THE DELAGOA BAY REVIEW

29/10/2018

GUNGUNHANA REVISITADO

Filed under: Gungunhana Revisitado, Mia Couto, Ungulani Ba Ka Khosa — ABM @ 2:04 pm

 

Os 4 de Chaimite, no exílio forçado na Ilha Terceira. Imagem retocada e pintada por mim.

Gonçalo Frota escreveu o seguinte na Ípsílon, publicação cultural do jornal lisboeta Público de 25 de Outubro de 2018, que reproduzo com vénia:

TEATRO
A vida de Gungunhana é contada por vários sotaques no Teattro São Luiz [em Lisboa

A trilogia que Mia Couto dedicou ao imperador de Gaza chega agora a Lisboa, através da companhia O Bando. Netos de Gungunhana é um espectáculo para humanizar o outro e questionar a História.

Ao decidir dedicar uma trilogia à figura do imperador Gungunhana, o escritor moçambicano Mia Couto quis combater a imagem de um herói ou de uma figura trágica, quis convocar vozes que se opusessem, quis escrever para humanizar o outro – contrariando a estratégia que precede a guerra, a de desumanizar o adversário para desferir qualquer ataque sem remorsos. Não é uma ideia que tenha iluminado de forma consciente a adaptação da trilogia As Areias do Imperador ao teatro dirigida por João Brites e levada à cena pel’O Bando no Teatro São Luiz, em Lisboa, até 11 de Novembro. Mas é algo que encenador reconhece nas entrelinhas de um espectáculo que aborda (também) a colonização portuguesa: “Primeiro tem de se classificar o outro como coisa inferior para poder ocupá-lo”, diz. “E até contaminar as tropas com essas ideias para que elas possam cumprir os seus actos pensando que aquilo é outra coisa.”

A desumanização não reclama palco em Netos de Gungunhana. Mas o movimento contrário, o da humanização do outro que Mia Couto reclama para a sua obra, mostra-se através dos vários pontos de vista que fazem avançar a história ou até dos sotaques que vão denunciando as diferentes origens dos protagonistas. E são várias as origens porque João Brites quis construir o espectáculo com um elenco misto – portugueses, moçambicanos e brasileiros que se encarregarão de transportar esta mesma reflexão em diferentes encenações para os teatros dos seus países. Um elenco em que o sotaque, tal como a cor da pele, carrega de imediato esse estatuto de iguais ou diferentes.

Netos de Gungunhana começa, no entanto, em inglês. Uma conferencista – Alessandra Brito, activista política e fundadora do Instituto da Mulher Negra, uma não-actriz – discorre sobre o imperador de Gaza (região no Sul de Moçambique) e apresenta, em traços gerais, a biografia de Gungunhana, partilhada diante de alguns dos seus netos. É uma solução encontrada por Brites para oferecer ao espectador o contexto necessário ao acompanhamento daquilo que realmente lhe interessa – a imersão nas sete histórias dos sete netos, descendentes das sete mulheres (de um total de 300) que puderam acompanhar Gunganhana no momento da sua captura por soldados portugueses em 1895. “A história de Gungunhana é uma espécie de tapete sobre o qual queremos conversar para percebermos outras coisas”, diz o encenador. E refere-se, por exemplo, ao facto de o imperador nunca se ter preparado para a derrota.

Só que João Brites busca também uma zona de transição: entre o inglês e o português (que começa padronizado e se vai desmultiplicando numa admirável diversidade), entre o quotidiano e a representação; entre o academismo que sustenta uma versão dos factos e as histórias que se lhe seguem, inscritas em sangue quente, sem preocupação de sustentar qualquer tese; entre as vozes autorizadas e a multitude de narrativas que se reportam a verdades pessoais.

Mas esta zona de transição, exemplo de como “os mitos nos ajudam a compreender melhor o quotidiano”, é-o também na escolha da conferencista. Alessandra Brito trouxe para o debate criativo “uma perspectiva daquilo que são as lutas e os debates presentes no movimento negro em Portugal neste momento”, explica ao PÚBLICO. Em palco, na pele de académica, começa por falar da “importância de começarmos a pensar a História fora de uma visão eurocêntrica”, sem esquecer que “a cor é herança de uma História que determina a forma como estamos na sociedade”. Daí que, através da experiência de uma família, Netos de Gungunhana forneça alimento suficiente para discutir as narrativas oficiais e o encontro de Portugal com os países colonizados.

Netos de Gungunhana nasce de um encontro fortuito. João Brites cruzou-se com Mia Couto no espaço d’O Bando, em Palmela, e o romancista moçambicano falou-lhe dessa gigantesca empresa de convocar uma série de olhares diferentes para contar a história de Gungunhana. Brites logo encarou a possibilidade de cruzar estes olhares para erguer um espectáculo que aborda uma História comum mas valorizando as diferentes perspectivas, como forma de retirar poder à colonização institucional que continua a persistir entre nós através dos vários exercícios do poder.

À partida, a imensidão das 1200 páginas escritas por Mia Couto apresentava-se como uma ambição demasiado desmedida para caber num espectáculo de duas horas. Daí que tenha cabido a Miguel Jesus, responsável pela dramaturgia, peneirar o texto de Mia Couto e dele extrair uma forma de contar a história sem reproduzir os três romances em palco. E foi Miguel Jesus a propor que a peça siga a narrativa da família de Imani, uma das mulheres de Gungunhana. Porque a escala da família tanto se faz de pequenas contribuições individuais quanto permite extrapolar para a dimensão de uma comunidade ou de uma nação.

O certo é que ao trabalhar com actores portugueses, brasileiros e moçambicanos, e ao apresentar Netos de Gungunhana em cada um dos respectivos países, é também à procura desses outros olhares que João Brites quer partir, tentando provocar os diferentes debates locais que o texto levanta e recusando uma visão deste espectáculo que se sobreponha às outras. Mas dificilmente a peça não caminhará para aquilo que aqui se intui, de um apelo a um futuro que saiba libertar-se e distanciar-se do passado. Aos netos, bisnetos e trinetos de Gungunha cabe contar uma outra História.

[fim]

Sobre o recente trabalho do Mia Couto sobre o ditador Nguni, Mário Santos escreveu o seguinte, publicado no mesmo Público a 20 de Outubro de 2017:

(Não é possível) travar o vento com uma peneira

Os mitos podem forjar nações, mas é a sua contestação que as fortalece. Gungunhana já foi um mito em Moçambique e em Portugal. No último romance de Mia Couto é apenas um homem.

A carta fictícia está datada de 1 de Outubro de 1895 e o remetente é um fictício Germano de Melo, sargento português punido, por haver participado na revolta portuense e republicana de 31 de Janeiro de 1891, com o envio para um remoto posto militar nas ardentes planícies da África Oriental portuguesa, onde se viviam tempos não menos tumultuosos. O destinatário é o histórico tenente Ayres de Ornelas, que alcançou glória militar em Marracuene e Coolela, e em outras batalhas históricas das “campanhas de pacificação” de Gaza. “Que filhos teríamos” indaga retoricamente o sargento, a propósito da sua paixão por uma jovem negra chamada Imani – que é a narradora principal dos dois volumes até agora publicados da “trilogia moçambicana” de Mia Couto (Beira, 1955) intitulada As Areias do Imperador. E logo Germano de Melo transcreve a resposta de Bibliana, profetisa adoecida da “particular cegueira” de ver pelos olhos dos deuses: “Que importa a cor da pele dos que nascerem? Gungunhane terá netos brancos portugueses e os portugueses terão netos africanos! Contrariar essa inclinação é travar o vento com uma peneira. O Tempo […] é um grande misturador de sementes.”

Gungunhane (ou Gungunhana) – que é, evidentemente, o imperador do título genérico da trilogia romanesca do escritor moçambicano – foi o último rei do Estado vátua de Gaza e será aprisionado por Mouzinho de Albuquerque (um português raro, certamente, por contrário à política do “quanto mais devagar melhor”) no seu refúgio em Chaimite, no dia 28 de Dezembro de 1895. O feito demorou uma semana até ser noticiado em Lisboa (bons tempos…), mas deu brado em Portugal, que havia sido humilhado pelo Ultimato inglês, e ecoou na restante Europa, tanto por causa da lenda heróica e letal que aureolava o “Leão de Gaza”, quanto pelas suas consequências geopolíticas: sem essa derrota dos vátuas, é provável que Moçambique não existisse hoje com a configuração que lhe conhecemos.

Poder-se-á dizer, com efeito e com verdade, que as campanhas portuguesas “de conquista e pacificação” em África foram feitas para inglês ver. Recorde-se que, em 1885, em Berlim, as potências coloniais europeias haviam feito depender a partilha de África entre si de uma efectiva capacidade de exploração e controlo dos territórios em disputa. À intenção portuguesa de unir Angola e Moçambique (o Mapa Cor-de-Rosa) opusera-se, em 1890, a Inglaterra (o Ultimato), e as duas potências disputavam também o território controlado por Gungunhana. Por sua vez, o imperador de Gaza não descartaria um aliado europeu que o ajudasse a derrotar os vários inimigos internos. É neste contexto, de sucessivas e contraditórias alianças e traições, que se pode compreender a relevância do aprisionamento do chefe vátua que, com sete das suas inúmeras mulheres e outros elementos do real séquito, seria exilado para os Açores (Terceira), onde veio a morrer, em 1906. O seu captor, o trágico oficial de cavalaria Mouzinho de Albuquerque, suicidara-se cerca de cinco anos antes.

Em 2005, o Museu Militar de Lisboa assinalou os 110 anos decorridos desde o histórico episódio de Chaimite. Entre os presentes, lê-se na imprensa, estavam descendentes portuguesas de Gungunhana. Assim se confirmou a profecia de Bibliana. Mas o processo de mitificação institucional do imperador de Gaza culminara havia já vinte anos, quando o então Presidente moçambicano Samora Machel obteve a solene trasladação para Maputo dos supostos restos mortais de Gungunhana. Supostos porque, como em tantos outros casos semelhantes, a autenticidade do traslado não foi cientificamente comprovada, não sendo improvável que na urna enviada para Moçambique seguissem apenas as “areias” de que fala o título da vasta trilogia de Mia Couto (os primeiros dois volumes somam já mais de 850 páginas).

A produção e instrumentalização política de mitos fundadores comunitários é certamente uma doença infantil do processo de afirmação identitária de nações e Estados. A sua contestação, ou desconstrução, não será menos útil e menos necessária, sendo até mesmo, provavelmente, condição e prova da sua sobrevivência. Se assim for, Moçambique vai no bom caminho. E se a contestação de Gungunhana enquanto ferramenta ideológica de unificação política do país já não é nova, a desconstrução do mito através da ficção tem também precedentes, podendo referir-se aqui o romance Ualalapi (1987), de Ungulani Ba Ka Khosa. Lembram alguns – sem novidade que se note, aliás – que o fratricida Gungunhana alcançou o poder através da violência e do crime, e que durante uma década governou com mão de ferro o seu império, colonizando, explorando e oprimindo outros grupos étnicos autóctones do Sul de Moçambique. Será o caso, em A Espada e a Azagaia, dos vatxopi (ou chopes), povo de onde provém a bela e muito jovem Imani (15 anos à data dos acontecimentos narrados). Bastará dizer que no “Resumo do primeiro volume”, que inaugura A Espada e a Azagaia, se lê: “Os Vatxopi são um povo ocupado e massacrado pelo domínio dos Vanguni [ou vátuas] e que estabeleceram, por esta razão, uma aliança de cooperação militar com as autoridades portuguesas.”

O que é mais interessante, porém, neste romance de Mia Couto, é que a humanidade de Gungunhana cresce na inversa proporção do emagrecimento do mito. No final do segundo volume da trilogia (no primeiro volume, publicado em 2015 e intitulado Mulheres de Cinza, o imperador de Gaza é uma presença ausente que se manifesta só enquanto remoto detonador de uma sequência de tragédias na família da protagonista narradora), o temido e lendário “Leão” é apenas um homem fragilizado e amedrontado. E perplexo com a infinita e universal competência para a traição: “De que vale ter milhões de súbditos, se eles não são fiéis? De que vale possuir centenas de mulheres, se nenhuma delas é realmente nossa? De que vale ser coroado imperador se os que hoje te saúdam venerarão com maior devoção aqueles que te vão derrubar?” (p. 364) Igualmente o lamenta a rainha-mãe: “Tenho pena do meu filho […]. Todos lhe obedecem, ninguém lhe é leal.” (p. 367) Talvez se possa convocar aqui um “dito” atribuído a outra personagem, o padre Rudolfo Fernandes: “Eis a pobreza do nosso destino: acabamos por ter saudade do tirano anterior.” (p. 165)

De igual modo, a representação dos europeus, em geral, e dos portugueses, em particular, é múltipla e contrastada. Já no primeiro volume da trilogia, o sargento republicano, deitando contas à “pretensão imperialista dos ingleses em provar que Portugal não tem condição para governar as suas colónias africanas”, concluía: “Não sei se odeio mais a ambição inglesa ou a vergonhosa submissão das nossas autoridades.” No presente e mais fluído volume, é o tenente Ornelas – que vem juntar a sua qualidade de narrador aos dois anteriores (Imani e Germano de Melo) – quem comenta: “Há no nosso seio correntes mais hostis entre si que as que separam anjos e demónios. Essas desavenças não são exclusivas dos lusitanos. Porque, por estas bandas, andam os europeus em guerra uns com os outros. Por razões políticas, por razões religiosas. Católicos e protestantes brigam como se não tivessem um único Deus. Há mais rivalidade entre ingleses e portugueses do que entre brancos e pretos. Se não há unidade entre os brancos também não existe uma entidade a que se possa chamar ‘os pretos’. […] Como podemos empreender uma guerra se desconhecemos a fronteira que nos separa dos inimigos?” (pp. 317-18)

E se, no primeiro volume, só as cartas de Germano de Melo, inicialmente destinadas ao conselheiro José d’Almeida, vinham intervalar a narração na primeira pessoa feita por Imani, já que o destinatário da correspondência do sargento se manteve mudo, aqui, surge a voz nova do tenente Ayres de Ornelas, criando uma verdadeira troca epistolar. Será, certamente, por esse motivo, ou seja, por razões de conformidade e verosimilhança – a acção decorre no final do século XIX e dois dos três narradores são portugueses –, que esta trilogia romanesca é (quanto aos seus dois primeiros volumes) menos permeada pela inventividade linguística que tem caracterizado o autor, dela estando praticamente ausentes os tão celebrados “miacoutismos”.

Não obstante, Imani surge como a personagem-narradora nuclear, como verdadeira protagonista do romance, e o género, aqui, não será um acaso, sendo a tematização da “condição feminina” recorrente em Mia Couto. Conta o sargento: “Ontem, aflorando este assunto [o seu caso amoroso] com Imani, ela disse algo que me parece irrefutável: que os nossos dois mundos não eram, afinal, tão diversos. E ela está certa. Em África ou na minha pequena aldeia de Portugal, as mulheres partilham as mesmas magras expectativas do que pode ser um casamento.” As vozes de Imani e de Germano de Melo são ambas de personagens de fronteira, em trânsito entre culturas, com identidades críticas. Acentuam a recusa geral de univocidade na construção e na leitura das personagens (as fictícias e as reais) e dos seus actos (aqueles documentados e os outros, só imaginados). À narrativa única da propaganda e do mito, opõe o autor a pluralidade dialógica da ficção e a sua apetência para reconstruir o real. Porque, como já dizia Imani em Mulheres de Cinza, “o pior do passado é o que está ainda por vir”. Tal programa, que Mia Couto não tem deixado de explanar e de explorar, é desde logo legível, aliás, no título do segundo livro publicado pelo autor, em 1990: Cada Homem É Uma Raça.

[fim]

Ver ainda esta curta recensão da peça de teatro sobre Gungunhana no Diário de Notícias de Lisboa, escrita por Maria João Caetano e publicada a 25 de Outubro de 2018.

 

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