Creio que a localidade de Wiriyamu é hoje um monumento nacional, ainda que aparentemente um pouco maltratado. Aqui designado um "bem imóvel".
por ABM (24 de Outubro de 2010)
Antes do prato forte, um aparte.
O que vale de ter o privilégio de escrever num espaço na internet com algum enfoque no eixo africano-europeu (não esquecendo os amigos que falam português por todo o mundo) com especialização em Moçambique e Portugal, é que podemos falar uns com os outros. De Maputo, um amigo meu de há muitos anos pôs-me em contacto com um seu colega da tropa (daqueles que o Samora, depois de um exercício impossível, “reabilitou” numa cerimónia típica dos tempos que se viviam então- ver abaixo) e que, a propósito dos eventos em redor de Wiriyamu, escreveu o seguinte:
Fui militar na época em Tete e se a memória não me falha o massacre foi organizado e efectuado pela 6ª Companhia dos Comandos, comandados por um alferes que teve de fugir para Portugal após 1975, por sinal moçambicano e primo do falecido Nicodemos meu amigo pessoal, que antes de se dirigirem ao local estiveram numa festa na casa do falecido Sr. Rocha (tetense de gema) e à meia noite dirigiram-se ao local. A primeira pessoa a chegar à aldeia logo pela manhã, após o massacre foi a falecida irmã Lúcia, que trabalhou anos a fio no hospital da cidade de Tete e que visitava as aldeias próximas para tratar da população. Após ver aquela bárbara cena (cerca de 400 corpos) ela regressou à cidade e foi confidenciar ao padre Ferrão, que lhe orientou para fotografar tudo e sair do local imediatamente porque a engenharia militar iria fazer uma vala comum para enterrar os corpos. O rolo das fotos foi passado no aeroporto pela própria freira com destino a Inglaterra, aonde foi publicado o único livro sobe o assunto assinado pelo padre Hastings [com base no depoimento do padre Ferrão] e foi assim que o relato e as fotos alertaram o mundo sobre o massacre de Wiriyamu. Um ano após o massacre, pessoalmente participei numa escolta militar a jornalistas da BBC que foram ao local acompanhados por um major da psico-social [um ramo das forças armadas portuguesas] e confirmaram a existência do massacre através de duas panelas de barro que pela ironia do destino eram os únicos objectos que ainda lá permaneciam.
O autor das linhas de cima tem nome e assinou a mensagem que trocou comigo e ainda referiu que a remeteu a José Rodrigues dos Santos há algum tempo, que agradeceu e não disse mais nada.
Fica para o registo histórico, testemunhal, pelo menos o desta Casa.
Aqui em baixo, o vídeo da reabilitação. O lugar é o salão de festas do antigo Liceu Salazar (hoje o Liceu Josina Machel). Estava-se em 1982. Pelos vistos levou sete anos a “reabilitar” os que não eram da Frelimo antes da Independência.
http://www.youtube.com/v/AoUMBnVSfL8?fs=1&hl=pt_PT
Agora o prato forte.
Para ajudar a entender melhor a obra agora publicada, José Rodrigues dos Santos concedeu duas entrevistas que foram publicadas ontem (se ele sabe alguma coisa é vender) e que se reproduzem abaixo, com profunda vénia aos órgãos que as divulgaram.
Entrevista a Vanda Marques, do diário lisboeta “i”
(um dos actualmente favorecidos pelos nosso Senador)
São 16h05 quando o Mercedes de José Rodrigues dos Santos pára em frente ao seu segundo escritório. O Penha Longa Hotel, em Sintra, não é um escritório oficial, mas é lá que marca as entrevistas. Por telefone avisou-nos que ia demorar “um minuto e 10 segundos”. Nem mais, nem menos. A precisão e disciplina estão até nos horários. Desde 2004 já publicou oito romances e, para os próximos três anos, já tem outros três na calha. O lançamento de 2011 até tem data definida. Mas foquemo-nos no que acaba de chegar às prateleiras das livrarias, “O Anjo Branco”. O romance é inspirado na história do seu pai, o Dr. Paz. Integrou o Serviço Médico Aéreo em Moçambique, foi o primeiro civil a entrar na aldeia Wiriyamu, depois do massacre feito pelos soldados portugueses e denunciou as atrocidades. O jornalista da RTP, de 46 anos que nasceu em Moçambique, continua a dizer que os romances são um hobby, como ir ao cinema. Um passatempo com mais de um milhão de exemplares vendidos, e livros traduzidos em 17 línguas.
Esta é a terceira entrevista que dá hoje, como é estar do outro lado?
Aaah… Já estou habituado. No início, era um bocado estranho. Tinha uma postura de avaliar o entrevistador. Pensava: ”Essa pergunta é disparatada”. Agora já não. Cada um faz a pergunta que lhe apetece. É interessante estar deste lado, ajuda a ser melhor entrevistador.
O seu novo romance “O Anjo Branco” é inspirado na vida do seu pai, José da Paz. É uma homenagem?
O tema são os portugueses em África, os anos 60, mas também a guerra colonial. Como tinha uma boa história na família fui por aí. O meu pai fundou o Serviço Médico Aéreo em Tete e aí prestava assistência sanitária num distrito do tamanho de Portugal continental. Erradicou até algumas doenças endémicas.
Quais?
Olhe, ele uma vez contou-me mas já me esqueci do nome. A vida dele é o fio condutor que nos leva do início da guerra em Angola até Moçambique.
O romance estava pensado há muito tempo?
Esta história nasceu depois de lançar o meu primeiro romance, “A Ilha das Trevas”. Estava a almoçar na casa da minha prima e ela disse: “Opá, Zé estás agora a fazer romances, porque é que não contas a história do teu pai que é espectacular?” Ao longo destes anos tenho estado a trabalhar no livro, mas só peguei nele a sério no ano passado. No lançamento de “Fúria Divina” apareceu uma pessoa a dizer que conhecia o meu pai e que gostava de falar comigo. Tenho 200 pessoas que querem falar comigo a toda a hora. Tentei esquivar-me, mas ela arregimentou a minha mãe. Encontrei-me com ela 15 minutos na RTP.
O que saiu dessa conversa?
Havia uma coisa muito importante que me perturbava. É que o meu pai foi o primeiro civil a entrar na aldeia de Wiriyamu depois do massacre [o massacre de Wiriyamu foi feito por comandos portugueses em Dezembro de 1972. A dimensão da matança foi denunciada no jornal “The Times” e na imprensa internacional, mas abafada em Portugal], foi o maior embaraço que Portugal sofreu em toda a guerra colonial. Era uma história extraordinária, mas havia um problema, o meu pai já tinha morrido e a freira que tinha ido com ele, a irmã Lúcia, também. Não tinha fontes para escrever a história. À conversa com esta senhora, ela diz-me que também tinha ido a Wiriyamu com o meu pai. Era enfermeira e contou-me o que se tinha passado naquele dia. A minha mãe não sabia muita coisa, o meu pai não era pessoa de contar as coisas de trabalho em casa.
Porquê?
Era do feitio dele.
É fácil escrever sobre o seu pai?
Não é difícil. O ideal era entrevistá-lo, mas como não está cá… É preciso perceber que o Dr. Branco não é o meu pai, é um personagem inspirado. Misturo pormenores ficcionais com reais. Por exemplo, há uma situação em que ele vai buscar um guerrilheiro ao mato, o Ernesto, que existiu mesmo. Era o nosso empregado, tinha sido perito em minas e armadilhas da FRELIMO. Foi quem me levou à escola pela primeira vez. Mas voltando à história. A certa altura no caminho de regresso, o chefe dos guerrilheiros pediu à personagem para não tratar as tropas negras porque eram autênticos animais. A personagem Dr. Branco responde: “Tragam-me o assassino da minha mãe e eu tratarei dele”. Numa reportagem para o jornal sul-africano “Rand Daily Mail”, o meu pai disse mesmo esta frase.
Apoiou-se em muitas memórias?
Não muitas. Sai de lá miúdo. Lembro-me de Tete, sabia que havia uma guerra e ouvia o inspector da PIDE dizer que os turras ia bombardear tudo. Acompanhei o meu pai em algumas viagens, mas para mim o mundo era assim. Hoje é que percebo que não é uma coisa normal. Ele montou um Serviço Médico Aéreo, um hospital ambulante. Iam buscar doentes, davam vacinas, medicamentos. Lembro-me das multidões gigantescas. Em África só existia um outro Serviço Médico Aéreo, montado por alemães, no Quénia.
Investigou muito para o livro?
Sim. Falei com pessoas da minha família, que viveram em África, com militares, li documentação da época e fui a Wiriyamu e a Tete.
Nunca tinha regressado a Moçambique?
Não. É engraçado porque está tudo muito parecido com o que era. A minha casa que era a do director do hospital, está na mesma, mas pintada de azul. A actual directora acompanhou-me na visita. Recordava-me de todos os cantinhos.
No livro fala do “mais aterrador segredo de Portugal no Ultramar”, pode desvendar alguma coisa para quem ainda não leu o romance?
Não. Está no romance. Só me apercebei do papel do meu pai nessa história mais tarde.
Nunca deu por nada?
Não. A minha mãe não me ia dizer: “Olha o teu pai foi levado para Nampula e está detido pelas tropas.”
O que recorda da guerra?
Os militares, os helicópteros, os feridos, a economia de guerra, mas não andava no meio dos tiros. Recordo-me de que quando íamos de carro para Cahora Bassa, fazia-se uma coluna com um Berlier à frente e outro atrás. Os carros civis iam no meio e até um determinado troço, iam-se ultrapassando porque ninguém queria ficar nas zonas mais frágeis. Nunca sofri nenhuma emboscada. Lembro-me de ir sozinho com o meu pai de Tete à Beira e ele punha uma bandeira da Cruz Vermelha. O máximo que víamos eram macacos e impalas.
Porquê o título “O Anjo Branco”?
Era como o meu pai era conhecido em Moçambique. Vestia-se sempre de branco, vinha num avião e transportava os medicamentos, o correio.
Era uma vida singular?
Sim, mas é preciso dizer uma coisa. A vida de um português em África era esta. Estava tudo por fazer. A minha mãe chega a João Belo e aos 20 e poucos anos tornou-se directora da farmácia. Não havia mais ninguém.
A sua mãe já leu o romance?
Não sei. Dei-lhe um livro e ao fim de uns cinco dias, perguntei-lhe. A resposta foi: “Olhe, li as primeiras páginas num café, mas encontrei um amigo que mo pediu para ler. Por isso ainda não vi.”
Acha que é um livro importante para as suas filhas?
Talvez. Mas não foi feito com esse intuito.
Elas lêem os seus livros?
A mais velha sim, a mais nova não. Também ela tem 12 anos e diz: “Ihhh, são muito grandes”.
A mais velha faz críticas aos seus livros?
Não, também não vou perguntar.
Quanto tempo demorou a escrever este livro?
A ideia surgiu em 2004, por isso, podemos dizer que foram 6 anos. Entretanto publiquei outros seis livros.
Sabe quantas páginas vai ter o romance quando o começa a escrever?
Nunca sei. Este livro tinha mais 300 páginas que tive de cortar.
Como é a sua rotina de escrita?
Acordo bastante cedo, às 7h30. Depois fico a escrever ao computador até à hora do almoço. Em seguida, vou para a RTP, se não estiver de folga. Escrevo pelo menos três horas por dia, o que dá entre cinco a dez páginas. A escrita é como estudar, nunca é contínuo, faço pausas. A única regra é não escrever depois das oito da noite.
Porquê?
Se escrevo, fico com esse embalo e tenho dificuldade em adormecer. Preciso de tempo para abrandar. Só não respeitei isso quando fiz o meu primeiro livro. Escrevia até às oito da manhã. Tive de impor esta disciplina.
Quando escreve transporta os personagens consigo?
Não deixo que tomem conta de mim, porque até faz mal à saúde. Gosto de ser uma pessoa equilibrada e racional, não ia deixar que o livro tomasse conta da minha vida dessa maneira.
É um trabalho intenso?
Não. É um trabalho divertido. Aliás, chamo-lhe trabalho só por hábito. Há pessoas que ao fim-de-semana vão ao shopping, outras vêem futebol, cinema, eu escrevo. É um hobby, porque é uma coisa que gosto de fazer. Os budistas dizem que há uma maneira de estar a vida inteira sem trabalhar, é fazer o que se gosta. De certo modo, o jornalismo é um hobby porque gosto de o fazer.
Imagina deixar o jornalismo para ser só escritor?
Não. A vida de um escritor é um bocado monótona, de algum isolamento. É apenas uma fatia da minha vida, não é o principal.
Em miúdo sonhava ser escritor?
Nunca. O presidente da Associação Portuguesa de Escritores foi a primeira pessoa a dizer-me que achava que eu tinha jeito para ser romancista. Ri-me na cara dele. Ser romancista, era como ser um astronauta. Nunca pensei nisso. Não estava para aí virado. Era como ser futebolista, era para os outros, não para mim.
Em miúdo tinha jeito para o quê?
Para artes visuais e desenho. Nos testes psicotécnicos, o meu talento era arquitectura. Na altura tinha tido maus professores de matemática, logo tinha muito catch-up para fazer, por isso fui ver quais eram as outras alternativas. Além da arquitectura, os testes indicavam que tinha jeito para piloto da Força Aérea ou jornalista. Foi assim. Segui humanísticas e fiquei a pensar nisso.
Então, os romances surgem por acaso?
A minha tese de doutoramento foi publicada e o presidente da Associação Portuguesa de Escritores, depois de a ler, achou que tinha talento e pediu-me para escrever um pequeno conto para o jornal literário dele. Em 15 dias escrevi um conto com 200 páginas. Era o meu primeiro romance, “A Ilha das Trevas”.
Já vendeu mais de um milhão de livros. Acha que aproximou os portugueses da literatura?
Acho que sim. Os portugueses tinham uma enorme vontade de ler autores nacionais, mas não estavam convencidos com o que tinham. É um bocado como o cinema português. Chegavam lá e era um filme chato, com cenas paradas. Com a literatura era a mesma coisa. Um leitor escreveu-me: “Sabe, lemos nos jornais que temos os melhores autores do mundo, depois vamos à praia e só se vê livros espanhóis, americanos. Não conseguimos ler os nossos autores, são muito chatos.” Eu e outros autores portugueses, com Miguel Sousa Tavares à cabeça, que vendeu 320 mil exemplares de “Equador” [2003], fazemos prova de que existe um público para autores portugueses.
Porque não liam outros escritores?
Não se identificavam. Achavam demasiado rebuscado, difícil, uma forma de escrever que não cativava. Isso é o que eu recebo nos emails. Os meus romances têm uma escrita moderna, que não é uma escrita pretensiosa. Não tenho pretensões a nada, a não ser contar uma história fascinante. Ontem recebi um email de uma senhora a agradecer-me porque a filha recusava-se a ler e desde que descobriu os meus livros tornou-se numa leitora compulsiva. Ou um outro leitor, que me escreveu a dizer que não lia há 40 anos, mas desde que comprou um livro meu, regressou à leitura.
Já têm ideias para mais livros?
Sim. Já sei qual é o romance que vai sair no próximo ano e nos dois seguintes.
Três romances?
Não. Esses são os que sei quais são, mas tenho outras ideias. Já tenho data marcada para lançamento do próximo ano. Só ainda não escolhemos o local.
O que nos pode dizer dos próximos livros?
Nada. (risos)
Entrevista ao JN (não diz quem o entrevistou)
Os leitores terão curiosidade em saber como é capaz de produzir a este ritmo: em menos de dez anos, já vai no oitavo romance e o último, que é lançado hoje, é o maior de todos, com 678 páginas.
Os meus romances são diferentes de todos o que se fazem em Portugal. Integro-me numa corrente mais internacional. São muito pesquisados. Mas procuro dizer que são um ganha-tempo e não um passatempo, pois embora escritos depressa dão-me grande prazer. Depois, o leitor, através de uma história que entretém, aprende qualquer coisa que não sabia sobre a vida, a História, a Ciência… que no final da leitura, espero eu, o torna mais rico.
Qual o seu método de produção?
Para fazer isto é obrigatória uma grande pesquisa. Mas isso não me custa. Sou professor universitário, jornalista e já faço isso por sistema. Não é um bicho-de-sete-cabeças. O segredo da investigação é o método. Saber onde procurar. Como consigo fazer esse trabalho sem dificuldade, acabo por arranjar bom material para os romances.
Socorre-se de ajudantes de campo?
Nunca trabalho com investigadores. Faço tudo sozinho, as entrevistas, a pesquisa, a leitura da documentação. Por uma razão muito simples: quando estamos a fazer uma investigação, muitas vezes estamos à procura de alguma coisa. No acto de procurar uma coisa encontramos outra. Eu sou a única pessoa que pode avaliar se essa coisa é pertinente.
Acha que se nasce romancista?
Pode não ser logo à nascença. O José Saramago, por exemplo, só começou a publicar muito tarde.
A publicar.
Sim, mas a escrita só se manifestou mais tarde.
O seu apelo é uma obstinação vital ou trata-se apenas de contar uma história com os ingredientes certos e que venda?
Isso é o romance, não? Para mim, o bom romance é uma história bem contada. E dá-me prazer. Não em dois minutos, como faria numa reportagem de telejornal, mas contar a história em profundidade. Por outro lado, nos romances consigo efeitos de verdade que no discurso não ficcional não consigo. Essa parte também me atrai. Em ambos os casos, transporto o leitor comigo para o local onde as coisas acontecem. Procuro escrever de tal maneira que, de repente, o leitor já esteja no local onde a acção vai decorrer. Escrevi o meu primeiro romance [A Ilha das Trevas] quase por obrigação. Escrevi-o em 15 dias. Escrevia até às seis da manhã, depois dormia duas horas e voltava a escrever obstinadamente. Tomou conta da minha vida. Quando publiquei o romance não pensei em escrever outro. Nessa altura tirei uns dias de férias – já era director de informação da RTP – e, não tendo nada para fazer, comecei a escrever outro [A Filha do Capitão]. Aí percebi que estava viciado.
Há quem diga que escrever é uma droga dura.
Nunca tomei drogas, e tenho dificuldade em equiparar. Mas sim, fiquei viciado. E não voltei a deixar. Passei foi a fazê-lo com disciplina, e não deixei que o romance voltasse a tomar conta de mim. Agora, chego às oito da noite e paro de escrever, mesmo estando de folga.
A inspiração, quando aparece, deve apanhá-lo a trabalhar…
A inspiração é a ideia do romance. O resto, a pesquisa, a escrita, é apenas transpiração. Terá elementos de inspiração, mas já não é a mesma coisa.Os seus livros são sempre de uma grande ambição…
… não são historietas.
Começou a escrever ficção por alguma espécie de responsabilidade ética ou política que não se esgotava no jornalismo?
Sim, mas não digo a um nível consciente. Procuro que os meus romances tenham um valor acrescentado. Um desses valores diz respeito à ética. É aliás o tema filosófico deste meu último romance [O Anjo Branco]. Fazer o bem, o que está certo e errado, acompanha a personagem principal desde que nasce até aos dias da faculdade, à vida adulta. Vai sendo confrontada com situações. «Na Fúria Divina também havia esse «valor acrescentado» da ética.
Neste caso é mais individual, o indivíduo ter a capacidade de fazer o que está certo. Num texto jornalístico procuro uma certa neutralidade. Isso impede que se aprofundem determinadas questões. Posso ter a convicção, enquanto jornalista, de que um político, por exemplo, está a dizer um enorme disparate. Mas não me cabe a mim julgar, esse julgamento cabe aos espectadores. Não exponho a minha posição. Sou apenas um intermediário. No caso do romance posso trabalhar isso, posso demonstrar. E isso não se faz com uma frase curta. Mas mostrando situações.
Há o risco do moralismo.
Não digo às pessoas que determinada personagem é uma boa ou má pessoa. Mostro as situações, e os leitores que tirem as suas conclusões. O romance tem instrumentos que o texto não ficcional não tem. Os meus romances são quase reconstituições. Isso tem que ver com o defeito profissional do jornalista, que lida com a realidade.
Chico Buarque, por exemplo, diz que quando escreve deixa a música na gaveta. No seu caso, como é que faz a passagem de uma escrita para outra?
Acabo por dar continuidade ao meu trabalho, uma vez que mantenho uma forte relação com a realidade. É quase uma extensão do meu trabalho de jornalista. Ficciono sempre dentro de um quadro do facto, da pessoa real. Não mino a realidade, não subverto. Prolongo. Esta história, O Anjo Branco, fala de um serviço médico aéreo que existiu há quarenta anos. Só havia em África dois serviços médicos aéreos. Um no Quénia, feito por alemães, e outro em Moçambique, onde estava o meu pai. Quando ele sai de lá, o serviço acaba. Isso perdeu-se na memória das pessoas. O meu pequeno feito é tornar isso vivo outra vez. O serviço existiu nos moldes que eu descrevo.
Este livro é um tributo ao seu pai, a quem chamavam, em Moçambique, «o anjo branco». Comoveu-se por escrever em sua memória?
Já conhecia a história, por isso não posso dizer que me comovi. Mas descobri coisas que desconhecia sobre a dimensão ética do meu pai, que morreu em 1984. Ele tinha uma característica: nunca falava de trabalho em casa, e ficaram sempre coisas por saber. Das poucas coisas que me lembro foi um dia estarmos à mesa e ele ter gracejado porque lhe tinham oferecido um elefante bebé.
É facto ou ficção que ele voava numa avioneta como quem usa um carro?
É facto. Cheguei a voar com ele, várias vezes. O nome «anjo branco» vem do avião branco, de andar de bata branca e porque trazia saúde, e além disso chamava-se José da Paz – havia quem achasse que era alcunha (no livro chama-se José Branco). Era responsável pelo serviço de saúde de uma área com o tamanho de Portugal. E só havia no território uns cinco ou seis médicos civis. Imagine que ele estava baseado em Viseu e no mesmo dia tinha de ir a Bragança, a Lisboa e a Vila Real de Santo António. Ia sozinho no avião ou com uma enfermeira. Aqui se percebe a magnitude. A verdade é que ele conseguiu erradicar várias doenças que eram endémicas no distrito, através de campanhas de vacinação.
Há uma fantasia ou o seu pai era mesmo uma espécie de missionário?
Era um João Semana. Tinha um salário mas havia um lado forte de missão, de despojamento. Tudo o que fui sabendo do meu pai foi por fontes indirectas. A maioria das pessoas já morreu. Mas desta visita que fiz agora a Moçambique vi que corresponde à minha imagem da infância. Tinha uma tarefa ciclópica. O que fez, fez por impulso pessoal, por generosidade. Podia encostar-se à piscina do aeroclube de Tete em vez de andar a voar todos os dias para cada canto de Moçambique a levar ajuda sanitária.
Há uma carga romântica muito forte na sua vida.É uma espécie de enredo de O Paciente Inglês.
Sim, e de África Minha.
A realidade ultrapassa a ficção…
Exactamente. A ideia nasce quando fui almoçar a casa de uma prima. Tinha publicado A Ilha das Trevas e ela perguntou-me se eu agora estava a fazer romances. Então disse-me: «Porque não escreves a história fantástica do teu pai?» Houve um escritor sul-africano que quis escrever a história do meu pai nos anos 1970. Chegou a contactar a minha família. Escrever este livro permitiu-me recriar o que foi o Serviço Médico Aéreo e o que foi a história dos portugueses em África e o colonialismo. O Codex é sobre os Descobrimentos, mas o pretexto é o mistério da identidade do Cristóvão Colombo. Aqui falamos do que foi a guerra e tudo o que ela envolve, que são temas ainda meio tabu na literatura portuguesa. Já ouvi um comentário sobre este meu livro a dizer «que péssima ideia andar a tocar estes assuntos». Há um incómodo em relação a estes temas coloniais. Mas este é um romance que interessa a portugueses e moçambicanos. Faz a ponte.
Nesta sua última viagem de pesquisa no terreno, em Moçambique, falou pelo menos com uma testemunha do massacre de Wiriamu, onde se passa parte da acção.
Chama-se Vinte Pacanate. Levou-nos ao sítio onde os guerrilheiros da Frelimo combinaram encontrar-se com um comerciante português para este lhes fornecer sal e farinha. Esse comerciante é que vai dizer à PIDE que os guerrilheiros estavam ali. A contabilidade dos mortos é incerta. No memorial fala-se em 450. Para o lado da guerrilha havia sempre interesse em aumentar, para o lado da tropa portuguesa em diminuir. Morreram à vontade mais de duas centenas.
Arruma de vez o mito de que a colonização portuguesa foi branda?
Tem aspectos contraditórios. Há várias histórias no romance que são verdadeiras. A história que o amigo do meu pai, o advogado Domingos Arouca [Domingos Rouco, no livro], é expulso do hospital por ser negro é verdadeira. Também é verdade que uma vez, quando o meu pai estava a atender doentes, lhe apareceu um americano a protestar que devia passar à frente dos negros, e que o meu pai o mandou para o seu lugar. Podia também dar-se o caso de numa cama estar um guerrilheiro da Frelimo e ao lado um soldado português. A história dos soldados que deixam umas cervejas na picada para os guerrilheiros depois irem buscar. Na Primeira Guerra Mundial, os alemães e os portugueses trocavam fogo e horas mais tarde havia uma encenação do género, o alemão dizia «granada» e atirava salsichas, e o português dizia «granada» e atirava chouriço. A PIDE, por exemplo, detinha negros suspeitos de pertencerem à Frelimo e maltratava-os. Por outro lado, a mesma PIDE punha-se ao lado de grevistas negros a dizer que eles tinham razão, que eram maltratados pelos fazendeiros brancos e que tinha de se acabar com aquela iniquidade. Está em relatórios da PIDE.
Das coisas que desconhecia do seu pai e descobriu na pesquisa qual foi a mais surpreendente?
Não tinha conhecimento de como foi importante na ajuda às vítimas do massacre.O que mais o chocou nas viagens a Moçambique foi Wiriamu?
Aquilo está quase limpinho. Onde era a aldeia só há árvores. A actual aldeia está a um quilómetro. Chocou-me ouvir os relatos.O romance tem a função de dar voz a esses relatos e perpetuar a memória.
Deve ser lido como um documento?
Sim, neste caso recupero a memória e mostro as contradições que o discurso histórico não mostra. O historiador parte de um ponto de vista e vai demonstrá-lo. Aqui não há um ponto de vista. A realidade complexa e contraditória aparece em cada esquina. Da PIDE espera-se que faça coisas repulsivas, mas no instante a seguir já faz outras que ninguém supunha.
Acha que toda a escrita é engajada?
Bem, isso é o que dizia o Louis Althusser, que toda a escrita é ideológica. Fiz o meu trabalho com base nos relatos das pessoas.
Neste caso quais foram as suas leituras? Foi aos papéis da família, aos diários do seu pai?
Testemunho oral.
O «mingalho» [pénis] descomunal de José Branco, que lhe vem de nascença, é facto ou ficção?
Não vou diminuir a coisa, mas faz parte da técnica narrativa [risos].
Não é um novo Gungunhana?
Não [risos].
Como foi a sua infância em Moçambique, de onde saiu com 10 anos?
Sou português mas também sou moçambicano. Há sempre uma identificação mais forte com a melancolia da infância. Cheguei agora a Maputo, 35 anos depois, e fiquei encantado. Acho que Maputo está muito bem. É uma cidade limpa.
Tete é neste momento o Eldorado para os exploradores de carvão.
Sim, mas não está no estado de Maputo. O que Tete tem, e teve desde sempre, é um desafio na base da agressividade e da selva. Hoje, menos do que antes, por causa da albufeira da barragem [Cahora Bassa], que reflecte muito o calor. Quando lá vivi havia temperaturas de cinquenta graus à sombra.
O livro é uma recriação minuciosa do Moçambique colonial e de Tete em particular, o cabaré, o hotel central… Quanto disto sobrevive de pé?
O Hotel Zambeze foi recuperado. Para mim é como se existissem duas Tete. Tenho uma memória do Cinema Santiago, onde ia ver umas matinées, e que agora está murado e não tem tecto. O hospital onde o meu pai trabalhava está impecável. A casa onde vivi continua lá. O cabaré Maxim’s, hoje habitado por umas famílias, era uma coisa opulenta que chegava ao ponto de ter uma reprodução de parede inteira da barragem de Cahora Bassa. O Aeroclube de Tete, mesmo ao lado do rio Zambeze (onde aprendi a nadar), que era a sede do Serviço Médico Aéreo, tem neste momento uma pista de capim. Maputo é o oposto disto. Quem viveu em Angola no período colonial chega hoje a Luanda e fica muito mais chocado.
O seu pai continua a ser uma figura querida da terra?
Sim. Sobretudo pelo seu projecto de saúde inovador.
Como eram as relações dele com o poder?
Amenas. Ele veio para Xai-Xai (antiga João Belo), depois saiu dali por ter um amigo da Frelimo, e então é deslocado para Tete de castigo. Acaba por se dar bem com o poder. Lembro-me de irmos com frequência a casa do inspector da PIDE, um dos homens mais temidos da cidade. O meu pai dava-se com toda a gente. Tanto tratava civis como a tropa portuguesa. Um dos maiores amigos dele era um elemento da Frelimo, e ao mesmo tempo era amigo do inspector da PIDE. Entendia que o seu trabalho estava acima da política. De certa maneira, vivia numa ilusão, como se admite no livro.
Nessa pesquisa minuciosa que fez houve surpresas no que toca a achados políticos?
Na parte das contradições do sistema. Por um lado era racista, por outro não era, ou era repressor e não era. Estava à espera de um discurso mais uniforme. Há muitas realidades.
O colonialismo português foi o mais atípico do padrão europeu?
Julgo que sim. Conheci os ingleses que estavam na Rodésia e iam muito a Tete. Os chamados «bifes». Rodesianos ingleses. Tinham uma atitude muito diferente, para o melhor e o pior. Uma coisa que faziam bem, e deu frutos até hoje, é que eles apostavam muito nas instituições, embora humanamente fossem um desastre. O facto de o Reino Unido ser um país democrático ajudava a ter outra mentalidade. No nosso caso, acho que uma das melhores coisas na altura era o sistema educativo. Lembro-me de ter vindo para Portugal e constatar que os melhores alunos eram os que tinham vindo de África. Por exemplo, vim fazer a segunda classe a Portugal. Era um aluno mediano em Moçambique e cá era o melhor da escola. Quando voltei a Moçambique era o pior aluno da turma.
Nesta sua ida a Moçambique foi recebido em braços.
Para os moçambicanos há um conjunto de pessoas que, embora não estejam lá, são filhas da terra. Eu, o Carlos Queiroz, a Mariza.
É verdade que houve um menino que o abordou e lhe disse: «O senhor é aquele que pisca as orelhas?»
É possível [risos].
Deus ou a ideia de Deus é omnipresente nos seus livros. Neste caso, uma figura angelical. Está de algum modo ligado a alguma religião?
Pessoalmente, não. Neste caso há uma ética, é um romance sobre ética. Primeiro, no sentido de definir o bem e o mal. Fazer o que está certo muitas vezes é a coisa mais difícil que há. Como diz uma personagem, se fazer o que está certo fosse fácil, todos só faríamos o que está certo. Qualquer pessoa que leia esta entrevista consegue perceber isto. Nós sabemos que determinada coisa é errada e somos cúmplices dela se não nos erguermos. Ou seremos punidos por denunciá-la.
É dos que acreditam que o homem é bom ou mau por natureza?
O problema é definir o que é o bom. N”O Anjo Branco o que é bom para um é mau para outro. Se eu curar o Hitler fiz uma coisa boa ou má? Fiz uma coisa boa, porque o curei, mas prolonguei a vida a um homem responsável pela morte de vinte milhões de pessoas.
Quando chega ao romance, como é que um ex-repórter de guerra chega a conclusões sobre a natureza humana?
Procuro não me limitar aos factos e dar todas as panorâmicas. O meu livro não se limita a contar uma história, tem de se distinguir. Uma das coisas que o distingue de qualquer outro romance que se encontre numa livraria é essa dimensão de a História ser pretexto para algo mais. Através daquela história, o leitor pode reflectir sobre determinados aspectos da vida, da História, da Ciência.
Mas à falta de preocupações de inovação de linguagem não devemos chamar-lhes antes grandes reportagens literárias? Continuam a ter enredo e ficção.
Quando diz que escreve para o mundo, tem que ver com a universalidade dos temas ou acha-se um autor universal?
Escrevo sobre temas que interessam aqui ou em qualquer parte do mundo. Uma coisa é certa, não escrevo para mim próprio e para o meu umbigo.
Escreve certamente para ser lido.
No meu caso sim, mas cada um com a sua panca. Alguns até escreverão para si próprios e são sinceros. Dizem que o Salinger escreveu não sei quantos livros que estão na gaveta. Há um romance do Paul Auster, O Livro das Ilusões, que conta a história de um cineasta que faz os filmes, não mostra a ninguém e deixa instruções para que os filmes sejam destruídos depois de morrer. Parece-me razoável acreditar que um romancista escreve para ser lido.
Nas conversas que teve com escritores – e que deram lugar ao livro Conversas de Escritores – procurou os autores com quem tem mais afinidades, a começar por Dan Brown?
Procurei a notoriedade. Autores que o público reconhecesse de imediato e que façam parte de uma literatura universal.
Houve recusas?
Houve impedimentos técnicos. Por exemplo, o Mario Vargas Llosa estava no Peru e disse que vinha à Europa. Acabou por não vir e a entrevista gorou-se. O Philip Roth disse-me que sim e depois quando chegou a altura recusou, disse que já estava cansado de dar entrevistas. O Ismail Kadaré também disse que sim e recuou. Tentei o Spiegelman (autor da banda desenhada Maus), que disse logo que não. Recebi uma carta da mulher do Milan Kundera a dizer que este não dava uma entrevista desde 1985. Até houve um caso curioso. Pedi a entrevista e descobri que o escritor tinha morrido uns meses antes. Devia estar em reportagem e não soube da sua morte.
A que atribui o enorme sucesso dos seus livros?
Só comecei a ter êxito a partir do terceiro romance. A Ilha das Trevas começou por vender sete mil e só atingiu os sessenta mil mais tarde. A Filha do Capitão já vendeu 26 mil, mas o sucesso vem só à terceira. Diria que os meus romances funcionam por um conjunto de razões. Primeiro, procuro escrever de uma forma quase jornalística. Para mim, as palavras não são um fim em si mesmas, são um instrumento, um meio. Não me perco num exercício narcísico a mostrar que escrevo muito bem. Se o meu leitor nem reparar nas palavras, como se fossem véus de água, e estiver a ver apenas a situação que eu descrevo, consegui o meu objectivo. As pessoas não gostam do autor que se perde narcisistamente na sua própria escrita. Não digo que esta fórmula do José Rodrigues dos Santos está certa e a deles está errada. Acho é que os leitores gostam mais desta minha maneira de escrever, uma escrita transparente, interessante, que os agarre. Por outro lado, as pessoas gostam de uma boa história. Não têm paciência para romances em que a história não avança, é fraca. Procuro ainda dar a conhecer qualquer coisa que as pessoas não conhecem, sobre alterações climáticas, petróleo, ciência, física quântica, a presença de Portugal na Primeira Guerra Mundial, o radicalismo islâmico, agora em África. Procuro escrever de tal maneira que interpele o leitor.Dá ideia de que se sente impelido a escrever sobre o que não sabe para passar a saber.
É verdade. Vou à descoberta de um tema. Se concluo que é interessante, avanço. Quando lancei Fúria Divina ouvi uma reflexão de que discordei. José Saramago tinha lançado Caim, sobre o Antigo Testamento, o judaísmo. O meu era sobre o islamismo. Fui a um debate em que ouvi uma pessoa comentar que os autores percebem que a religião vende e fazem um livro. Esta descrição da escrita como um produto oportunista não podia ser mais falsa. Existem certamente dezenas de livros sobre o islamismo ou o Antigo Testamento e nenhum deles vende muito. Porque é o que o Caim ou a Fúria Divina venderam muito? Tem que ver com a forma como estão escritos. No meu caso, até achei que esse tema era muito difícil de acatar em termos de aceitação pública.
Chegou a temer uma fatwa, como a que foi pronunciada contra o escritor Salman Rushdie?
Isso era outro tipo de temor [risos]. Mas não foi por isso que foi o livro mais vendido do ano em Portugal [vai nos 175 mil exemplares vendidos]. O segredo está na forma como a história é contada.
Acha que é esse o seu dom?
Boa pergunta. Não sei. Talvez devido ao facto de ser jornalista conheça bem o público e o que ele quer.
Que conselhos daria a um jovem romancista?
Independentemente do que interesse ao público, eu tenho de estar interessado no que estou a escrever. Se eu não tiver entusiasmado não consigo transmitir entusiasmo.
Como é que consegue passar de livro para livro e datar a saída, mantendo a emoção?
Estou mais ligado ao livro que estou a escrever naquele momento. Acontece-me, como agora, lançar um livro e já estar no fim de outro, ou do seguinte (como é o caso).
E é nado-morto uma vez acabado?
Não, senão nem sequer o apresentava. Há uma sensação sempre especial quando o livro chega, o cheiro, a emoção de tocar. Por mais corriqueiro que pareça, ainda não perdi o gosto do novo livro.
Tem recuo para dizer qual das suas personagens se parece mais consigo?
É uma boa pergunta, mas não consigo dar uma resposta diferente do banal. Todas as personagens têm um pouco de nós. Mesmo os bandidos. Projectam coisas que não gostamos mas também são algo de nós. Apenas há um caso, que é o Tomás de Noronha, que pus a nascer em 1964, o meu ano, e que é professor da Universidade Nova, tal como eu. Facilita-me a vida, porque se move num meio que eu conheço. Mas é como dizia o Hergé: «Tintin c”est moi.» De certo modo, estamos sempre a repetir um esquema. Como dizia o Somerset Maugham, os escritores estão sempre a contar a mesma história.Interessa-se mais por factos e narrativas do que propriamente pelos efeitos das acções sobre as pessoas.
As suas personagens não correm o risco de se afogar na História?
Crio personagens, tipos. Por exemplo, em A Filha do Capitão abordo vários tipos que havia na Primeira Guerra Mundial. A Isabel Allende (uma das entrevistadas de Conversas de Escritores) dizia-me que a pesquisa faz o romance. A história começa a emergir naturalmente na nossa cabeça. Dai que eu dê tanto valor à pesquisa. As personagens emergem deste caldo da História e deambulam no seu tempo. São quase folhas atiradas e empurradas pela tempestade. Separam-se, juntam-se, precisamente porque não dominam o seu destino.
Qual foi o país a seguir a Portugal onde teve mais impacto?
Em Espanha vendo muito bem. Nos países de Leste também, e na Holanda. Na Bulgária, a Fórmula de Deus [Burgata Formula] chegou ao número um do top de vendas e manteve-se aí várias semanas. Os meus livros funcionam muito bem nos mercados que têm hábitos de leitura. Em que as pessoas têm um determinado nível cultural e exigências.
Em quantas línguas foi traduzido?
Dezassete.
Tem tempo para hobbies?
Escrever é o meu hobby.
Está rico com os livros?
Não. Estou rico em conhecimento. É a única riqueza que conta, e que gera riqueza. Por isso é que os alemães sabem fazer Mercedes e nós não sabemos. Os sauditas não são ricos. Quando acabar o petróleo voltam a ser pobres como eram. O conhecimento é o grande desafio de Portugal. Acredito que tenho essa riqueza e que posso partilhá-la com as pessoas, que lhes permita alargar a visão.
Uma pessoa que atinge os seus números de vendas leva a acreditar que há mais do que potenciais leitores em Portugal.
O grande mérito do Equador, do Miguel Sousa Tavares, foi mostrar isso. Ou seja, que as pessoas estão ávidas por ler romancistas portugueses. O que se passava era uma falta de identificação com uma literatura chamemos-lhe mais experimental. Lembro-me de ter recebido um e-mail de um leitor que dizia: «Toda a gente diz que temos grandes romancistas mas chegamos à praia e está tudo a ler autores americanos e ingleses.» O grande desafio para o autor português era superar essa barreira de confiança. Tenho mails a agradecerem-me ter reconciliado os leitores com as letras portuguesas.Podia viver só dos livros.
Não é coisa que lhe passe pela cabeça?
Não. Gosto muito do meu trabalho como jornalista. É uma maneira de me manter ligado ao real e de conviver. Um escritor passa muito tempo fechado. Também tenho uma relação com a Universidade Nova muito emocional. Foi lá que me licenciei e doutorei.
Já agora, concretizou-se a venda dos direitos de O Codex 632 a Hollywood?
O Codex 632 está numa agência cinematográfica em Hollywood que tem a representação do romance. Não significa que seja adaptado. Tive uma conversa com o Jeffrey Archer, que já vendeu 260 milhões de livros, que me disse ter os direitos dos livros todos vendidos mas que nunca se tinha feito um filme. Uma major faz 15 filmes por ano. O que eles fazem é reservar os direitos dos livros por atacado. Não tenho grandes ilusões. Preocupo-me só com o que depende de mim, que é escrever os romances.