THE DELAGOA BAY REVIEW

30/07/2023

ANTÓNIO RITA FERREIRA, ANOS 40

Imagem retocada e colorida.

Tive a sorte de conhecer relativamente bem Rita Ferreira, que foi meu vizinho na Rua dos Aviadores em Lourenço Marques nos anos 70 (mudou-se de uma velha casa junto do Hotel Cardoso para o 1º andar vagado pelos Picolos quando eles se mudaram para o Bairro do Triunfo) e, décadas depois, em Cascais (uma casa em Bicesse), até falecer. Tinha a mulher e três filhos. O mais novo, que eu conhecia por ser da minha idade, como a mulher, morreu anos antes dele. Na segunda fase do nosso convívio, em Portugal, falávamos durante horas e horas em pessoa e ao telefone sobre as suas experiências de Moçambique e trocávamos documentos. Era um prazer, e nada mau, tendo em conta que ele basicamente não aturava quase mais ninguém, incluindo a pequena procissão de pesquisadores que regularmente lhe iam bater à porta com dúvidas existenciais.

Rita Ferreira nos primórdios. O seu primeiro emprego foi servir a administração colonial junto da corte dos reis do Barué. Outros tempos.

Esboço Biográfico

(texto de base da Enciclopédia Verbo Luso Brasileira de Cultura, Ed. Século XXI, volume 25, pesadamente editado por mim)

Rita Ferreira foi mais conhecido por ter sido um investigador em Ciências Sociais.

Apesar de nascido na obscura localidade portuguesa de Mata de Lobos em 14 de Novembro de 1922, foi levado para Moçambique ainda bebé e ali viveu mais de meio século.

Completou o ensino secundário em Lourenço Marques e, anos mais tarde, fez Estudos Bantos na Universidade de Pretória.

A sua carreira foi feita quase integralmente nos Serviços da Administração Civil de Moçambique colonial, atingindo a categoria de Administrador de Circunscrição. Em 1963, transitou, como primeiro assistente, para o Instituto do Trabalho em Lourenço Marques. Em 1971, foi chefe de Serviços no Centro de Informação e Turismo, onde ascenderia a técnico-director, e, já depois da Independência, a director.

Quando para tal foi instado pela Frelimo, manteria a nacionalidade portuguesa por (obviamente) podê-lo fazer e por ter algumas dúvidas quanto às intenções do novo regime.

Simultaneamente, por solicitação do então Reitor, leccionou, na Universidade Eduardo Mondlane (a ex-Universidade de Lourenço Marques de Veiga Simão. Na altura havia muitas “ex”), a cadeira de História Pré-Colonial, entre 1975 e 1977.

Em 1977, na sequência de um incidente gratuito movido pelas autoridades moçambicanas, saíu de Moçambique e radicou-se em Cascais, Portugal, onde se reformou do funcionalismo público e viveria o resto da vida. Na altura só havia dois que se lhe comparavam, um era Gerhard Liesegang, o outro talvez o Capela.

Paralelamente às suas ocupações profissionais e aproveitando as oportunidades surgidas, desenvolveu notável actividade nos domínios da Antropologia e da Sociologia. Além de participar em encontros e congressos nacionais e internacionais, publicou numerosos artigos e recensões em periódicos especializados, avultando as centenas de editoriais publicados (1963-1972) nos principais jornais diários, onde, entre outros temas, alertou para a gravidade das carências que afectavam a maior parte das comunidades rurais e tribais espalhadas pelo território moçambicano. Em 1972, a convite de várias universidades norte-americanas, visitou os respectivos Centros de Estudos Africanos, onde proferiu palestras e participou em debates.

Destacou-se, igualmente, pela sua participação, entre 1983 e 1988, no projeto de microfilmagem de variada documentação sobre Moçambique existente nos arquivos portugueses (onde estava tudo a monte em caixas desorganizadas como não podia deixar de ser), organizado pelo Arquivo Histórico de Moçambique, pago se não me engano pelos (?) suecos, e que tornaria acessível aos estudiosos moçambicanos uma inestimável parte da história daquele país.

O seu último trabalho, publicado em edição de autor em 2012, intitula-se “Colectânea de documentos, notas soltas e ensaios inéditos para a História de Moçambique”.

Apesar de não ser um académico profissional, e talvez por isso, foi uma mente independente. Tal como resistira às pressões do então regime e academia portugueses para justificar e “dourar a pílula” colonial em Moçambique, mais tarde resistiria às modas “progressivas” esquerdistas, marxizantes, invariavelmente re-interpretativas de muita da realidade moçambicana. Merecendo por isso duplas felicitações.

Morreu em Cascais no dia 20 de abril de 2014.

O seu espólio encontra-se espalhado em vários locais, entre universidades e colectâneas como a Casa Comum. Um seu filho mantém um sítio na internet. O que é uma pena, pois aquilo tudo é, como muito do que envolve a história de Moçambique, uma lixeira sem nexo que desmerece a pessoa. Mas suponho que é melhor do que nada.

Foi galardoado, por três vezes, pela Academia. de Ciências de Lisboa.

31/10/2019

A CARTA DE ANTÓNIO RITA FERREIRA, 1958

Com vénias ao interessante artigo preparado pelas professoras Cláudia Castelo (Universidade de Coimbra) e Vera Marques Alves e a Revista Etnográfica, edição de Junho de 2019 (páginas 417 a 438). Indirectamente, ao Filipe Rita Ferreira, que levou em cima com o sítio do Pai.

A carta que em baixo reproduzo, foi escrita em 1958 por Rita Ferreira (então um modesto mas dedicado funcionário público colonial que deambulava nas ciências sociais no seu tempo livre) a um seu amigo, que acabara de levar uma catanada do Regime e dos seus defensores em Lourenço Marques. É para mim uma manifestação do dessassombro e lucidez com que Rita Ferreira, e muitos como ele, encaravam aquilo que era Moçambique no raiar da década de 1960, quando a maior parte do continente africano recuperaria a soberania, depois de quase um século de ocupação europeia. Marca pelo que diz de Moçambique e do que o regime português por ali andava a fazer.

Na carta, à laia de consolação ao seu amigo, Rita Ferreira alude a um exercício de bravado “privado”, ou seja, mostra ao amigo um artigo supostamente para publicação em que arrasa o imaginário colonial vigente – mas que, claro nunca será publicado, pois se o fizesse seria imediatamente despedido e possivelmente preso. Sabemos dele, e desta carta, porque ele as guardou e agora chegou à luz do dia.

(início)

A. Rita Ferreira
C.P. 565
Beira
22 de Abril de 1958

Amigo e Sr. Prof.

Muito agradeço a sua carta de 24 do mês findo. A lufa-lufa do serviço e a preparação duma “recapitulação” da classificação e agrupamento étnicos de Moçambique, impediram-me que lhe respondesse há mais tempo. A situação do Quadro Administrativo a respeito de pessoal é cada vez mais angustiosa: não há quem queira ser aspirante. O resultado é que tenho de passar o dia a fazer serviço de dactilógrafo e outro serviço puramente mecânico, que me deixa arrasado.

Escrevi sobre a sua comunicação e a estúpida reacção local, o artigo que lhe mando. O “Notícias”, onde costumo colaborar, não o publicou. Ignoro se por censura interna se por censura oficial.

Creio ter sido, contudo, bastante cauteloso no que escrevi. Se permite que lhe dê a minha opinião, quer parecer-me, pelas referências que li, que o Sr. Prof., impedido como se encontrava de tratar o assunto com a necessária independência devido à posição oficial que ocupa, se viu constrangido a concentrar a sua atenção em aspectos de somenos significação sociológica e a responsabilizar os europeus de Moçambique pela situação que existe. Eu, à base do conhecimento do meio moçambicano que tenho e do que sei que acontece em Angola e S. Tomé, sou, aqui para nós, um tanto mais ousado. Ponho em causa as virtudes do português como colonizador no mundo moderno. Pode ser que tenha sido excelente colonizador há séculos, quando a cultura ocidental se não achava impregnada por factores económicos como hoje em dia. Mas hoje é um péssimo colonizador, o único que em toda a África ainda usa e abusa dessas duas chagas do colonialismo: o trabalho forçado e os castigos corporais. O colonizador português conseguiu criar pelo menos nas três “províncias” que conheço estruturas político-económico-sociais que não podem passar sem o emprego destes dois meios de opressão. Em Angola, a situação do trabalho forçado ainda é pior (mas mais bem organizada) do que em Moçambique: aí o número de negros a distribuir por cada agricultor é fixado pelos próprios Negócios Indígenas e os administradores têm que os fornecer. E em S. Tomé vi os próprios administradores das roças empregarem castigos corporais. Em face destas e doutras cruéis realidade[s], creio que o “luso-tropicalismo” ou outras frases como a que citou de “tradição de colonialismo missionário” têm funções de mito em todo o sistema colonial português e constituem cómodas racionalizações para os teóricos metropolitanos. Estou certo que a elas recorreu para poder chamar a atenção dos responsáveis pela governança, sem que corresse o risco inútil e inglório de ser por eles considerado com desconfiança.

A “situação colonial” portuguesa pode ser definida como o faz George Balandier em relação a todas as “situações coloniais”, mas com essas características não atenuadas, como se diz, pela “brandura dos nossos costumes” ou pelas nossas “ten[d]ências atávicas de assimiladores”, mas exacerbadas pelo nosso atrazo económico, pela nossa irrascibilidade, pela sub-instrução e sub-educação do povinho humilde de onde sai a grande massa dos colonizadores. Oh, senhores, não poder escrever eu livremente sobre as amargas experiências dum homem colonial! O que se passou em mim naquela noite em S. Tomé em que fui insultado pelo administrador da roça onde estava hospedado por ter “ousado” ouvir sem a sua augusta presença as humildes queixas dos cabo-verdianos, angolanos e moçambicanos ali trabalhando em regime compelido. Talvez um dia o faça, já no fim da carreira, e que golpe não vai ser para os teóricos! Um golpe tão grande como vai ser o vibrado pelo trabalho do Prof. Marvin Harris.

Na “situação colonial” portuguesa há algo que “ne marche pas”. Como explicar essas fugas em massa de trabalhadores, de famílias, de tribos para os territórios vizinhos, na Guiné, em Angola, em Moçambique. Só não fogem de S. Tomé por ser uma ilha! Ainda lendo recentemente o trabalho do Prof. Clyde Mitchell sobre os Ajauas da Niassalândia19(para onde, como sabe, emigraram centenas de milhares, talvez algo como um milhão de indígenas de Moçambique) notei sem surpresa a informação de que todos aqueles que interrogou alegaram como motivo de abandono da terra natal, os maus tratos.

Na Federação segundo as últimas estatísticas, há nada menos do que 133.000 trabalhadores activos do sexo masculino de proveniência moçambicana. E na União 150.000. Isto junto aos do Tanganica, perfazem, como vê, quase metade dos homens válidos de Moçambique. E bestificamente, continuamos a dizer (como na recente e saborosa discussão do Plano de Fomento no Conselho Legislativo, quando se falou de mão de obra) que o indígena é preguiçoso e que só por meio de preparação psicológica se pode levar ao trabalho…

A misceginação também tem que se lhe diga. Há milhares de crianças mistas abandonadas pelos pais. E isto é tanto mais notável quanto é certo que no Congo Belga os pais das crianças mistas ilegítimas são sistematicamente chamados à responsabilidade…

Sobre a assimilação nem é bom falar.

Poucos são os que têm a coragem de aludir a esta situação catastrófica. E o Sr. Prof. foi um desses, embora sob evidentes constran-gimentos psicológicos. Nós, os que vemos a situação com certa lucidez, não devemos, realmente, fugir. É preciso que fiquemos, para que possamos analisar, estudar (e, como sabe, ser um dia escutados) o ambiente sociológico que nos cerca. Temos uma tarefa a cumprir.

Os hábitos e pontos de vista locais estão tão empedernidos que me parece só por pressão do Governo Central poderem ser alterados. Quando digo locais, refiro-me também a S. Tomé e Angola. Mas não terá a Metrópole receio de reacções locais de carácter separatista, se quiser pôr em prática certas medidas? É o que me parece que está acontecendo com o problema da mão de obra, por exemplo. Se se pusesse em prática as determinações legais, as repercussões económicas seriam extremamente graves e daí a revolta contra o Governo Central.

Permito-me aconselhá-lo a rodear a sua próxima visita do maior sigilo, pois me constou haver alguns elementos em Lourenço Marques que aguardam a sua vinda para se manifestarem contra si. É realmente lamentável, estúpida e incoerente e própria de ignorantões, a reacção desencadeada pela sua comunicação.

Desculpe esta carta ir um pouco atabalhoada. Tive que a interromper a todo o momento para atender a assuntos de serviço e um deles bem irritante: um dos aspirantes vai de urgência para a metrópole e com esta partida agrava-se a acumulação do expediente. O curioso da situação é que conheço tantos indígenas excelentes dactilógrafos, que andam miseravelmente de porta em porta procurando emprego por salários irrisórios! Aqui há dias, como se aceitam aspirantes, interinos, com a 4.ª classe, um assimilado requereu a sua admissão. Pois foi por aqui uma risota gostosa. Até já pretos há no quadro administrativo, diziam, em grandes galhofas! A situação dos assimilados e mistos é muito angustiosa em face da legislação de salários mínimos e outras regalias, porque ninguém está disposto a dar-lhes os mesmos salários e direitos que se dão aos europeus. Enfim, problemas e mais problemas. A vantagem deste quadro é estarmos em contacto directo com eles.

Muito afectuosamente,

Rita Ferreira

(fim)

 

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