Texto da autoria de João Manuel Almeida Catarino (foto no fim do texto), gentilmente cedido para publicação aqui, com uma breve memória pessoal sobre o seu Tio, José Teixeira Catarino, uma figura de referência da Lourenço Marques colonial e sobre o qual muito haverá a dizer.
Nunca conheci o meu tio José Catarino, devido a uma zanga entre irmãos: meu pai, Manuel Teixeira Catarino, e ele, o irmão mais velho, José Teixeira Catarino.
Em criança, em Lourenço Marques, onde nasci, fui com minha mãe, várias vezes, à Padaria Lafões, uma das propriedades do meu tio José, mas nunca o encontrei.
Só o vislumbrei em dia que sei precisar, 8 de Dezembro de 1946. Nesse dia, eu e minha mãe tínhamos ido assistir à procissão, em honra de Nossa Senhora da Conceição, que se realizava em frente à Catedral, com enorme assistência.
Disse-me minha mãe: “aquele senhor muito alto e forte que participa na procissão, é o teu tio José”. Olhei e, na verdade, apercebi-me de alguém bem alto e forte que se salientava acima de todos, mas, infelizmente, não lhe vi o rosto.
Rumo a Portugal, deixámos Moçambique (minha mãe, Olga Alcântara de Almeida Catarino, minha irmã, Sofia Manuela Almeida Catarino, e eu), era eu ainda uma criança, em Abril de 1947.
Regressei a Lourenço Marques, em 1970, convidado pelo então Secretário das Comunicações, engenheiro Villar Queiroz, onde trabalhei no Serviço de Formação dos Caminhos de Ferro de Moçambique (CFM), até Setembro de 1977.
O meu tio José Teixeira Catarino tinha falecido em 1964, pelo que, também desta vez, não tive oportunidade de conhecê-lo pessoalmente.
Em serviço, deslocava-me com frequência a departamentos dos CFM localizados ao longo das linhas da Beira e de Nampula, para avaliação das necessidades de formação. Muita vez aconteceu que o meu apelido Catarino deu origem à pergunta: “o senhor José Catarino é seu familiar?”. Face à minha resposta, invariavelmente diziam-me: “o seu tio era um grande amigo dos desfavorecidos, dando-lhes todo o apoio, em troca de nada”. Disso, muito beneficiavam funcionários de baixas categorias do Caminho-de-Ferro e seus familiares que viviam ao longo da Linha de Lourenço Marques/Ressano Garcia; “era uma excelente pessoa!”.
Já em 1977, o Director dos CFM na altura, o Engenheiro Alcântara Santos — mais tarde Ministro da Comunicações do governo de Moçambique, falecido no acidente aéreo que vitimou também o Presidente Samora Machel —, encarregou-me de estudar o programa de um curso de formação para os acidentados das Manobras (Gare de Triagem) que estavam a exercer funções de guarda-linhas, em condições muito difíceis e deprimentes, ao sol e à chuva. À partida, visava dar-se-lhes o mínimo de conhecimentos para exercerem funções de auxiliares administrativos. Aprovadas as linhas gerais do curso, a Direcção determinou a realização de uma primeira reunião, com os referidos acidentados, para os informar do que era pretendido; seguir-se-ia uma outra, decorrido algum tempo para que as ideias assentassem e se conhecer a opinião sobre o plano. As reuniões teriam a presença de um representante das estruturas políticas da Frelimo afectas aos Caminhos de Ferro do Maputo.
As reuniões foram marcadas para a meia-noite por causa dos turnos, segundo a explicação que me foi dada, num armazém desactivado, com péssimas condições de iluminação e de lugares minimamente adequados para os referidos funcionários, que sofriam de amputações várias.
Reclamei, mas foi-me dito ser o único local disponível. Nunca em toda a minha vida, tive reunião tão deprimente, triste e amargurada, face a cerca de vinte funcionários amputados, em maioria, dos membros inferiores. Tentei ser o mais breve possível, explicando o que a Direcção pretendia, tendo até agradecido a presença de todos, em hora tão tardia. Não me tendo sido posta qualquer questão, dei a reunião por terminada, tendo marcado uma outra para uma semana depois, à mesma hora.
Felizmente, no que respeita ao elemento da estrutura política da Frelimo , afecta aos CFM, fui agraciado com a presença de um moço muito simpático, culto e educado, de que não fixei o nome. Convidei-o para um petisco e aí trocámos informações sobre as nossas experiências: ele agente técnico de engenharia civil, com formação adquirida num país do Leste Europeu, nascido nos arredores de Maputo (como então passara a chamar-se a cidade de Lourenço Marques), filho de um ferroviário. Dei-lhe a conhecer que também eu era moçambicano, que a minha família tinha profundas raízes no país, especialmente do lado do materno. Meu bisavô já nascera em Lourenço Marques; o pai, meu trisavô, ‘bacharel em direito’, durante as Lutas Liberais, que se seguiram à morte do Rei D. João VI, foi preso pelos miguelistas, por ser um liberal militante, no Forte de São Julião da Barra (Oeiras, Portugal) donde fugiu, tendo embarcado clandestinamente, com a mulher, num barco que partia para Moçambique. Durante esta conversa, coloquei a possibilidade de a sua família conhecer meu tio, José Catarino, que tinha sido proprietário de diversas ‘cantinas’ funcionando ao longo da linha ferroviária. Marcámos encontro para dali a uma semana.
Para a segunda reunião chegámos bem cedo. Reparei numa profunda tensão e excitação por parte dos funcionários, que estavam, na maioria, de pé.
Cumprimentei-os e, mal tinha iniciado a reunião, os mais exaltados dirigiram-se para mim, de muletas no ar, pretendendo atingir-me, ao mesmo tempo que gritavam estarem a ser enganados por mim, vociferando que perderiam dinheiro se aceitassem o curso que eu lhes tinha proposto. Tentei esclarecer que não tinha conhecimento desse facto, pois o Director não me pusera a par disso, e que se o soubesse não teria aceite ser interlocutor de tal plano. Não me quiseram ouvir e estive quase para ser agredido.
Valeu-me o tal representante político da Frelimo que, aos gritos, os obrigou a sentar e a acalmar. E na língua ronga falou com eles. Nada entendi, mas vi que três dos participantes se dirigiram aos colegas. Tudo acalmou, como se nada se tivesse passado, e o representante político da Frelimo aconselhou-me a terminar a reunião e a informar que iria comunicar ao Director o seu descontentamento por ficarem lesados nos vencimentos que lhes tinham sido determinados de acordo com a condição de deficiência de cada um, resultante de acidente em serviço. Partiram, ficando só os três a que me referi. Perguntei ao elemento da Frelimo o que lhes tinha dito para os acalmar.
Para minha grande surpresa, tinha-os informado de que eu era sobrinho do senhor José Catarino, e como tal, nunca seria capaz de os atraiçoar, e que eu próprio iria falar com o Director, pois também me sentira enganado.
Os três funcionários que ficaram, pediram-me desculpa do que se passara, disseram-me que tinham informado os colegas de quem eu era e que não deviam esquecer que tinham sido apoiados pelo meu tio, pessoa bondosa e amiga e incapaz de fazer mal.
Então, um deles deu-me a conhecer que meu tio pagara a ida da mãe para a maternidade, sem o que ambos teriam, pela certa, morrido; os outros, que ele pagara tratamentos ao pai e a um irmão, e que durante um tempo os ajudara com um valor mensal em géneros, até as dificuldades passarem.
Devo a meu tio José Teixeira Catarino, que nunca conheci, à sua bondade, ao seu hábito de bem-fazer, o não ter ficado muito maltratado nessa noite, o que nunca esqueci, e que agora relato a pedido de meu primo José Manuel Catarino Soares, que está a tentar reconstituir a vida deste meu tio paterno (que é também seu avô materno) — uma vida cheia de interesse para a história de Moçambique no século XX.
Resta dar a conhecer que o meu encontro com o senhor Director dos CFM foi pouco amistoso, tendo conseguido, no entanto, que anulasse aquele seu azarado plano e se desculpasse por não me ter informado que estava prevista a redução dos vencimentos em mudança de carreira.
Amadora, 18 de Setembro de 2018
João Catarino
jmacatarino@gmail.com