionais, que nos explicava os contornos da luta armada de libertação nacional. Essas frentes eram: Cabo Delgado, Niassa, Tete e Quelimane. (nota minha: não houve a 5ª frente no Sul?) Duas dessas frentes fracassaram e acabaram por serem encerradas por dificuldades: a de Tete e a de Quelimane. Por isso, houve sempre um mal-estar por parte da Frelimo com a Zambézia. Houve um erro estratégico por parte da Frelimo. Daí que apareceu o ódio visceral em que a parte dura da Frelimo tem e isso nunca conseguimos ultrapassar nestes 35 anos. Quando a Renamo chegou, encontrou um terreno fértil, pois quando a Frelimo chegou em 1975 disse: “vocês não alinharam connosco e agora vamos ver quem é que tem poder”. Se se recorda, a maior parte dos combates durante a guerra civil deu-se no Vale do Rio Zambeze. Nesse processo, houve generais, como Lagos Lidimo, que comandaram essas operações e que cometeram atrocidades gravíssimas: mataram milhares de pessoas utilizando bombas, aviões“mig” e helicópteros, sendo, por isso, que a população de todos os distritos da Zambézia se ressente desse processo.”

Foi nesta altura que pelos vistos ocorreu aquilo a que o meu amigo moçambicano se referiu ao fim do dia de hoje num segundo “sms”. Cito-o: “Bonifácio Gruveta Massamba foi um dos matadores da Frelimo, o Khmer Rouge de Moçambique. Foi (ele) que em tempos mandou encerrar as escolas de Quelimane e obrigou a crianças a irem para o estádio, a fim de assistirem aos fuzilamentos.”

A única outra referência aos “fuzilamentos”, que não sei de quem, ou porquê, foi feita em Outubro de 1994 por Afonso Dlakhama, o líder da Renamo, então a concorrer para a eleição desse ano e que se encontrava na Zambézia, vista como um bastião de apoio da Renamo. Um artigo do jornal português Público de dia 5 de Outubro de 1994 refere o que então disse à multidão num comício. «Vocês lembram-se dos fuzilamentos no estádio de Quelimane, dirigidos por este governador da Frelimo, o Bonifácio Gruveta?» A multidão, primeiro tímida, respondeu em coro: «Sim!»

Bonifácio Barão da Política Zambeziana

Mas na mesma entrevista a que acima se aludiu, o Prof. Araújo lamenta o esquecimento a que supostamente estaria sujeito o seu conterrâneo Bonifácio Gruveta.

O que se torna algo desconcertante, se se tiver em conta ser do conhecimento público e sugerir-se que o edil cessante de Quelimane, Pio Matos, eleito pelas listas da Frelimo, viu o seu partido literalmente puxar-lhe o tapete por debaixo dos pés precisamente porque Pio de Matos, entre outras razões – e cito um recente trabalho do magnífico jornal Savana sobre o assunto – “se recusava a prestar vassalagem a algumas figuras históricas da Frelimo que tomam a Zambézia como sua propriedade privada e interferiam em demasia na gestão diária daquela autarquia. Citam o nome de Bonifácio Gruveta, intitulado como o “Dono da Zambézia”.

A peça do Savana vai um bocado mais longe: “Gruveta, apoiante de um outro candidato da Frelimo Lourenço Abubacar (empresário e proprietário do Hotel Milénio), ganhou apoios na cúpula formal da Frelimo nomeadamente da parte do Secretário-Geral, Filipe Paúnde, do controverso secretário Edson Macuácua e da própria ministra Carmelita Namashilua”.

Certamente que se espera que o desaparecimento deste grande “barão” da política zambeziana (como se diz de alguns políticos do norte português) influirá no decorrer dos eventos nos próximos meses pelo menos em Quelimane.

O Major-General e Evo Fernandes

Uns anos atrás, sem razão aparente, Gruveta foi misturado com o assassinato de Evo Fernandes, um líder da Renamo, que na altura se degladiava com a Frelimo numa guerra arrasadora. Uma nota do África Confidencial de 26 de Junho de 1988 especulava que Gruveta estivera em Portugal quando Evo Fernandes, então Secretário-Geral da Renamo, foi assassinado em Cascais, supostamente a mando da SNASP. Num desmentido cuja leitura hoje é quase hilariante, no dia 22 de Abril de 1988, a Agência de Informação de Moçambique, que então se assumia ainda como o braço armado do regime para a área da informação (hum, quem mandava lá na altura? Há que reler o livro de Fauvet & Mosse) emite um comunicado desmentindo vigorosamente a presença de Bonifácio em Portugall, afirmação que fora feita à Agência Lusa em Lisboa pela viúva de Fernandes. “No passado fim de semana estive na Beira a acompanhar uma delegação do Partido Socialista da República Popular Democrática do Iémen” citam o então Major-General. Para fechar o assunto, os jovens da AIM arremataram com um ainda mais inverosímil testemunho, o do…fotógrafo Kok Nam, Conclui o comunicado assim: “a presença de Bonifácio Gruveta em Moçambique foi ainda confirmada pelo fotógrafo da revista Tempo (então outro instrumento ideológico do regime) Kok Nam, que referiu que estivera com Gruveta nos escritórios da Tempo na passada segunda-feira”. Ah bom, se o Kok viu é porque é verdade, presuma-se, terá sido o raciocínio. Porque fotógrafo não mente. Enfim. O que de facto Paulo Oliveira, então um operativo da Pide da Frelimo (mas agora um pacatíssimo cidadão anónimo a viver tranquilamente na Linha do Estoril) escreveu sobre o episódio é que o “isco” que levou Evo a expor-se ao assassino contratado por Sérgio Vieira e a Frelimo (um tal de Alexandre Chagas, que a seguir foi dentro na Tuga) terá sido de facto – ironia das ironias – um putativo encontro com Bonifácio Gruveta, que aparentemente foi-lhe vendido como um elemento de uma suposta “ala liberal” dentro da Frente e que se encontraria em Cascais. Fernandes acreditou e foi assassinado por Chagas e os seus colegas a caminho do “encontro”.

Bonifácio o Empresário de Sucesso

Recentemente, e cito a mensagem da Agência Lusa de hoje, “a imprensa moçambicana associou (o General Gruveta) nos últimos tempos a empresas responsáveis pela pilhagem de madeira exportada de Moçambique para a China, uma imputação que o general rejeitou veementemente.” O algo panfletário mas sempre legível Canal de Moçambique, publicado em Maputo, foi bem mais longe nas acusações. Na sua edição de 2 de Fevereiro de 2007 referiu-se assim ao General: “nas investigações que levou a cabo durante a sua estadia na Zambézia (o jornal) soube que o coro de queixas dos fiscais da área florestal, nessa conferência, foi muito forte. Houve quem di s s e s s e c l a r a e abertamente que mandar travar o saque e fazer cumprir a lei era, o mesmo que assinar a certidão de desemprego. “Quem faz isto são os chefes. Temos medo de ficar desempregados”. Para quem já teve a oportunidade de estar na Zambézia e frequentar os v á r i o s c í r c u l o s s o c i a i s m u i t o rapidamente se terá apercebido que existe um nome temível: Bonifácio Gruveta Massamba. Este general é uma espécie da “lei suprema”. “Até os governadores sabem que ele é quem d e f a c t o m a n d a n a p r o v í n c i a ” . “Parecem bonecos nas mãos dele”. Também lhe chamam o “campeão do saque” e o “protector dos predadores”.

Bonifácio Gruveta era um accionista de referência de uma das principais empresas madeireiras locais.

Há ainda o caso um pouco mirabulante da sua parceria num projecto turístico multi-milionário na pequena Ilha do Fogo em Pebane, que, caracteristicamente, originalmente estava perfeitamente bloqueado e inviabilizado até que, logo após Bonifácio se ter associado a ele, como que por magia, tudo foi viabilizado. Os sócios referidos neste que é o maior investimento turístico da história da Zambézia são os Srs. Torrie Potgieter, Johannes van Heerden, Marius Boer, Bonifácio Gruveta e Belmiro Lampião. Nada mau, para uma ilhota deserta com menos que 44 hectares, a vinte quilómetros da costa zambeziana. Nada mau, para um ex-guerrilheiro sem dinheiro e sem experiência de gestão.

Mas entenda-se que só se não fosse assim é que surpreenderia.

O Velho Gruva

A popularidade do “Velho Gruva” entre as gerações mais jovens e intocadas (e ignorantes na quase totalidade) pelo passado recente do após-Independência, subiu consideravelmente quando, em total contra-corrente com a Frelimo e o governo durante as graves perturbações da ordem pública em 2010, Bonifácio basicamente foi à televisão e disse que as pessoas que se haviam revoltado tinham razão.

Estimo que mais que 90 por cento de quem está vivo na Zambézia (e em Moçambique) hoje não tinha nascido naquele dia em 1974 quando o jovem Bonfácio “marchou” sobre a cidade de Quelimane, sob o olhar atónito dos brancos locais, que em breve aviaram as malas.

Apropriadamente, o Diário da Zambézia já fez as honras ao velho General na sua edição de hoje na internet. “Outra vez luto para Zambézia. Mas porquê tem que ser assim? Morreu mesmo o General Bonifácio Massamba Gruveta? Inacreditável. Mas não há como foi se embora aquele que defendia os interesses do seu povo. O primeiro Governador da província após a independência nacional. Gruveta foi-se e deixa muita coisa numa altura em que a província e a cidade o precisava. O que terá acontecido com o velho pahh? Não havia como salva-lo? Lágrimas não param de chover no seio dos zambezianos porque mais uma vez foi-se mais um. Porquê tem que ser assim? O velho “Gruva” como o tratávamos, era amigo, embora alguns o temiam, mas era simples pessoa. Varios “sms” via celular circulam pela morte do general na reserva. Questiona-se se é verdade ou não. Porque estaria-se a mentir? Nada, será que o velho foi-se mesmo numa altura destas? Não há palavras neste momento e apenas dizer “adeus embondeiro”. Paz a sua alma.”

Uma nota final. Se algo se pode aperceber desta pequena crónica biográfica, é que muito pouco está escrito sobre capítulos inteiros da história de Moçambique. Em que, quer se queira quer não, personalidades como o General Bonifácio Gruveta Massamba nela estão inescapavelmente inscritos. Entendê-las, e o seu percurso, é entender o que foi, quando foi, onde foi e porque foi.

Num discurso proferido no feriado de 7 de Setembro de 2006, o Presidente Armando Guebuza referiu-se a, entre outros, Bonifácio Gruveta, como uma “figura lendária” do firmamento moçambicano.

Gerações futuras – certamente não esta – o decidirão.

Para já, ainda não percebi o que foi aquilo dos fuzilamentos em frente às crianças de escola. Pois nada encontro escrito sobre o assunto.

Mas pelos vistos, na Zambézia, em Quelimane, todos se lembram desses dias.

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