THE DELAGOA BAY REVIEW

02/10/2018

O MEU TIO JOSÉ CATARINO, POR JOÃO CATARINO

Texto da autoria de João Manuel Almeida Catarino (foto no fim do texto), gentilmente cedido para publicação aqui, com uma breve memória pessoal sobre o seu Tio, José Teixeira Catarino, uma figura de referência da Lourenço Marques colonial e sobre o qual muito haverá a dizer.

José Teixeira Catarino.

 

Nunca conheci o meu tio José Catarino, devido a uma zanga entre irmãos: meu pai, Manuel Teixeira Catarino, e ele, o irmão mais velho, José Teixeira Catarino.

Em criança, em Lourenço Marques, onde nasci, fui com minha mãe, várias vezes, à Padaria Lafões, uma das propriedades do meu tio José, mas nunca o encontrei.

A Padaria Lafões em Maputo, 2010.

Só o vislumbrei em dia que sei precisar, 8 de Dezembro de 1946. Nesse dia, eu e minha mãe tínhamos ido assistir à procissão, em honra de Nossa Senhora da Conceição, que se realizava em frente à Catedral, com enorme assistência.

A Sé Catedral de Lourenço Marques, inaugurada em Agosto de 1944.

Disse-me minha mãe: “aquele senhor muito alto e forte que participa na procissão, é o teu tio José”. Olhei e, na verdade, apercebi-me de alguém bem alto e forte que se salientava acima de todos, mas, infelizmente, não lhe vi o rosto.

Rumo a Portugal, deixámos Moçambique (minha mãe, Olga Alcântara de Almeida Catarino, minha irmã, Sofia Manuela Almeida Catarino, e eu), era eu ainda uma criança, em Abril de 1947.

Regressei a Lourenço Marques, em 1970, convidado pelo então Secretário das Comunicações, engenheiro Villar Queiroz, onde trabalhei no Serviço de Formação dos Caminhos de Ferro de Moçambique (CFM), até Setembro de 1977.

O meu tio José Teixeira Catarino tinha falecido em 1964, pelo que, também desta vez, não tive oportunidade de conhecê-lo pessoalmente.

Em serviço, deslocava-me com frequência a departamentos dos CFM localizados ao longo das linhas da Beira e de Nampula, para avaliação das necessidades de formação. Muita vez aconteceu que o meu apelido Catarino deu origem à pergunta: “o senhor José Catarino é seu familiar?”. Face à minha resposta, invariavelmente diziam-me: “o seu tio era um grande amigo dos desfavorecidos, dando-lhes todo o apoio, em troca de nada”. Disso, muito beneficiavam funcionários de baixas categorias do Caminho-de-Ferro e seus familiares que viviam ao longo da Linha de Lourenço Marques/Ressano Garcia; “era uma excelente pessoa!”.

Já em 1977, o Director dos CFM na altura, o Engenheiro Alcântara Santos — mais tarde Ministro da Comunicações do governo de Moçambique, falecido no acidente aéreo que vitimou também o Presidente Samora Machel —, encarregou-me de estudar o programa de um curso de formação para os acidentados das Manobras (Gare de Triagem) que estavam a exercer funções de guarda-linhas, em condições muito difíceis e deprimentes, ao sol e à chuva. À partida, visava dar-se-lhes o mínimo de conhecimentos para exercerem funções de auxiliares administrativos. Aprovadas as linhas gerais do curso, a Direcção determinou a realização de uma primeira reunião, com os referidos acidentados, para os informar do que era pretendido; seguir-se-ia uma outra, decorrido algum tempo para que as ideias assentassem e se conhecer a opinião sobre o plano. As reuniões teriam a presença de um representante das estruturas políticas da Frelimo afectas aos Caminhos de Ferro do Maputo.

As reuniões foram marcadas para a meia-noite por causa dos turnos, segundo a explicação que me foi dada, num armazém desactivado, com péssimas condições de iluminação e de lugares minimamente adequados para os referidos funcionários, que sofriam de amputações várias.

Reclamei, mas foi-me dito ser o único local disponível. Nunca em toda a minha vida, tive reunião tão deprimente, triste e amargurada, face a cerca de vinte funcionários amputados, em maioria, dos membros inferiores. Tentei ser o mais breve possível, explicando o que a Direcção pretendia, tendo até agradecido a presença de todos, em hora tão tardia. Não me tendo sido posta qualquer questão, dei a reunião por terminada, tendo marcado uma outra para uma semana depois, à mesma hora.

Felizmente, no que respeita ao elemento da estrutura política da Frelimo , afecta aos CFM, fui agraciado com a presença de um moço muito simpático, culto e educado, de que não fixei o nome. Convidei-o para um petisco e aí trocámos informações sobre as nossas experiências: ele agente técnico de engenharia civil, com formação adquirida num país do Leste Europeu, nascido nos arredores de Maputo (como então passara a chamar-se a cidade de Lourenço Marques), filho de um ferroviário. Dei-lhe a conhecer que também eu era moçambicano, que a minha família tinha profundas raízes no país, especialmente do lado do materno. Meu bisavô já nascera em Lourenço Marques; o pai, meu trisavô, ‘bacharel em direito’, durante as Lutas Liberais, que se seguiram à morte do Rei D. João VI, foi preso pelos miguelistas, por ser um liberal militante, no Forte de São Julião da Barra (Oeiras, Portugal) donde fugiu, tendo embarcado clandestinamente, com a mulher, num barco que partia para Moçambique. Durante esta conversa, coloquei a possibilidade de a sua família conhecer meu tio, José Catarino, que tinha sido proprietário de diversas ‘cantinas’ funcionando ao longo da linha ferroviária. Marcámos encontro para dali a uma semana.

Para a segunda reunião chegámos bem cedo. Reparei numa profunda tensão e excitação por parte dos funcionários, que estavam, na maioria, de pé.

Cumprimentei-os e, mal tinha iniciado a reunião, os mais exaltados dirigiram-se para mim, de muletas no ar, pretendendo atingir-me, ao mesmo tempo que gritavam estarem a ser enganados por mim, vociferando que perderiam dinheiro se aceitassem o curso que eu lhes tinha proposto. Tentei esclarecer que não tinha conhecimento desse facto, pois o Director não me pusera a par disso, e que se o soubesse não teria aceite ser interlocutor de tal plano. Não me quiseram ouvir e estive quase para ser agredido.

Valeu-me o tal representante político da Frelimo que, aos gritos, os obrigou a sentar e a acalmar. E na língua ronga falou com eles. Nada entendi, mas vi que três dos participantes se dirigiram aos colegas. Tudo acalmou, como se nada se tivesse passado, e o representante político da Frelimo aconselhou-me a terminar a reunião e a informar que iria comunicar ao Director o seu descontentamento por ficarem lesados nos vencimentos que lhes tinham sido determinados de acordo com a condição de deficiência de cada um, resultante de acidente em serviço. Partiram, ficando só os três a que me referi. Perguntei ao elemento da Frelimo o que lhes tinha dito para os acalmar.
Para minha grande surpresa, tinha-os informado de que eu era sobrinho do senhor José Catarino, e como tal, nunca seria capaz de os atraiçoar, e que eu próprio iria falar com o Director, pois também me sentira enganado.

Os três funcionários que ficaram, pediram-me desculpa do que se passara, disseram-me que tinham informado os colegas de quem eu era e que não deviam esquecer que tinham sido apoiados pelo meu tio, pessoa bondosa e amiga e incapaz de fazer mal.

Então, um deles deu-me a conhecer que meu tio pagara a ida da mãe para a maternidade, sem o que ambos teriam, pela certa, morrido; os outros, que ele pagara tratamentos ao pai e a um irmão, e que durante um tempo os ajudara com um valor mensal em géneros, até as dificuldades passarem.

Devo a meu tio José Teixeira Catarino, que nunca conheci, à sua bondade, ao seu hábito de bem-fazer, o não ter ficado muito maltratado nessa noite, o que nunca esqueci, e que agora relato a pedido de meu primo José Manuel Catarino Soares, que está a tentar reconstituir a vida deste meu tio paterno (que é também seu avô materno) — uma vida cheia de interesse para a história de Moçambique no século XX.

Resta dar a conhecer que o meu encontro com o senhor Director dos CFM foi pouco amistoso, tendo conseguido, no entanto, que anulasse aquele seu azarado plano e se desculpasse por não me ter informado que estava prevista a redução dos vencimentos em mudança de carreira.

Amadora, 18 de Setembro de 2018
João Catarino

jmacatarino@gmail.com

João Manuel Almeida Catarino, 2017.

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