THE DELAGOA BAY REVIEW

26/05/2011

BOA NOITE, MANUELA ARRAIANO

Filed under: António Botelho de Melo, In Memoriam, Manuela Arraiano — ABM @ 3:13 am

Tardiamente, por uma nota enviada a meio da noite de ontem (24 de Maio) pelo Rogério Carreira, tomei conhecimento de que a Manuela Arraiano, que trabalhou no Rádio Clube de Moçambique,  havia falecido em Bruxelas, onde residia, no dia 15 de Maio de 2011.

A notícia motivou-me para escrever esta curta nota.

Eu nasci em 1960. Desde cedo me aficionei a escutar as emissões do Rádio Clube de Moçambique, que, acredito hoje reunia um conjunto de profissionais e de talentos invulgares e em quase total desproporção àquilo que um blogueiro que li hoje chamava, com algum sentido de humor, “a pequena tribo branca da África Oriental”. Ainda hoje, se me sentar com quem se lembra, consigo facilmente recordar os detalhes mais ínfimos de muito do que escutei no Rádio Clube de Moçambique.

E isso devia-se, mais do que tudo, à qualidade de quem lá mandava e trabalhava.

Não há outra explicação.

Saí de Moçambique pela primeira vez em Fevereiro de 1975, com 15 anos de idade. Pelo que o meu consumo até à data, do que o RCM produzia, foi feito com os ouvidos e a mente de um miudo e de um jovem adolescente. Mas os anos deram-me conhecimento e perspectiva. Pude comparar notas.

Na altura, não sabia quem era a Manuela Arraiano. Infelizmente, ainda não sei. Pouco ou nada encontro. Acredito que fazia parte da equipa dos magníficos que faziam a rádio em Moçambique.

Só há relativamente pouco tempo é que aprendi que era dela a voz lânguida e maternal que, com um intimismo que mesmo então já me despertava qualquer coisa, a meio da noite, já todos a dormir lá em casa (e se o pai Melo sonhasse que eu àquela hora estava debaixo dos lençóis a escutar o rádio eu correria sérios riscos disciplinares), creio que cerca da meia noite e meia, assinalava o fecho da emissão da noite com uma despedida de todos quantos estariam de pé ou a escutar a transmissão.

Noctívago latente, claro que eu conhecia de cor esse ritual. De facto, eu deitava-me mais tarde pois ficava a ler um livro qualquer até quase às duas horas da manhã. Habitualmente, eu esperava por esse fecho de emissão para mudar directamente para uma emissão da SABC, em onda curta e naquela esquisita mistura de inglês e Afrikaans, a qual continuava até pelo menos eu adormecer.

O curioso – e aí reside um aspecto peculiar, é que, noite após noite, eu não mudava do RCM para a SABC sem primeiro escutar na totalidade o que me parecia uma espécie de balada de despedida da estação – na voz da Manuela Arraiano. Acho que logo a seguir o RCM ainda emitia o hino nacional português, aquela invectiva republicana e anti-britânica do Kheil. Mas esse não escutava. Não conseguia. Pois era tão estridente e tão totalmente dissonante com o ambiente tranquilo e escuro da hora, que chocava.

Certamente dissonante em relação à mensagem proferida pela Manuela, com aquela música tristonha como pano de fundo.

Muitos, muitos anos depois, por causa das modernices da internet e dos que se ainda lembravam e queriam relembrar, pude escutar novamente a algo mistica mensagem de boas noites de Manuela Arraiano no Rádio Clube de Moçambique.

E senti algo.

Porquê?

A mensagem, em si, é tão inocente que é quase inócua. A música uma conhecida balada, tristonha, até algo bonita.

É outra coisa.

Nenhuma estação de rádio ou televisão que se preze hoje em dia, despede-se de ninguém. Neste mundo moderno, online, quer-se tudo e todos acordados 24 horas por dia, as últimas desgraças de todo o mundo retransmitidas imediatamente e ao vivo, as banalidades insuportáveis dos políticos e das celebridades de 14 minutos e meio do Andy Warhol cuidadosamente empacotadas e repetidas ad-nauseum, como que para preencher quotas virtuais de repartição administrativa das influências e do discurso político.

A vida que eu conheci em África tinha uma cadência muito mais clara. O dia seguinte era cortado por uma noite de descanso. E o fim dessa noite era assinalado pelo fecho da emissão da Estação A do Rádio Clube. Para mim, creio que esse ritual, a voz da Manuela Arraiano e a música arrastada, eram o fim do dia, que eu prolongava um nadinha com a rádio sul-africana.

Depois era o silêncio, o escuro, o descanso, até à madrugada do dia seguinte.

E esse momento de pausa, e essa mensagem simples, a essa hora, tinha significado. Era uma reafirmação de uma certa ordem sequencial da vida, da nossa humanidade, do respeito devido a todos aqueles que, por uma razão ou outra, estavam acordados àquela hora.

Claro que eu na altura não sonhava que vivia sobre um vulcão, não sabia nada sobre regimes coloniais, sobre movimentos guerrilheiros, sobre equilíbrios de forças, democracia e muito menos política. Crescera no que já era antes de eu ser, e partia daí. As coisas só podiam mudar e para melhor. Nesse aspecto, a ilusão de Lourenço Marques era quase perfeita para mim, pela dicotomia entre o mato infindável e fascinante, e a modernidade sofisticada da cidade, e a promessa de ambos.

No dia 25 de Abril de 1974 à tarde, tive que perguntar à minha mãe o que era um golpe de Estado. E mesmo quando ela me explicou, e da sua ligação directa com a situação na minha terra, encolhi o ombros e até achei muito bem que Moçambique ficasse independente. Aquilo de só nós os brancos mandarmos em Moçambique só porque a pele era clara parecia um pouco anacrónico. Era o que eu pensava. Mas digamos que, na escala cósmica das minhas preocupações na altura, essa era uma questão que se havia de resolver. Um dia. Ainda em minha vida, mas não dali a uma semana, ou um mês.

Rapidamente, assisti, como quase todos os da pequena tribo branca da África Oriental, a uma tempestade. Muitos “regressaram” a Portugal. Outros, como eu, meramente saíram. Para quase todos, foi um exílio emocional, marcado pelo corte entre essa cadência da natureza o dia a seguir a noite, a noite a seguir ao dia, o trabalho, a escola, o desporto, os amigos. De repente toda a gente que eu conhecia desapareceu, perdeu quase tudo, os empregos, os bens, os amigos e as referências, e eu encontrei-me num país que conhecia mas só de longe, cujas referências, rituais e especificidades me eram no mínimo estranhas, longe da família, praticamente  a viver de uma caridade (solidariedade?) relutante e alheia.

Lutei.

Trinta e tal anos volveram antes que eu tivesse a chance de escutar a novamente mensagem de Manuela Arraiano – uma injustiça à Manuela, que, descobri, era uma mulher muitíssimo mais culta, com obra feita e interessante que o breve solilóquio radiofónico de três minutos e trinta e seis segundos que dura a sua mensagem de boa noite.

Mas é por causa dessa mensagem que no seu nome foi, e é, repetido.

É uma ironia.

Quando escutei novamente a mensagem de despedida do Rádio Clube que ela gravou há tantos anos, recordei-me das noites, nos anos 60 e 70, em que a ouvi. Aquelas noites quentes, escuras, silenciosas de África, o céu ao mesmo tempo tão escuro e tão reluzente com um milhão de estrelas, as folhas das grandes árvores tropicais a oscilarem suavemente por força de um vento suave, invisível, apaziguador.

Era tempo de descansar, de dormir. O dia seguinte será um novo dia, cheio de coisas para fazer.

De coisas boas para fazer.

Foi o que eu senti quando revisitei a curta mensagem de Manuela Arraiano.

E por ser uma memória tão pessoal, tão mágica e tão profunda, pensando bem, talvez tal não seja tão insignificante, nem tão pouco redutor, para nós todos e para a Manuela.

Aquela pequena mensagem, perdida da noite, que Manuela interpretou, afinal, ecoou pelos tempos, e pela memória.

Recordou-me a paz que foi, e era, uma juventude despreocupada, antes da tempestade que se abateu.

Por tudo isso, recordar-me-ei sempre dessa mensagem, e dela.

Boa noite, Manuela Arraiano.

Dorme em paz.

(para ouvir prima AQUI)

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