THE DELAGOA BAY REVIEW

27/10/2010

O INSPECTOR MONTEIRO DOS SANTOS DA PIC

A realidade é mais inverosímil que a ficção: O Inspector Monteiro dos Santos da PIC moçambicana em 1975 era Zéca Russo

por ABM (27 de Outubro de 2010)

Há umas semanas, a propósito da queda da monarquia portuguesa e da inauguração do edifício da Câmara Municipal da então cidade de Lourenço Marques (e que fica mesmo em frente ao Desportivo na baixa de Maputo) mencionei nesta Casa que estive lá à frente aquando do julgamento dum tal Zeca Russo.

Confesso que rigorosamente nada mais sabia sobre o homem, que pensava ser um ladrão comum mas com eventualmente alguma laracha.

Mas o meu caro Carlos Gil chamou-me a atenção para um texto de 2007, feito pelo Dr. Carlos Manuel Adrião Rodrigues.

O Dr. Carlos Rodrigues descreve-se, num blogue que alimenta, assim:

Sou advogado há mais de 50 anos. Além disso fui vice-governador do Banco de Moçambique, membro da Comissão Admnistrativa do Rádio Clube de Moçambique, depois do 25 de Abril,membro do Conselho de Admnistração da RDP. Colaborei em A Voz de Moçambique, O Brado Africano, A Tribuna de Lourenço Marques. Fui director e escrevi na Objectiva 60, orgão do cine-clube de Lourenço Marques, de que fui presidente, bem como do Teatro de Amadores de LM (TALM). Colaborei ainda no Diário de Lisboa e na Capital. Fui co-autor do livro “O Julgamento dos padres do Macúti” e sou autor de diversos livros de direito, como Código Civil Anotado, Função Pública etc.

Este senhor é das pessoas com quem gosto de tomar uns chás e ouvir as suas histórias.

No seu blogue, Gaudium et Spes, que é um tesouro que ainda nem comecei a analisar, contém um texto resumido sobre o Zéca Russo.

O que ele conta ali quase que nem dá para acreditar.

Esse texto descreve a história do tal de Zéca Russo e que abaixo copio, com vénia. Mas aborda outras questões, que aqui censuro (o texto original pode ser lido na íntegra na ligação acima) para se manter algum foco, sendo de salientar que o Dr. Adrião Rodrigues estava em Moçambique na altura dos factos e ficou em Moçambique depois da Independência como Vice-Governador do Banco de Moçambique.

Então vamos ao Zéca Russo, na versão CMAR. O tal que eu vi do topo da árvore em frente ao Desportivo:

O Zeca Russo foi uma figura mítica na Lourenço Marques colonial. Filho ou sobrinho da moça das docas, figura que povoava os primeiros poemas do poeta Virgílio de Lemos, era jovem, bem parecido, simpático no trato mas cedo se começou a meter pelos trilhos do pequeno crime. Um furto aqui, uma burla acolá, adquiriu também a fama de ser uma espécie de Zé do Telhado que roubava aos ricos para dar a pobres. Não seria bem assim, mas a verdade é que ajudava a mãe, pessoa pobre que o adorava e não fazia a menor ideia da origem do dinheiro que ele lhe dava. Ao mesmo tempo Zeca ajudava familiares e amigos também pobres, com pequenas importâncias,cuja posse atribuía sempre ao trabalho ou a pequenos negócios de ocasião. Segundo me contou a sua advogada, Ruth Garcez, nesta fase ele sempre teve a preocupação de disfarçar e justificar a origem dos fundos que doava a familiares e amigos pobres, de modo que estes tinham por ele grande estima.
O mesmo já não acontecia com as vítimas dos furtos e burlas, que sabiam muito bem onde ele arranjava o dinheiro e não se coibiam de o divulgar. . Mas como os furtos e as burlas eram de pequenos montantes e o Zeca Russo era simpático e tinha fama de generoso, começaram a chamar-lhe Zé do Telhado mas não apresentaram queixa contra ele ou quando apresentaram, não se preocuparam em carrear provas para o processo, de modo que os seus pequenos crimes de juventude ficaram impunes.

Depois foi para a África do Sul, onde subiu uns patamares na prática de crimes, passando a dedicar-se em gang, a actos violentos contra pessoas e bens, sempre com o objectivo final de se apoderar de património alheio. Foi preso,mas, antes de julgado, conseguiu fugir e na fuga, ainda feriu um policia branco sul-africano o que deixou a corporação policial sul-africana com um ódio de morte ao Zeca Russo.

Veio para Moçambique, no principio da década de 1970 e, durante uns tempos, manteve-se sossegado. Mas quando viu que a África do Sul não requeria a sua extradição (nem podia) logo organizou a sua pequena quadrilha, de constituição multi-racial, e Lourenço Marques foi varrida por uma série de roubos e assaltos, sobretudo a casas e ourivesarias, de quantias elevadas, o que causou alguma perturbação na cidade.

Mas a policia depressa detectou e prendeu os autores dos crimes, que aliás confessaram.

Assim o julgamento que se seguiu não prometia grande espectáculo, porque se tratava de réus confessos e com abundantes provas contra e alguns poucos acusados como encobridores que questionavam tal qualificação.Todavia, por se tratar do Zeca Russo, o julgamento teve uma razoável cobertura mediática e grande assistência de público do qual se destacava uma claque que saudou, na primeira audiência o Zeca Russo como se fosse um herói. A advogada dele lá lhe disse que aquilo era contraproducente e as manifestações acabaram. A advogada era a Dr.ª Ruth Garcez, mais tarde a primeira juíza portuguesa, e que tinha a difícil tarefa de atenuar o mais possível a culpa do seu réu, o que fez com muito brilhantismo, sendo que os outros advogados a ajudaram, na medida em que organizaram uma defesa dos outros réus que não sobrecarregava a culpa do Zeca Russo. Mais tarde, quando a pena saiu mais pesada que o esperado, todos os advogados do processo apoiaram a Drª Ruth Garcez no recurso que interpôs, fornecendo-lhe apontamentos do julgamento e colaborando com ela no estudo de certos problemas, recurso que obteve uma substancial redução da pena. O Zeca Russo sentiu também esse apoio, de modo que ficou amigo dos advogados. Quando eu ia à penitenciária em serviço, muitas vezes encontrava por lá o Zeca Russo que gozava de um regime de semi-liberdade. De uma das vezes, eu aguardava no átrio um cliente meu que tinham ido chamar à cela e o Zeca Russo foi o primeiro a aparecer de um grupo da cadeia que ia jogar futebol fora. Só estávamos três pessoas no átrio: eu,ele e um guarda. De repente o guarda teve que sair para a rua e deixou o portão aberto e eu, de brincadeira disse ao Zeca Russo: -Você qualquer dia perde o prestigio todo, se estes tipos o deixam com porta aberta para a rua e você não foge. Por eu estar aqui não deixe de fugir que eu nem corro atrás de si nem grito “ó da guarda”. Ele riu-se e respondeu-me que não queria fugir, mas que tinha que pedir delicadamente aos guardas que o não deixassem sozinho, com a porta da cadeia aberta para a rua, porque era um desprestígio para ele. Depois, mais a sério, disse-me que os guardas sabiam que ele não queria fugir; o que ele queria era reduzir a pena com bom comportamento, perdões e amnistias, porque tinha um emprego prometido e queria mudar de vida.Acreditei nele.

(…)

… em 25 de Abril e em 7 de Setembro de 1974 estavam ambos, Tembe (um outro criminoso, este negro, relevante para o relato do Dr. CMCR) e Zeca Russo, presos em Lourenço Marques.

(…)

Uma das acções dos promotores do 7 de Setembro foi abrir as portas das cadeias, essencialmente com o objectivo de libertar os Pides presos, que saíram todos. Dos presos de direito comum, uns saíram, outros recusaram-se e ficaram. Entre os que ficaram, contavam-se o Tembe e o Zeca Russo, facto que muito impressionou a Frelimo, cujo governo, depois da independência, fez deles quadros da nova polícia. Assim, os dois acabaram em inspectores da PIC (Policia de Investigação Criminal do jovem país).

Como eles se comportaram nas suas funções, sei o que constava, que era muito mau, mas não sei se tudo o que constava era verdade e se, sendo-o, se era da responsabilidade deles.

Havia prisões a esmo, sem respeito pelos direitos das pessoas e prolongadas por períodos ilegais e inadmissíveis, aqui e ali maus tratos e violência. Os presos e expulsos do país, queixavam-se serem simultaneamente espoliados dos seus bens. A policia apreendia divisas,ouro e jóias, mas não constava que tais bens alguma vez dessem entrada num cofre ou depósito público. Mas era muito difícil verificar estas situações, mas lá que algo de irregular havia soube-o eu pelo que aconteceu. Um dia cheguei ao Banco de Moçambique, onde eu era vice-governador, e encontrei sobre a secretária um oficio da Policia ordenando a transferência de todas as importâncias depositadas em contas congeladas de um médico qualquer para uma conta da Policia junto do Instituto de Crédito de Moçambique.

De facto, meses atrás, aquando da nacionalização da medicina e do encerramento dos consultórios médicos, tinha sido simultaneamente ordenado o congelamento das contas bancárias dos médicos; mas tratava-se de uma medida provisória destinada a prevenir acções de pânico, sendo suposto que a breve prazo as contas voltariam à disponibilidade dos médicos seus titulares, como, de facto depois voltaram.

Porém, transferir o dinheiro depositado numa conta congelada, sem lei ou ordem judicial que o suportasse, para uma conta da Policia, era um puro acto de esbulho ilegal, mesmo tendo em conta a chamada “legalidade revolucionária” tão preconizada pelos juristas esquerdistas.

Resolvi telefonar ao meu amigo Dr. Eneias Comiche, então presidente do Instituto de Crédito, onde estava sediada a conta da Policia e fiquei a saber coisas para mim espantosas: que a policia dava, com frequência, ordens daquele tipo e que os bancos cumpriam (quanto ao Banco de Moçambique aquela foi a primeira e única vez em que tal ordem lhe foi enviada). Quanto à conta da Policia, ela de facto existia, ela era movimentada por uma única pessoa – o inspector Monteiro dos Santos (o Zeca Russo ) e à medida que abastecida era imediatamente posta a zero,com levantamentos pouco claros.

Imediatamente oficiei à Policia, informando-a de que, sendo ilegal o seu pedido, a transferência não era autorizada, e enviei uma circular aos bancos dando conta da irregularidade de tais procedimentos. Fiz, ainda, com o total apoio do governador, uma informação para o governo, dando conta da atitude do Banco de Moçambique e alertando-o que a disponibilizaçâo, por forças armadas, de verbas orçamentalmente incontroláveis, podia ter os maiores inconvenientes, tais como, por exemplo, a preparação de golpes de estado.

Fiquei à espera que um pedaço de “céu velho” me caísse em cima da cabeça. Mas nada aconteceu e a policia entrou na ordem quanto ao esbulho de depósitos.

Uma noite, estava eu só, no governo do banco, pois o governador tinha-se ausentado para uma reunião do comité central da Frelimo, apareceu-me um funcionário da casa forte, dizendo que tinha lá em baixo o inspector Monteiro dos Santos, da PIC (Zeca Russo), que pretendia inspeccionar a casa forte, para verificar as condições de segurança. O funcionário (um cooperante português) mostrava-se nervoso, esclarecia-me que tinha respondido que só podia facultar o acesso com autorização do governo do banco e pedia-me que, se eu a desse, fizesse o favor de o fazer por escrito.

A situação era delicada. O Zeca Russo era inspector da policia, invocava uma razão de segurança válida, do ponto de vista policial, mas eu tinha a certeza que as intenções dele eram outras, provavelmente verificar as possibilidades de assaltar a casa forte.

O Banco de Moçambique tinha iniciado a sua actividade de banco central com cerca de 150.000 contos de disponibilidades externas, o que correspondia a um chefe de família ter 100 euros para governar a casa durante um mês. Por razões que descreverei noutro capítulo, tinhamos conseguido melhorar a situação e, na altura destes acontecimentos, já dispúnhamos de cerca de vinte toneladas de ouro, em reservas, e de cerca de um milhão de contos em divisas fortes (US dólares,marcos e francos suíços). Claro que o ouro se encontrava em bancos estrangeiros e as divisas aplicadas externamente, mas na casa forte havia cerca de 200.000 contos em divisas fortes, uma grande quantidade de randes sul-africanos e uma tonelada de ouro. Enfim, mais do que suficiente para despertar a cobiça dos zecas russos deste mundo.

Pensei um bocado e tomei uma decisão que transmiti ao atrapalhado funcionário -diga ao Sr. Inspector que eu o não autorizo a ir inspeccionar a casa forte que está segura e à guarda do governo do banco. Se ele quiser traga-o ao meu gabinete que eu explico-lhe melhor a situação.

O homem sumiu-se e nessa noite nada mais se passou. No dia seguinte mandei chamar o funcionário e ele explicou-me que tinha transmitido as minhas palavras tal e qual ao Sr. Inspector e que ele se tinha ido embora sem nada dizer.

Resolvi contar o sucedido ao governador do banco e, pela primeira e única vez, ele não estava de acordo com a minha decisão e disse-mo: o inspector tinha a confiança do governo, estava no exercício das suas funções e, portanto, eu devia ter-lhe facultado o acesso. Respondi-lhe que a independência do banco central exigia que qualquer interferência da polícia nos seus assuntos internos tivesse a concordância do governo do banco e que não era muito natural que sem qualquer razão justificativa aparecesse um funcionário da policia a querer inspeccionar a casa forte; que, se admitíssemos tais práticas, a independência do banco desaparecia. Mais, que eu estava convencido, pelo que sabia da história do indivíduo, que a única explicação para o sucedido era o inspector estar a preparar um golpe. Mas que se ele, Alberto Cassimo, achava diferentemente desse ele a autorização, que eu não me ofendia nada com o assunto; só que não me metesse no processo. Aqui convém abrir um parêntesis para dizer que sempre fui muito amigo do Alberto Cassimo, pessoa de altas qualidades morais e cívicas, de uma inteligência brilhante e de uma seriedade a toda a prova. Esta foi a única vez em que num assunto importante não estive de acordo com ele.

Não tinha passado um mês sobre os factos anteriormente relatados, estava eu a ouvir o noticiário em português da SABC (South African Broadcasting Corporation), como costumava todos os dias de manhã, pelas 7 horas, quando sou surpreendido pela notícia dada com grande destaque, do assassinato, a tiro, num apartamento em Joannesburg, por um português, do inspector Monteiro dos Santos, vulgo Zeca Russo.

Segundo me disseram mais tarde, o assassino foi um angolano, sócio do Zeca Russo nos seus negócios moçambicanos e em consequência de um desentendimento quanto a contas. O caso foi tratado sem grandes parangonas e quase silenciado em Moçambique. O assassino foi preso e julgado e condenado, mas a uma pena relativamente pequena, para os hábitos da justiça sul-africana. Segundo me constou, mas não poude confirmar o facto, pouco depois de condenado, já o assassino andava em perfeita liberdade na África do Sul. A ser verdade, é evidente que o assassino não agiu só por conta própria. A verdade é que esta história macabra não teve grandes repercussões na história da África austral.

Com a notícia fresquinha, parti para o banco e fui dá-la ao governador Alberto Cassimo, que de nada sabia. Quís saber como tinha eu tido conhecimento e, quando lhe disse que era notícia da SABC, dessa manhã, achou que devia ser falsa e fruto de manobras sul-africanas para destabilizar Moçambique. Eu respondi-lhe que me não parecia que pudesse ser uma falsa noticia, já que a SABC nunca daria como verdadeiro um assassinato, ocorrido em Joannesburg e que afinal não tinha acontecido.

Umas horas depois o Cassimo telefonou-me, pedindo-me para passar pelo seu gabinete. Quando lá cheguei, ele estava transtornado e em pânico. A cor da sua pele era cinzenta e o suor caia-lhe em bica, apesar do ar condicionado e da temperatura amena. Disse-me que afinal se confirmava a morte do Zeca Russo e confessou-me que depois de eu ter recusado a autorização para ir à casa forte, ele tinha telefonado ao Sr. Inspector, convidando-o a ir lá; e o Sr inspector foi. Agora estava com medo que ele tivesse dado algum golpe. Sosseguei-o, disse-lhe que se alguma coisa tivesse acontecido, já tínhamos tido conhecimento, até porque o sistema de segurança era sofisticado, não era fácil assaltá-la, muito menos sem deixar rasto. Mas ainda mandámos fazer uma inspecção que deu o património como intacto. Falhara o último golpe do Zeca Russo.

Paz à sua alma…

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