THE DELAGOA BAY REVIEW

25/08/2018

EÇA DE QUEIROZ E MOÇAMBIQUE, 1900

Filed under: Eça e Moçambique 1900, Eça e Moçambique 1900 — ABM @ 9:56 pm

 

“Para Africa, e em força!” parece ser o conselho do cônsul e o escritor Eça em 1899, o ano em que o Reino Unido discutia repartir Angola e Moçambique com os alemães e comprar (ou abarbatar) o Sul de Moçambique para completar o cerco aos Boers – povo que aliás submeteria a ferro e fogo nos três anos que se seguiram. Mas o facto é que, apesar do que os bem-cheirosos burgueses da capital portuguesa, corporatizados na Sociedade de Geografia de Lisboa, pensavam, nem sequer ocorria ao povão miserável e ignorante ir para África (iam para o Brasil e para a América, locais muito mais apetitosos, ainda hoje). O facto é que não havia dinheiro nem paciência nem gente para colonizar coisa nenhuma. Neste sentido, a putativa colonização portuguesa de África foi durante décadas uma quase ficção, especialmente em Moçambique. Havia lá um punhado de portugueses no imenso mar africano, a chatear e a tentar explorar os nativos, e pouco mais. E – precisamente- Eça não deixa de dar a sua farpazinha no sentido contrário da sua tese, que era pouco mais que wishful thinking, sugerindo que, em vez de África, se colonizasse e desenvolvesse o Alentejo português.

Um excerto de A Ilustre Casa de Ramires, publicado em 1900:

(Para descarregar o livro inteiro e assim ler no seu computador, prima aqui)

Um comentador que não sei quem é, escreveu o seguinte, aqui:

Publicado em 1900, o ano da morte de Eça de Queirós, o romance “A ilustre Casa de Ramires” representa o apogeu do estilo Queirosiano e, segundo os críticos, é aquele romance que melhor representa a sua maturidade inteletual.

É também uma das suas obras mais políticas, questionando a relação do Portugal do século XIX com o seu passado histórico e as suas responsabilidades de então. Tais conjeturas explicam-se pelo facto da obra ter sido escrita e publicada no meio de uma enorme instabilidade política e social. Vivia-se então no rescaldo do Ultimato Inglês e da agitação dos partidos republicanos que aproveitaram a baixa popularidade da Coroa para impulsionar os movimentos anti-monárquicos. Chegou inclusive a haver, a 31 de janeiro de 1891, no Porto, um levantamento militar contra a monarquia na qual os revoltosos tomaram os Paços do Concelho e, da varanda, proclamaram a implantação da república em Portugal, hastearam uma bandeira vermelha e verde e cantaram uma canção de cariz patriótico composta em reação ao ultimato britânico chamada “A Portuguesa” (que é atualmente o Hino nacional). Mas o movimento foi, pouco depois, sufocado por um destacamento da guarda municipal, resultando em 12 mortos e 40 feridos. Os revoltosos capturados foram julgados, tendo 250 sido condenados a penas entre os 18 meses e os 15 anos de degredo em África. “A Portuguesa” foi proibida.

Eça de Queirós sendo cônsul português em Paris e, portanto, parte integrante do poder monárquico vigente, não via com bons olhos este tipo de elevações sociais mas também não estava desatento ao descontentamento e inquietação social que se vivia no inicio do século XX. A mensagem da obra é pois notória: Eça proclama que deve ser a aristocracia a proporcionar os meios para a contenção e social o equilíbrio social apoiada nos valores do passado e no reforço do colonialismo. Esta posição ideológica nos seus romances marca também a distinção das outras fases literárias de Eça onde a crítica corrosiva e a ironia cáustica imperavam. Esta é uma obra de um Eça mais maduro, menos critico, mais optimista, com uma postura de maior esperança nos valores humanos e uma posição ideológica conservadora. De certa forma pode-se dizer que a escrita em Eça foi orientada de acordo com uma visão social que foi mutável durante a sua vida, ou seja, criticou quando achou que era altura de criticar e tentou acalmar consciências quando achou que é altura de apaziguar os ânimos.

 

14/05/2012

GRAÇA GONÇALVES PEREIRA, A CÔNSUL-GERAL PORTUGUESA EM MAPUTO

Filed under: Graça Gonçalves Pereira em 2012, Malangatana — ABM @ 9:40 am

Graça com Malangatana. Foto rapinada do sítio da Academia do Bacalhau, descolorizada e recolorizada.

Após aproximadamente quatro anos no cargo de Cônsul-Geral portuguesa e Maputo, o desempenho de Graça Gonçalves Pereira continua a suscitar respeito e admiração, ao ponto de alguém ter tido a simpática ideia de criar uma petição online pedindo que ela permaneça mais algum tempo em Maputo.

Que, claro, já assinei (sou o nº38 lá na lista dos cerca de 60 que a esta hora já assinaram).

Já por mais que uma vez referi as qualidades desta senhora, especialmente se se contrastar o seu desempenho e especialmente a sua presença, na sociedade moçambicana (e no caso especial dos portugueses que vivem e trabalham em Maputo e arredores) com a tépida, ineficaz, arrogante e essencialmente invisível presença de quase todos os seus antecessores, embaixadores incluídos.

Já o referi antes: esta senhora já devia ser embaixadora há muito tempo. Basta olhar para o seu CV e o trabalho feito. Mas há muito tempo que me convenci que o ministério português dos Negócios Estrangeiros não é um ministério. É um mistério, no todo e nas partes. A definição de mérito ali não vem de fora, vem de dentro, das suas incestuosas células político-familiares. Neste caso é quase hilariante.

O CV de Graça Gonçalves Pereira. Ela nasceu em 10 de Maio de 1952.

Que mais não seja, fica esta nota, e a petição que refiro acima (que peço a quem estiver dentro do assunto assine) a assinalar o seu trabalho e presença desde Setembro de 2008.

É muito raro aparecer alguém cujo trabalho e personalidade impressionem. E, claramente, quem está em Maputo não quer, com a sua eventual saída, passar novamente de cavalo para burro.

O que, conhecendo a casa, será quase uma inevitabilidade. Mas, de certa forma, ainda bem. A qualidade, ou a sua falta, afere-se mais facilmente quando comparando o que se faz com padrões elevados.

01/12/2011

O FADO PORTUGUÊS MAIS MOÇAMBICANO

Em baixo, o fado, cantado pela diva.”] Crónica dedicada à Maria João Quadros e ao José Luis Silva.

A propósito de se achar que o fado passou a ser mais hoje que há uma semana.

Hoje em dia é quase politicamente incorrecto alguém debruçar-se sobre o que é e o que era – pelo menos para alguns – ser-se, ou ter-se sido, português em Moçambique. Por todas as razões e mais alguma, a experiência, sustentada nos alicerces de uma imposição colonial, ruiu como um baralho de cartas. Se não necessariamente assim, tinha que ser. A esmagadora maioria dos cerca de (e meros) vinte mil portugueses que por lá andam estes dias nem suspeitam como foi e, às vezes infeliz e caricatamente, focam-se quase unicamente na sua recém-adquirida “moçambicanização”, vestindo toscamente a nova capulana cultural, dizendo “maningue”, deixando aquilo que são metido na gaveta para quando vão de férias à terrinha ver os familiares, os amigos do liceu e fazer umas comprinhas à FNAC no Colombo. Como se enganassem alguém com essa postura, em particular os moçambicanos. Em Portugal, tornam-se estrangeirados – o termo vernacular mais venenoso é “cafrealizados”, estatuto que a RTP Internacional e a internet atenuam de alguma forma. Confrontados por alguns locais com um passado sobre o qual leram nas sebentas, e os que lá estiveram antes, são displicentes e categóricos: esses não eram portugueses como eles. Eram muito piores: eram todos racistas, colonialistas, ressabiados (afinal a despossessão sumária dos seus bens e experiências sem apelo nem agravo será, para estes, justa e merecida) e agora, ainda por cima, saudosistas, termo que de vez em quando estudo com assumido sentido de humor e que, do que assisto, rotula quase tão perfeitamente quem o profere como a quem se dirije.

Tudo isto tão vão como inconsequente, no tempo e numa era de vertiginosa globalização, em que, dentro de vinte anos quase ninguém de entre as partes envolvidas estará vivo para dizer como foi.

Atrás ficarão os mitos, por mais algum tempo.

Depois, tudo será esquecido.

Excepto uns registos resumidos do passado, manietados pelas ideologias prevalecentes, a língua colonial, agora na posse plena das duas populações, e os vultos sorumbáticos das estruturas arquitectuais e demais infra-estrutura, sombras discretas de um passado adivinhado.

Como foi ser-se português, numa estranha diáspora algures no meio da África Oriental Portuguesa, na reluzente Lourenço Marques colonial, nos anos 30, 40, 50 do século XX?

É assunto que daria panos para mangas. No substrato, o enorme confronto entre a pequenez, a tacanhez, a falta de oportunidade e o espartilho social, económico e até moral a que os indígenas portugueses referem em relação à sua terra, e a oportunidade, os “horizontes mais largos” (termo usado por José Maria Tudela numa entrevista ao Correio da Manhã, 23 de Agosto de 2002) e a óbvia descompressão social, moral e material encontrada no caldo colonial urbano moçambicano.

Em que, admita-se, a esmagadora maioria dos moçambicanos negros, excluídos das cidades e da economia, eram pano de fundo. Envolvente, mas pano de fundo mesmo assim.

Apanhado numa geração de transição, eu próprio já só apanhei sombras desses tempos ao mesmo tempo bucólicos e turbulentos, de cujo fim Rui Knoply deu aviso claro num majestoso poema. Felizmente, através de preciosos conhecimentos aqui e ali, vou apanhando histórias, escritos, recolho impressões desse outro mundo e cujo chão me viu nascer.

Assim, aqui assinalo, pela segunda vez neste blogue, e a propósito de o fado (juntamente com a música da mariachi mexicana) ter sido decretado “património imaterial da humanidade, uma pequena mas inesquecível manifestação dessa era.

Este fado – Uma Casa Portuguesa – foi composto pelo Maestro Artur Fonseca, que dirigia a orquestra de salão do Rádio Clube de Moçambique, com letra de Reinaldo Ferreira, poeta e bardo que andou anos por Lourenço Marques, onde morreu e que (ainda) está sepultado no cemitério hoje abandonado do Alto-Maé em Maputo, e Vasco Matos Sequeira, na altura um reconhecido jornalista e poeta, cujo pai, Gustavo, era historiador.

Cantado pela primeira vez pela angolana Sara Chaves no Teatro Manuel Rodrigues em Lourenço Marques numa quase certamente quente noite de uma 4ª feira, 30 de Janeiro de 1952, num sarau em honra de uma delegação do Colégio Militar de Lisboa, que então visitava Moçambique.

Mais tarde memoravelmente interpretado pela diva, Amália Rodrigues.

Este fado é alegre, musicalmente agradável, reprodutor de uma exo-saudade idílica e exageradamente generoso, em parte porque não tropeça nas muitas razões que fizeram com que Portugal, uma miserável pequena ditadura e uma sociedade em quase tudo parada no tempo, fosse um tão apetecível lugar de onde se emigrar. Bom para ser escrito e composto numa mesa do Café Scala em Lourenço Marques, num dia de verão, enquanto se bebia uma Laurentina e mastigava uns tremoços.

Naquela altura, Portugal só era lindo para quem estava em Moçambique porque estava tão longe.

Vindo a sua letra da mão de Reinaldo Ferreira, que supostamente foi comparado apenas com Fernando Pessoa por António José Saraiva e Óscar Lopes e de quem se terá dito ter “o mesmo sentir pensado, a mesma disponibilidade imensamente céptica e fingidora de crenças, recordações ou afetos, o mesmo gosto amargo de assumir todas as formas de negatividade ou avesso lógico”, o poema só pode ser interpretado como um dos mais sublimes exercícios de sarcasmo dos afectos concebidos na língua portuguesa. Talvez aí tenha estado a mão de Vasco Matos Sequeira.

Mas este fado nunca foi visto nem apercebido como tal, em parte por se enquadrar tão precisamente na grelha popularucho-travestipoética prevalecente e imposta nos círculos de então.

Nesse aspecto, para mim, será sempre um fado moçambicano, dos tempos em que alguns ali viviam uma forma muito peculiar de se ser português.

Em que a distância, a saudade e o isolamento se prestavam à alegoria.

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30/11/2011

A VISITA PRESIDENCIAL A PORTUGAL SEGUNDO O PÚBLICO

Durante dois dias o sítio do jornal lisboeta Público na internet anunciava assim a visita presidencial moçambicana a Portugal.

Obviamente na redacção do jornal não havia ninguém que percebesse minimamente quem é quem na cena política moçambicana.

Pois.

A página do sítio do Público anunciando a chegada do Presidente Guebuza a Lisboa.

25/10/2011

À PROCURA DE MARCELO DOS SANTOS, SAÍDO DE MOÇAMBIQUE EM 1975

Filed under: Marcelo dos Santos, Soltas — ABM @ 6:00 pm

Sérgio Marcelos dos Santos. Diz que nasceu em Lourenço Marques no dia 4 de Maio de 1974 e nunca viu o pai, Marcelo dos Santos, português. Gostava de o conhecer.

Em meados de Agosto recebi neste blogue uma mensagem com um pedido. O homem cuja imagem se encontra em cima, que hoje tem 37 anos de idade, referiu que procura o pai, que tudo indica ser um português que veio de Moçambique para Portugal em 1975 e que nunca conheceu.

O que se segue é uma destilação das suas mensagens, escritas em inglês e num português que me parece ter sido traduzido com uma dessas “máquinas” de traduzir que se encontram na internet.

Se algum dos exmos Leitores tiver alguma ideia de quem possa ser o pai deste senhor, agradeço que envie uma mensagem para aqui.

A mensagem:

O meu nome é Sérgio Marcelos Dos Santos. Perdi meu pai em 1975 em Moçambique. Fui-lhe tirado quando ele tentou levar-me com ele para Portugal.

Eu nasci em 4 de Maio de 1974. Dizem que o nome do meu pai verdadeiro é Marcelo dos Santos, o nome da minha mãe é Rosa ou Rosita Ernesto. Ela nasceu na África do Sul mas muito nova foi viver para Moçambique e cresceu em Lourenço Marques.

O que sei é que quando eu nasci os meus pais viviam no Alto-Maé, na cidade de Lourenço Marques. Eu nasci no Hospital Central de Lourenço Marques. No ínicio de 1975, o meu pai tentou levar-me com ele para Portugal, mas já no aeroporto a minha mãe chamou a polícia de Lourenço Marques e eu fui entregue à minha mãe.

Do que investiguei junto dos amigos da minha mãe, eles costumavam viver no Chamaculo, em casa do melhor amigo do meu pai, na qual eles alugavam um quarto. O meu pai zangou-se com a minha mãe, supostamente porque ela terá tentado envenená-lo com um chá, e saiu de lá (é o que me disseram).

Aos cinco anos de idade, a minha mãe abandonou-me e eu cresci em lares de adopção. Só conheci a minha mãe quando eu já tinha 17 anos de idade.

Agora a minha mãe está morta e eu não tenho família e agora alguém que me possa ajudar a encontrar o meu pai . Já fui a todos os sites à procura do meu pai e ainda não obtive qualquer resposta até agora eu fui à procura dele para aproximadamente 35 anos e nada.

(fim)

Ele diz que não tem certidão de nascimento ou qualquer outro documento emitido em Moçambique, se bem que tem passaporte moçambicano, emitido pelo consulado de Moçambique em Joanesburgo, que diz que foi emitido a pedido da sua mãe. Tudo indica que ele passou uma boa parte da sua vida na África do Sul.

06/09/2011

AUTO-COLANTE PARA O CARRO

Filed under: Politicamente Correcto, Portugal-Moçambique — ABM @ 11:57 pm

Para quem saiu de África e reparou algo de diferente, quarenta anos depois.

20/10/2010

UMA VISÃO GERACIONAL SOBRE MOÇAMBIQUE

Filed under: Imprensa Portuguesa, Portugal-Moçambique — ABM @ 11:42 pm

O símbolo corporativo da portuguesa Televisão Independente

por ABM (20 de Outubro de 2010)

Para os exmos. Leitores que não viram e que têm internet mais ou menos a sério, em baixo uma reportagem de 35 minutos feita há umas semanas sobre algo em Moçambique, a que alguém escolheu dar o nome (que é o da reportagem) de Geração de Viragem.

Confesso que, para além do alegórico das imagens habituais e do abundante cut and paste e acompanhamento musical exótico-africano, não percebi bem qual era o fio da meada nem a relação entre o que vi e o título.

Mas se calhar é só coisa minha.

Lá mais uma vez comparece em farta abundância o incontornável, o indomável, o insaciável, o inevitável Embaixador de Moçambique at large, o eminente escritor e biólogo (ou é biólogo e escritor?) Mia Couto. Que, mais uma vez, nos mata a todos com amor.

E aquele fim, aquele fim tão prenho de imagens de emoção silenciosa e pingante do António Peres Metello (que de outro modo é cinco estrelas), que parece que paga do seu bolso a educação duma jovem moçambicana…. fiquei quase, quase, rendido.

Foi, simplesmente….embevecedor.

É isso. Fiquei embevecido.

E para o exmo Leitor ver se se embevedece também, prima AQUI, depois com o rato prima a seta no vídeo e veja o documentário.

Esta peça foi para o ar na passada segunda-feira na TVI em Portugal continental, logo a seguir ao noticiário deles.

18/10/2010

MARCELO APÓS TP MPM-LIS

Filed under: Marcelo R de Sousa, Portugal-Moçambique — ABM @ 12:55 am

Je suis revenu du Maputu aujourd'hui.

por ABM (18 de Outubro de 2010)

A semana passada entupi e envenenei os canais maschambianos ao mencionar na Casa a presença de Marcelo Rebelo de Sousa num estúdio de televisão em Maputo, de onde se dirigiu à Nação portuguesa, tremelicante com as tsunamianas notícias das subidas de impostos e o possível chumbo no orçamento de 2011.

Então, sobre Moçambique, onde estava, serviu-nos chá,  charme, Mia, e livros.

Esta semana (eu vi o seu segmento porque a sogra vê – diz que ele lhe simplifica aquela confusão da carpidaria da semana em parágrafos sucintos que ela depois usa para falar com as amigas ao telefone),  já de regresso à base em Lisboa (ele vive em Cascais City) o Prof. Marcelo encantou novamente.

Mal se sentou na cadeira da TVI, com aquele ar de quem esteve uma semana no Bazaruto em vez de a trabalhar arduamente, disse logo que acabara de chegar de Maputo (no TAP da manhã) e que tinha o seguinte a dizer sobre Moçambique (aí disparei a correr buscar um lápis e um papel).

Segue-se o que ele disse, mais ou menos tal e qual, vai em bullets

–  em relação aos episódios de 1-2 de Setembro em Maputo, que havia uma primeira camada da população que estava serena [não explicou qual];

– que havia uma segunda camada do burgo que eram os políticos, em que Sr G fez remodelação ministerial (mudou um amigo e despediu outros três), cancelou ida a Espanha que já era o segundo cancelamento;

– sobre a economia, que recusou cortar nos gastos mas que a inflação está a ser mortífera, em que o salário mínimo moçambicano é um quinto do português mas que as coisas básicas que se têm que comprar em Maputo City e arredores custam o mesmo que na Tuga;

– e ainda havia o factor de milhões de jovens que estavam a crescer e que em breve entrariam na sociedade, com o impacto previsível [presumo que de imprevisibilidade];

– que não há oposição política em Moçambique, ou melhor, que a oposição é feita apenas pelos jornais – com menções honrosas para o Savana de Fernando Lima e de Kok Nam e o Zambeze, que acho que é do Fernando Veloso [sem mencionar nomes. ele tinha uma cópia do Savana deste fim de semana passado na mão com ele – que inveja…]

– Que o Sr. G fez bem em demarcar-se dum senhor que era barão da droga e dono dum shopping mas que devia parar a ostentação da riqueza entre os ricos e os poderosos em Moçambique [depois disse qualquer coisa sobre um Jaguar da filha do presidente que não percebi]

– que ele achava que os tops moçambicanos pareciam que estavam a tentar copiar o modelo angolano de desenvolvimento/enriquecimento [não percebi] das elites, mas que não funcionava pois Moçambique é pobre e que portanto não havia massa crítica para fazer as negociatas que os generais angolanos fazem.

E no fim da sua intervenção, o já habitual “ah que saudades de quando o meu pai foi governador-geral naquele aninho e meio”, que foi o melhor período da sua vida, etc e tal.

Isto foi o que ele disse.

Estatutariamente, aqui não se faz análise política.

Mas o que o Professor disse fez-me pensar.

Hum.

É que a semana passada ele estava em Maputo e disse basicamente pouco ou nada e foi só mel e rosas sobre Moçambique. Livros moçambicanos, ah a boa gente, conversinha de alcova com o Mia. Chit chat.

Chegado a Lisboa uma semana depois, e diz o que disse (mais ou menos) acima. Com uma cópia do Savana na mão.

Post Criptum

O que eu vi, menos a parte final que referi e que não está aqui, pode ser vista premindo AQUI.

15/10/2010

MOÇAMBIQUE, PORTUGAL E A GUERRA ANGLO-BOER DE 1899-1902

Uma família boer rural, cerca de 1886

por ABM (15 de Outubro de 2010)

Numa Pesquisa que fiz a semana passada e relacionada com a Rua de Bagamoyo (preteritamente conhecida como Rua Araújo), descortinei alguns dados dispersos que compilei para a nota que se segue. Alguns factos são mais conhecidos que outros, mas pode ser que a compilação faça leitura interessante.

Além disso, é sexta-feira – e fim de semana!

A Guerra Anglo-Boer de 1899-1902

A grande guerra Anglo-Boer de 1899-1902 foi um conflito titânico, estranho, sinistro, opondo o vasto poderio do império britânico, então no seu pico, e duas minúsculas repúblicas “brancas” fundadas na distância possível da então britânica Colónia do Cabo, mas situadas mais ou menos do outro lado da então recentemente delimitada fronteira moçambicana (que corresponde aproximadamente às delimitações actualmente em vigor entre Moçambique e a África do Sul).

Na fronteira acabada de delimitar entre Moçambique e a República Sul-Africana (boer), cerca de 1891. Na imagem, os senhores em primeiro plano são uma delegação de Gungunhana. Os elementos da nação-estado moderna, importados da Europa, em estranha coexistência com a tradição imemorial africana.

No pico do conflito, que na altura seria, em termos mediáticos o equivalente nestes dias do que os Estados Unidos andam a fazer na região do Iraque-Irão-Afganistão desde há meia dúzia de anos, a Grã-Bretanha tinha no terreno na África do Sul cerca de quinhentos mil homens em armas.

Contra quem? Se se partir do princípio que as populações negras no Sul de África eram basicamente ignoradas e não participavam no processo político (em termos militares, desempenharam um papel importante de suporte e de retaguarda, principalmente em relação aos britânicos, que mesmo assim para eles eram considerados apenas ligeiramente menos piores que os boers), as duas repúblicas boer, o Estado Livre de Orange (território que creio hoje mantém o nome e estutura territorial) e a República Sul-Africana (durante muitos anos conhecida como Transvaal e após o arranjo de 1994 foi reorganizada para o que hoje são as províncias de Mpumalanga e Gauteng), tinham, se muito, entre homens mulheres e crianças, cem mil pessoas a viver lá.

Mesmo em língua portuguesa, existem fantásticas histórias e análises sobre quase todos os aspectos deste que certamente foi um conflito acompanhado atentamente pela imprensa a nível mundial. E sobre as suas causas.

Curiosamente, depreende-se facilmente que os relatórios de imprensa e a opinião pública naquela altura dividiam-se claramente entre os paradigmas do apoio imperial pela visão da Pax Britannica, e o apoio pela legitimidade e irredetutibilidade do combate dos boers.

A todos os títulos, à partida era um verdadeiro desafio entre um David e um Golias.

Na minha humilde opinião, na base de tudo, estavam apenas alguns, simples, factores:

1. no território do Transvaal encontraram-se os maiores depósitos de ouro que o mundo jamais viram (num canto do Estado Livre de Orange situava-se Kimberley, um dos maiores depósitos de diamantes até então encontrados, achado que esteve na base da fortuna de Cecil Rhodes e a génese da empresa De Beers);

2. a herança da visão imperial de Cecil Rhodes, um dos mais célebres colonialistas britânicos, perante a qual, tal como acontecera com Portugal anos antes ao ser corrido do que é hoje o Zimbabué, a soberania boer era simplesmente inaceitável em última instância.

E

3. um ódio declarado e visceral dos boers em relação aos britânicos, que simplesmente não os deixavam viver em paz e sossego.

Já em 1880-1881 os boers, que eram essencialmente agricultores (é que que quer dizer boer em português- a palavra diz-se “búer”) e que quarenta anos antes haviam formado as repúblicas para escapar ao jugo inglês mais a Sul na Colónia do Cabo (onde mesmo assim permaneceu durante muitos uma maioria boer que as apoiava moral e materialmente), tiveram um primeira guerra para reafirmar a sua independência em relação ao império britânico.

Guerra que foi seguida por mais incidentes, de que se destaca o fiasco do Raid de Starr Jameson em Joanesburgo em uns anos mais tarde, incidente da quase total responsabilidade de Cecil Rhodes e das suas relações (Jameson era um grande amigo seu e basicamente agia às suas ordens. Rhodes na altura era nada menos que o homem mais rico do Império britânico e o primeiro ministro da Colónia do Cabo).

Cecil John Rhodes, o arquitecto da "grande África do Sul". Odiado por Paul Kruger. Está sepultado nas colinas de Mattopos, no Zimbabué de Robert Mugabe.

A guerra de 1899-1902 foi de uma tal violência que é difícil de imaginar estes dias. Para contrariar alguns revezes iniciais, os britânicos enviaram para a zona do conflito todo o seu poderio e ainda o famigerado Lord Kitchener, já então célebre pela forma sanguinária como resolvera uma rebelião no Sudão uns anos antes (basicamente pela exterminação em massa).

Entre outras inovações, Kitchener operacionalizou um elaborado sistema de fortificações vigiadas com centenas de quilómetros de comprimento, para literalmente imobilizar e caçar os rebeldes boer, que desde cedo passaram a fazer uma guerra de guerilha (termo cunhado, e forma de acção militar primeiro inventada, nas guerras napoleónicas em Portugal e Espanha).

Kitchener implementou ainda um sistema de campos de concentração, onde colocou e basicamente torturou e matou milhares de mulheres e crianças boer, esta no fim do dia a razão porque os rebeldes acabaram por se render.

Exemplo da política de terra queimada seguida pelo exército britânico

Para além dos campos de concentração para mulheres e crianças dentro do que é hoje a África do Sul, Kitchener mandou fisicamente exilar de África os prisioneiros de guerra boer para campos de concentração localizados na Índia, no Sri Lanka, nas Bermudas e na Ilha de Santa Helena, a mesma onde Napoleão morreu exilado em 1821.

Procedeu ainda a executar uma implacável política de terra queimada nas repúblicas invadidas, em que destruiu com dinamite e fogo praticamente todas as casas, quintas, árvores, utensílios, poços, estradas, animais e colheitas dos boers. Vilas inteiras consideradas sem valor estratégico foram completamente arrasadas.

Lord Kitchener. Se fosse hoje estava preso em Haia. Naquela altura, foi um herói do Império britânico.

Desde o início que os boers estavam incomparavelmente mal armados, sendo uma das curiosidades da guerra que usavam uma espingarda de tiro único chamada Guedes, que fora desenhada por um militar português e encomendadas numa fábrica algures na Europa. Mas, por alguma razão, no fim os portugueses cancelaram a encomenda e o Transvaal comprou-as baratinho (tinham o selo real do rei português D. Luiz, imagine-se). Eficaz na guerrilha, mas nessa altura o exército britânico dispunha já de novas gerações da sinistra metralhadora Vickers-Maxim, cujo efeito era absolutamente devastador. Nos últimos dezoito meses da guerra, os boers combateram quase exclusivamente com armas que tomavam do soldados britânicos que combatiam.

Imagem do que então chamavam Comandos boer, com as suas espingardas de tiro único, excelentes para a guerra de guerrilha, algumas concebidas pelo militar português Guedes.

Para ambos os lados do conflito, o número de mortos em combate nesses quase três anos aproximou-se dos vinte mil, ou seja, perto do dobro do número total de militares portugueses mortos em 13 anos das chamadas guerras coloniais em três frentes de batalha africanas entre 1961 e 1974.

Mas o número de mortos por doença e tortura e péssimas condições foi muitíssimo mais elevado. No cômputo final, as repúblicas boer foram quase completamente destruídas e cerca de um terço de toda a população boer (civis e “militares”) pereceu nesses trinta meses de conflito.

Um terço do total da população boer morreu em dois anos e meio de conflito.

A guerra terminou com um tratado de paz que foi assinado no fim de Maio de 1902, e a inclusão das antigas repúblicas boer no que se tornou mais tarde a União Sul-Africana. Alguns boers voltaram às suas casas destruídas e tentaram refazer as suas vidas, agora como desconsolados súbditos da coroa britânica.

Com o tempo e grande habilidade, os líderes boer voltaram à cena nacional, mas isso é outra história.

Um jovem Winston Churchill fugiu do cativeiro boer através de Lourenço Marques, de onde foi para Durban, onde foi recebido como um herói. A saga foi importante para a sua carreira futura como político e estadista.

Durante todo este tempo, do outro lado da fronteira Leste e do Protectorado da Suazilândia, estavam Moçambique, Lourenço Marques, alguns portugueses e a linha de caminho de ferro que ligava a já de facto capital moçambicana à capital boer, Pretória.

O Ouro de Kruger

Alguns dos mais velhos poderão recordar-se que, em Moçambique, até aos anos 50 do século passado, falava-se no ouro de Kruger (o carismático e enigmático presidente do Transvaal.

A lenda – há até pelo menos um livro sobre ela, em português – refere que, nos últimos dias antes da ocupação de Pretória pelo exército britânico, que os boers, que dali fugiram para Leste na direcção de Lourenço Marques ao longo da linha de caminho de ferro, removeram dos cofres dos seus bancos e do tesouro nacional uma grande quantidade de ouro, que terão enterrado algures em volta da fronteira entre Moçambique e a África do Sul.

É tudo treta.

Na realidade, de acordo com as memórias do legendário líder boer Jan Smuts (em tempos era o nome dado ao aeroporto de Joanesburgo mas agora foi enfiado na gaveta pela nova África do Sul) essencialmente por causa de mau planeamento, apesar das medidas para evacuar a capital boer, uma grande quantidade de ouro permaneceu no Tesouro do Transvaal e no Banco Nacional em Pretória até ao dia 4 de Junho de 1900, o dia antes dos britânicos entrarem na capital boer (para onde, aliás, algum tempo depois a mãe do poeta Fernando Pessoa foi viver, e onde ficou até 1913).

Na manhã desse dia, apressadamente, Smuts mandou que o ouro fosse recolhido e depositado em caixas no cais da estação de caminhos de ferro de Pretória. Aí, foi colocado num comboio escoltado que ao meio dia partiu na direcção de Lourenço Marques, já sob o fogo de armas e canhões britânicos – o último comboio sob o controlo da república boer a deixar Pretória.

Exemplo dum comboio na África do Sul durante a guerra. Este estava nas mãos dos britânicos e estava assim protegido para defender o tambor com vapor sob pressão dos ataques dos boers.

Às duas horas da manhã do dia seguinte, 5 de Junho de 1900, o comboio parou na vila de Machadodorp, a meio caminho de Nelspruit (Mmmmmmbombélááá!) onde Paul Kruger, o ainda presidente boer, tinha então a sua base logística.

Uma parte do ouro foi usado logo ali para efectuar pagamentos. Segundo o diário de Meinbert Noome, um oficial boer, o resto – sessenta e duas caixas cheias de ouro – foram entregues em Lourenço Marques no dia 31 de Agosto de 1900, aos cuidados da firma alemã Wilken & Ackerman, que, em troca, creditou a conta do governo boer no estrangeiro com um crédito no contravalor, em libras, do metal que fora entregue – uma fortuna. Com este dinheiro, o que sobrou da autoridade republicana boer comprou mantimentos e apoiou muitos boers que tinham fugido da guerra.

Em Moçambique, os oficiais e administradores da antiga república boer do Transvaal instalaram-se no que fora o edifício do consulado norte-americano em Lourenço Marques e constituíram uma Proviant Commissie, que geria esses fundos e organizava e providenciava assistência aos exilados da guerra.

Uns dias depois, a 11 de Setembro de 1900, o próprio presidente Paul Kruger chegava a Lourenço Marques. Foi recebido por Gerard Pott, até então o cônsul do seu país em Lourenço Marques e também cônsul da Holanda. Após uma estadia de algumas semanas, partiu para a Europa num navio da marinha real holandesa enviado pela soberana holandesa, Guilhermina. Às oito da manhã de 24 de Setembro de 1900, o exército britânico ocupava Komatipoort, do outro lado de Ressano Garcia.

Formalmente, no entanto, a guerra ainda duraria outros oito meses.

Paul Kruger, o monumental presidente da República do Transvaal. Por ter permitido a criação de uma reserva natural na enorme língua de terra a nascente da sua república, na altura deram o seu nome ao futuro parque nacional.

E aqui chegamos à parte interessante.

De Lourenço Marques para….Peniche, Alcobaça e as Caldas da Raínha

No final de 1900, havia mais do que mil e quinhentos boers refugiados no lado português da fronteira, isto é, no Sul de Moçambique, e, desses, quase todos estavam em Lourenço Marques, empilhados uns em cima dos outros. Alguns, os mais doentes, ficaram na velha residência de Gerard Pott no centro da cidade (não confundir com os Pott Buildings, Era outra casa). Muitos morreram de doença e ferimentos na cidade.

No porto de Lourenço Marques, boers aguardam o momento para embarcar em navios para a Europa. Ao fundo pode-se ver a fachada da então fortaleza da cidade. No topo à esquerda fica o que hoje é a Praça 25 de Junho em Maputo - a antiga Praça 7 de Março.

Receosos que os boers se organizassem em território português e voltassem novamente a entrar no Transavaal e continuassem a guerra, os britânicos, que mais ou menos controlavam a cidade a partir da sua base no edifício do consulado britânico em Lourenço Marques (que ainda hoje é a embaixada daquele país ao pé da Rádio Moçambique) e segundo um relato do The New York Times datado de 7 de Março de 1901 e publicado na sua edição de 21 de Abril desse ano, baseados nas alegações de um jornalista de um dos jornais britânicos que estava então na cidade, de que os boers estariam a preparar uma contra-ofensiva a partir de território moçambicano, insistiram com as autoridades portuguesas para que os refugiados boers saissem da cidade imediatamente– mas não de volta para o Transvaal, onde ainda decorria a guerra.

Gravura da época de boers a discutir as notícias num quiosque de Lourenço Marques, durante a guerra.

Entre os refugiados encontravam-se centenas de militares boers, de que se destacava um tal General Pienaar, que estava acompanhado pela sua família (sobre ele, ver mais abaixo).

Em parte com a ajuda do dinheiro acumulado dos boers com a venda do ouro, uma solução foi encontrada.

Eles iriam para Portugal.

Em navios da marinha real portuguesa.

Os Boers em Portugal

Diz o relato do Sr. George van den Hurk:

Depois da captura britânica da linha de caminho de ferro Pretória-Komatipoort, um número considerável de Boers, alguns com as suas famílias, procuraram refúgio naquele que era, então, o território português neutro de Moçambique. Tratava-se de algo especialmente necessário para os homens que tinham sido rebeldes do Cabo, uma vez que eram frequentemente mortos pelos soldados britânicos após a sua captura. Chegou a constar que alguns deles tinham voltado a atravessar a fronteira em Lourenço Marques para combaterem os ingleses quando e como lhes conviesse. A Grã-Bretanha pressionou Portugal para lidar com esta ameaça; o resultado foi a transferência dos refugiados Boer para Portugal, onde ficaram alojados nos chamados campos abertos para prisioneiros de guerra e internados civis.


A edição do The New York Times de 14 de Março de 1901 reportava que, no dia anterior, em Portugal, estavam a ser feitos preparativos no porto de Lisboa, para acolher os refugiados boers que eram ali esperados dentro de dias.

Continua van den Hurk:

No dia 27 de Março de 1901, o General Pienaar, oito dos seus oficiais de campo e cerca de 650 soldados, chegaram a Lisboa no navio “Benguela”. Uma semana mais tarde chegava o “Zaire”, trazendo o Comandante H.P. Mostert, juntamente com três membros da sua família e um grupo de 56 mulheres e 172 crianças. [o remanescente, segundo o New York Times, dos refugiados boers em Lourenço Marques]. No dia seguinte, a corveta portuguesa “Afonso de Albuquerque” desembarcava mais dez Boers.

Ao todo, 1260 adultos e 173 crianças chegaram a Lisboa para detenção sob custódia.

(De notar que nas suas memórias da guerra, escritas num campo de prisioneiros na Ilha de Santa Helena pelo mais credível General Ben Viljoen, no capítulo 22 do seu livro, ele às tantas refere, ao relatar a retirada boer já na região entre Nelspruit e Ressano Garcia: um tal Pienaar, que se arrogou o título de general quando entrou em território português, fugiu pela fronteira com cerca de 800 homens. Contudo, estes homens foram desarmados e enviados para Lisboa. Claramente, Viljoen não estava tão impressionado com Pienaar como aparentemente estavam os portugueses. É preciso ainda referir que naquela altura o título de “general” era utilizado com enorme liberalismo.

A corveta Afonso de Albuquerque, da marinha real portuguesa.

Talvez ainda resquícios do traumatizante Ultimato britânico de 11 de Janeiro de 1890, segundo o The New York Times de 1 de Abril de 1901, os boers foram recebidos à sua chegada a Lisboa por uma grande e jubilante multidão portuguesa, gritando ovações e tratando os refugiados como verdadeiros heróis, em quase total contraste com (continua o relato) a sobranceria com que foi tratada a delegação britânica liderada por Lord Carringto, que se deslocara a Lisboa na mesma altura para formalmente notificar o rei D. Carlos da morte da rainha Vitória e da sucessão ao trono pelo seu filho, o futuro Eduardo VII.

Filheto em língua portuguesa, alusivo aos boers. Este encontrei nos arquivos electrónicos do Pacheco Pereira. Se o exmo. Leitor quiser ler, prima duas vezes na imagem. Pelo que referem os poemas, percebe-se facilmente de que lado do conflito estavam os seus autores.

Diz ainda van den Hurk:

À sua chegada, foram alojados em Peniche, onde 380 homens foram acomodados num velho forte; em Alcobaça, 376 homens ficaram alojados num mosteiro e, nas Caldas da Rainha, 320 homens, mulheres e crianças foram realojados. As famílias que tinham outras possibilidades económicas tiveram a oportunidade de alugar casas na vizinhança. Adicionalmente, pequenos grupos ficaram em Abrantes, Tomar e S. Julião da Barra.

A todo o tempo era permitida a liberdade de movimento entre os campos, bem como a troca de alojamento, se desejado. Os Boers eram vistos como prisioneiros de guerra, mas não eram guardados, nem confinados aos seus campos, embora tivessem de se apresentar duas vezes por dia aos seus guardas.

O primeiro jogo de Râguebi em Portugal

Um curioso e curto trabalho (oito páginas) escrito por Floris van den Merwe sobre a prática do râguebi durante a guerra anglo-boer contém um curioso relato sobre os refugiados boers em Portugal. Cita do livro “Os Boers em Portugal”, escrito por Darius de Klerk (terá sido publicado em 1985, mas que não consegui encontrar) o seguinte, na sua página 38:

O futebol (referendo-se ao râguebi) era completamente desconhecido em Portugal nesses dias, pelo menos nas províncias. O público em Alcobaça gostava de ver os boers a jogar este novo tipo de jogo, mas as suas regras deixaram-nos confusos durante muito, muito tempo.

E na página 48 :

Quando os boers chegaram, o parque nas Caldas da Rainha era pouco mais que um terreno desolado, por isso em breve eles começaram a utilizá-lo para jogar algum tipo de jogo com a bola. Naturalmente, os locais nunca tinham ouvido falar de râguebi nesses dias.

Após a assinatura do tratado que findou a guerra em 31 de Maio de 1902, os prisioneiros e refugiados boers foram autorizados pelos britânicos a regressar à sua terra natal., tendo tal ocorrido durante o verão, até final de Agosto de 1902.

O London Times de 21 de Julho de 1902 reportou que no dia 19 de Julho, após se reunirem em Lisboa, vindos dos vários pontos de acolhimento, cerca de 900 boers, embarcaram no navio Bavarian, que saíu em direcção à Cidade do Cabo cerca das 18 horas.

No verão de 1902, o Bavarian, no fotografia acima, levou a maioria dos refugiados boers de Portugal para a Cidade do Cabo.

Ainda hoje, no cemitério de St. George, em Lisboa, existe um pequeno monumento, inaugurado em 1913, em memória dos refugiados boers que morreram em Portugal durante esse período de exílio português.

Uma rara fotografia, com data de 1901, da "Escola dos Refugiados Boers das Caldas da Rainha". Foto dos Arquivos Nacionais da Holanda. Para ver a foto com maior tamanho, prima com o rato na fotografia e depois outra vez.

08/10/2010

DEUS, O NEGÓCIO E O PECADO NA RUA ARAÚJO EM LOURENÇO MARQUES

A Rua Araújo em dia de sol, anos 1890

por ABM (8 de Outubro de 2010)

Quis divertir-me um pouco hoje.

Vamos lá.

AGRADECIMENTOS

Esta nota é dedicada ao Nuno Quadros, que involuntariamente foi o seu agent provocateur ao mandar-me uma mensagem a dizer que S.Exa. o Aga Khan tinha inaugurado um dos casinos que operaram na Rua Araújo (acho que não, Nuno) e à Sra D. Suzette Malosso que, na plenitude dos seus 82 anos de idade, tendo crescido na cidade aqui focada, lembra-se de coisas que eu não sabia sequer terem existido e que teve a pachorra de aturar os meus interrogatórios.

INTRODUÇÃO

Creio -dizem-me- que uma das expressões enfáticas e mais badaladas da protagonizada ética limpa do então novo regime que se instalou em Moçambique com a retirada da administração portuguesa da governação do país em 1975, foi, literalmente, o encerramento dos estabelecimentos na Rua do Bagamoyo em Maputo (então Rua Araújo em LM, terminologia que se usa doravante, pois o relato situa-se nessa era) e a proibição da sua vida boémia, tida como imoral, decadente, capitalista e exploradora, entre outras coisas, dos corpos e vulnerabilidades das mulheres moçambicanas.

A agenda dos líderes guerrilheiros da Frelimo recentemente chegados à capital, aparentemente horrorizados com os seus decadentes hábitos e costumes, foi, claramente, de dar um sinal das coisas para vir e da Nova Ordem, congeminada lá no meio do mato, em Nachingwea. Aquilo que viam em Lourenço Marques era o colonialismo. e o colonialismo acabara. A prole, emocionada, estúpida e oportunista, aplaudiu logo o gesto de eliminação da prostituição e da vida boémia – e já agora de tudo o resto mais que viesse à cabeça dos Libertadores.

Libertadores para quem, mais do que a Independência, que já era obra, consideravam a Revolução para Criar o Novo Homem Moçambicano o objectivo mais sério, e para quem o exemplo predilecto da pura vivência revolucionária – um pouco como Eça ironiza quando em A Cidade e as Serras “obriga” um rico parisiense a gostar de viver na parca rispidez serrana portuguesa – era aquela vida porreiraça e espartana que tinham andado eles próprios a viver lá no mato no Norte.

A solução clara era simples: o povo genuíno vem do mato, a gente não controla bem as cidades, que estão cheias de colonos brancos que ainda por cima pensam que ainda mandam alguma coisa e que são um veneno e um empecilho à Revolução Moçambicana. Portanto vamos colocar esta gente toda na ordem, mostrar-lhes quem manda aqui e correr com o maior número possível deles, preferencialmente de forma a que o que eles pensam que é deles (mas que é nosso) fique atrás.  E acabar já com os reaccionários vícios deles.

Não demorou muito (basta perguntar a quem passou por esta altura e que especialmente é white ou quase) e as cadeias estavam cheias de gente que foi repetidamente presa durante dias e dias porque atravessou a rua na hora errada, porque não bateu uma continência que não sabia que tinha que fazer, que não parou o carro a tempo quando a banda lá no palácio se lembrou de tocar o novo hino, que se esqueceu do bilhete de identidade naquela noite em que foi ao cinema com os amigos.

E isto era só para os que não tinham feito nada.

Mas na altura a Rua Araújo foi muito mais falada porque era uma medida muito mais visível, mais colectiva e mais ostensiva. O simbolismo era inescapável, e deliberado.

As alegadas putas e os seus alegados proxenetas foram mandados para a reabilitação e a rua (o tal de Araújo que dava o nome à rua foi o primeiro Governador do Presídio de Lourenço Marques, nomeado em 1781) mudou mais uma vez de nome, desta vez para um dos locais sacros da Gloriosa Guerrilha lá longe na Tanzânia: Bagamoyo, a escola para a formação do Novo Homem Moçambicano, cortesia da Frente de Libertação de Moçambique e, durante algum tempo, de Janet Mondlane.

Mas que apropriado.

O encerramento (na altura rotulado como “limpeza”, referido numa edição de Abril de 1975 na outrora Pacatamente Burguesa mas agora Raivosamente Revolucionária revista Tempo – e em que Ricardo Rangel era sócio) coincidiu com a Independência, felizmente para Victor Crespo, o memorável almirante e o último (e único) Alto Comissário em Moçambique, que representou o novo regime português pós-golpe de Estado em 1974 antes de formalizar a entrega do poder aos líderes da guerrilha na data por eles escolhida. Pois refere quem viu,  que o Almirante passava mais tempo no Dancing Aquário na Rua Araújo a beber whiskies e a discutir as colorações epidérmicas das senhoras que lá dançavam, que no seu escritório a fingir que presidia às formalidades da governação e que defendia os interesses do seu país (em boa verdade, parece que na altura ninguém sabia quais eram esses interesses e mesmo assim por essa altura a Frelimo estava-se a marimbar para o que quer que fosse que ele dissesse, que mesmo assim foi nada).

E esse acto apenas foi um começo. No início de Novembro de 1975, numa operação de grande envergadura e que durou dois dias e incluiu três cidades, as forças da Frelimo, de AK47s em riste apontadas contra uma população urbana basicamente inocente e completamente indefesa, pura e simplesmente prenderam cerca de três mil pessoas, que consideraram suspeitas de estarem envolvidas com drogas, prostituição, roubo ou vadiagem. Pois.

Era o legalismo revolucionário, conferido e legitimado pelo Povo.

Na altura da Indepedência eu não soube de nada destas tricas da Frelimo com a Rua Araújo nem do terror dirigido aos “colonos” (ou será que era payback time?), pois estava mais ou menos tranquilamente a estudar a oito mil quilómetros de distância, em Coimbra, onde o mais que havia de aguerrido eram os desenhos dos gigantescos seios das caricaturas do José Vilhena. Um pouco como em Moçambique, a pornografia via-se era na vida política, todos os dias, nos noticiários politizados da Érretêpê.

Dez anos depois de eu ter deixado de residir em Maputo e nove anos depois da Independência, em plena era do Repolho e do Carapau, visitei a cidade, que me pareceu deserta, abandonada e parada no tempo, as pessoas com terror sequer de pensar alto, com medo de lhes ser apontado o dedo por alguém ligado à Nomenclatura. Mas não se sentia qualquer fervor revolucionário. Apenas cansaço, conformidade e um perpétuo esforço de meter alguma coisa no prato. Pois não havia quase nada. Mas ainda assim foi-me discretamente servida uma lista das Grandes Mudanças (para além da de praticamente toda a gente que eu conhecia não estar lá, claro). E o desmantelamento da Rua Araújo estava nos top dez, o que eu achava curioso, até estranho, pois apercebi-me que isso indiciava o simbolismo, na cabeça de muita gente, que aquilo acarretava, antes e depois da Independência.

Se bem que antes da Independência aquilo não era de forma alguma “a” referência nem tinha o relevo que se possa querer dar-lhe. Era apenas mais um dos locais exóticos, quiçá um pouco mais sórdido, da cidade. Eu hoje tenho 50 anos de idade, e nos passeios a pé higiénicos da família BM aos sábados à noite depois do ocasional jantar chinês no Restaurante Hong Kong, lá pelos fins dos anos 60, princípios dos anos 70, devia eu ter uns dez anos de idade, lembro-me muito vagamente do que aquilo parecia, pelo menos a parte da Rua Araújo para quem vem da Praça onde fica a estação dos Caminhos de Ferro: que tinha muitos bares porta sim porta sim, muita gente, muita música aos berros, montanhas de luzes e coloridos anúncios de néon a acender e a apagar, à porta de uns bares e dancings umas fotografias dumas meninas de coro (brancas) muito pintadas com umas coisinhas penduradas nas pontas das maminhas expostas e um ambiente mais ou menos aguerrido.

Nos dias que correm, isto é troco para bebés.

A Rua Araújo nos anos 60, de dia. À noite parecia Las Vegas junto do Índico.

Uns anos depois, a primeira referência que eu vi sobre a antiga Rua Araújo foi na forma de umas fotografias que o saudoso e agora exaltado Ricardo Rangel (que se dava muito bem com o meu pai) publicou e que tirou nessa altura, e que correspondem vagamente ao que eu vira e mais ou menos imaginava ser a Rua Araújo, claro que sem aquela carga ideológica-sociológica-pós-colonial que se sente agora, e que, despida de contexto, dava uma aura quase lunática àquele fenómeno da velha Lourenço Marques.

Casal fotografado por Rangel na Rua Araújo - o sórdido passou a ser arte

Uns anos mais tarde, já no fim dos anos 90, quando a Nomenclatura freliminana  relaxou involuntariamente os costumes públicos e, sem qualquer veio condutor, a capital moçambicana descambou quase completamente para um free for all em termos dos seus hábitos mais prúridos. Alguns decerto se lembram das legiões de jovens serpentes nas esquinas do Polana e da Sommerschield (a baixa era uma cidade fantasma à noite) depois da hora do jantar e todos os passeios em redor da discoteca do Sheik completamente tomada pelos possantes 4×4 da nova classe de “empresários de sucesso” e suas sumptuosas, esculturais acompanhantes.

(Elas eram chamadas serpentes porque quando a gente passava por elas no carro elas faziam assim: “pssssssssssst, psssssssst”)

Houve então muito boa gente na cidade que pensou, e disse, que se calhar fazia mais sentido trazer de volta a velha Rua Araújo e meter isso tudo ali. Mas as coisas não são assim tão fáceis de fazer. Hoje em dia, não estou lá muito dentro dos detalhes do negócio do prazer e do entretenimento maputiano, mas acredito que ainda há muito, muito por fazer.

A verdade sobre a Rua Araújo é muito mais profunda.

E, na minha opinião, se calhar não há rua que mais e melhor espelhe a História desta cidade que hoje é Maputo.

De facto, houve uma lógica muito clara no aparecimento do negócio por que a Rua Araújo se tornou quase mítica. Para a entender, tem que se recuar até ao fim do século XIX e entender o que se passava na região.

Se o exmo Leitor tiver a paciência, acompanhe-me nesta aventura.

A CIDADE APARECE

Apesar da apetência britânica pela baía defronte de Maputo, sucessivamente combatida pelos portugueses com a ajuda do Duque de Magenta (hoje mais conhecido como 2M), o flanco sul da então frágil, precária, indefinida colónia portuguesa, estava praticamente abandonado aos seus habitantes, que faziam mais ou menos o que sempre fizeram, os portugueses tendo o ocasional problema com os ingleses, que se alternavam com os Boers a tomar conta do que é hoje a Suazilândia, e os boers do Transvaal, que também gostariam de ficar com a parte Sul do actual Moçambique.

O momento verdadeiramente fundacional para a cidade – e de tal forma que em meros vinte anos o epicentro de todo o Moçambique se deslocou dois mil quilómetros do eixo Ilha de Moçambique-Nampula para a Baía de Lourenço Marques, ao ponto de a elegante e centenária capital ter sido descartada para os pântanos em redor da Ponta Vermelha – foi o conhecimento pelo mundo da descoberta de ouro no Rand, uns campos situados a Norte da pacatíssima capital boer do Transvaal (nome formal: República Meridional Sul-Africana), Pretória.

Tirando as negociatas do Albasini, pouco fluía entre o interior e a costa.

A "cidade" original não era uma cidade: era uma ilha. A uma distância regulamentar do Presídio, fez-se um aldeamento precário. Na parte baixa desse aldeamento vê-se a Rua dos Mercadores - a original rua de Maputo - mais tarde a Rua Araújo

Assim, quase subitamente, em 1874, na pequena língua de terra situada a Poente de onde Joaquim Araújo se lembrou de mandar edificar o lastimável Presídio de Lourenço Marques, centenas de pesquisadores e aventureiros americanos e australianos ali desembarcaram ao mesmo tempo para se dirigirem para o interior, enquanto que, do Transvaal, centenas de boers faziam a caminhada no sentido contrário, para vir buscar mercadorias e mantimentos aos navios. Nesse ambiente de “fronteira” completamente desregulado, de negócios, bebida e prazer, logo se esboçou um – o primeiro- o primeiro de todos – arruamento onde essas actividades se desenvolveram:

A Rua Araújo.

Que na altura, à boa antiga portuguesa, não tinha nome de gente, mas um nome que traduzia a sua utilidade: o de Rua dos Mercadores. Era um assentamento precário, com casas feitas de madeira, suficientemente sólidas para se poder lá dentro guardar, comprar e vender tudo e em que o português era provavelmente a terceira ou quarta língua mais falada.

Um ano depois, ao fim da tarde do dia 12 de Setembro de 1875, um violento incêndio consumiu tudo o que havia entre a actual estação dos caminhos de ferro e a sede o Banco de Moçambique (dantes o BNU). Para evitar situações semelhantes,o então governador português, um tal de Augusto Castilho, mandou que as casas passassem a ser feitas com materiais mais duráveis: argamassa, tijolo, adobo, telha, zinco. E logo a seguir veio o Major Joaquim José Machado e a sua equipa, que esboçou o plano director do actual centro da cidade. São essas as casas que os postais mais antigos de Lourenço Marques hoje mostram.

A Travessa da Palmeira (hoje fica entre a sede do BIM e a Nova Mesquita). Após o incêndio de 1875, as casas passaram a ser feitas de alvernaria, tijolo e telha.

Com as notícias da descoberta de ouro em Magaliesberg e em Barbeton, a pressão de ligar a Baía ao interior sul-africano britânico e boer foi quase insustentável. Logo se abriu a que ficou conhecida como a Estrada de Lindenbugo (que começava no fim da actual Av. 24 de Julho, a seguir a um enorme quartel que acho que ainda lá está). Lindenburgo (se é que ainda tem esse nome) fica situada a meio caminho entre Maputo e Pretória. Naquela altura Nelspruit (Mmmmmbombélááá!) basicamente não existia e seria assim até o comboio passar por lá anos mais tarde.

As coisas encaminhavam-se, perante o ar atónito dos Rongas, que ali viviam em redor, e que assistiam certamente preocupados com o reboliço enquanto que por sua vez iam fazendo as suas negociatas e de vez em quando umas razias para saquear.

A Rua Araújo, quando em Lourenço Marques se vivia um ambiente de fronteira

Mais um aspecto da Rua Araújo no fim do séc. XIX

Os momentos-chave seguintes foram a inauguração da linha de caminho de ferro para Pretória (1895), logo a seguir a abertura do porto marítimo da cidade, culminando com o desencadear da Guerra Anglo-Boer (1899-1902), um complicado imbróglio militar e político, que trouxeram muita, muita gente à cidade e montanhas de negócio. Nessa altura, Lourenço Marques (ou a sua designação inglesa, Delagoa Bay) estava nas primeiras páginas dos grandes jornais de todo o mundo, a Baía bloqueada pela poderosa marinha britânica (foi ali usado pela primeira vez no mundo o telégrafo sem fios para a coordenação de operações militares-navais. Enfim, vale o que vale).

A linha de caminho de ferro abriu em 1895. O edifício da estação chegou mais do que dez anos depois. Directamente em frente, ficava a Rua Araújo, e à direita o porto marítimo.

E o que é que, fisicamente, estava precisamente no meio disto tudo?

A Rua Araújo.

De facto, a Era de Ouro da Rua Araújo não foi nos anos 50, 60 e até 1975.

Pelo contrário, foi nas quatro décadas anteriores.

OS DIAS DE OURO

Capa dum folheto publicitário em inglês, sobre Lourenço Marques, anos 20.

Estabilizada a guerra e colonizado o Transvaal pela Grã-Bretanha (cujo consulado em LM, desde que abriu sempre esteve no mesmo local onde hoje se encontra a actual embaixada em Maputo), o negócio aumentou sempre e cada vez mais, tendo Lourenço Marques, que entretanto foi praticamente comprada e desenvolvida com capitais ingleses, sul-africanos e boers através de companhias, lá a partir dos anos 20, criado e desenvolvido um negócio novo, complementar, e extremamente rentável, para além do import/export e do álcóol: o negócio do lazer e do prazer para os brancos sul-africanos.

Dia de "São Navio" em Lourenço Marques. A cidade toda acorria ao Cais para assistir ao espectáculo, e cuscar quem chegava e quem partia. Era um evento. Depois ia tudo beber um copo para a Praça 7 de Março.

De facto, a cidade tinha várias valências nesse sentido. Para além de ser organizada, limpa, e bonita, tinha um clima aprazível, ficava junto ao mar, tinha acessibilidades (barco, comboio, estrada, telégrafo para o mundo exterior), boas instalações, boa comida, instalações desportivas e tinha o exotismo informal cultural luso-africano que nem se sonhava existir na África do Sul.

O antigo campo de golfe da Polana. Situava-se imeditamente a seguir ao actual Hotel Polana e estendia-se até à actual embaixada americana e entrava um pouco para dentro da actual Sommerschield.

A entrada do Pavilhão de Chá, junto à antiga praia da Polana e a 150 metros a Norte do actual Clube Naval de Maputo

O bar da Estação de caminho de ferro de Lourenço Marques estava ao nível do que de melhor havia no mundo na altura

Lourenço Marques, com as suas praias, o Pavilhão de Chá, os seus vários hóteis, quiosques, clubs e restaurantes, alegremente acolhia esse negócio, nos anos 20, 30 e princípios dos anos 40.

O cais da estação de caminho de ferro de Lourenço Marques

Nessa altura, para além dos navios, que traziam centenas de marujos, passageiros e homens de negócios à cidade, vinham diariamente comboios de Joanesburgo e de Pretória, cheios de carga e gente, na busca de repouso ou de prazer, ou para apanhar um barco para a Europa, ou regressar à África do Sul.

E, para além de bowling, golfe, a caça, a pesca e o ténis, Lourenço Marques tinha bebidas à descrição, jogo e prostituição, práticas estas proibidas e reprimidas pelos estóicos britânicos e ainda mais pelos puritanos boers. Em Lourenço Marques, para além de vinho, whisky, camarões e cerveja à descrição (incluindo aos domingos e feriados religiosos) até fados e touradas havia,  perante o espanto dos visitantes. E cinema, e excelente ópera italiana, esta no resplandecente Varietá, que ficava do outro extremo da Rua Araújo, junto à Praça Sete de Março (hoje 25 de Junho, o dia da Independência em 1975), a sala de estar da cidade – com chás e delicados bolos de pastelaria servidos às cinco horas da tarde, enquanto música tocada no seu coreto por bandas contratadas, quase todos os dias.

Antes do Polana abrir, o Carlton era o hotel de escolha em Lourenço Marques. Ficava situado a meio da Rua Araújo. Mesmo depois de abrir, durante muito tempo o Polana era considerado fora do caminho.

Cedo a cidade se tornou ponto de visita obrigatório para os milionários e as classes mais abastadas de Joanesburgo e de Pretória, que para ali se dirigiam em conforto exuberante no Blue Train, um comboio de luxo que parava semanalmente na estação de Lourenço Marques.

Que ficava a cem metros da Rua Araújo.

Para além dos navios de passageiros que atracavam todas as semanas no porto, mesmo ao lado.

As touradas e as pegadas de touros eram uma atracção turística única em África.

A meio da Rua Araújo, do lado direito, cedo abriu o Casino Belo, mais exclusivo, e mais abaixo o Casino Costa, os únicos casinos no Sul de África. O Casino Belo (no edifício mais tarde funcionou o conhecido Dancing Aquário, para quem se lembra) era uma luxuosa máquina de fazer dinheiro. Estava aberto toda a noite, sete dias por semana. Tinha uma grande orquestra (o chefe de orquestra do Casino Belo durante dez anos chamava-se Jorge Vara e era o pai da D. Suzette, por isso é que eu sei isto tudo) tocava diariamente, sete dias por semana, das 9 da noite até às 4 da manhã, com um intervalo de meia-hora.

Aspecto da sala de jogo do Casino Belo na Rua Araújo, em Lourenço Marques. Lá dentro, era obrigatório o uso de fato ou smoking e vestido comprido para as senhoras.

Ali encontravam-se as famosas e as originais Taxi Girls de Lourenço Marques(não são as que mais tarde se chamavam pelo mesmo nome, e que basicamente eram prostitutas). Estas eram jovens sul-africanas desesperadamente belas, vestidas de rigor com vestidos compridos, todas as noites, e como referi não eram prostitutas (o que não significa que não dessem uma volta com quem lhes apetecesse). O que elas faziam era que à noite conversavam com os clientes, entretiam-nos e bebiam um copito ou outro. E qualquer homem podia comprar uma “fita” de bilhetes por dois e quinhentos cada bilhete, e por cada bilhete a menina dançaria com ele uma música. No fim quase todas elas acabaram por casar com portugueses de sucesso na cidade e hoje fazem parte do DNA dos descendentes de quem lá viveu (imagino que estrategicamente omitindo os detalhes da sua procedência).

Curiosamente, naquela altura as crianças podiam entrar no Casino, que tinha também umas limousines com motoristas fardados para levarem os clientes e seus convidados para os hotéis ou de volta para o Blue Train.

O Varietá, na altura creio que a segunda Casa de Ópera em toda a África excepto o Cairo, situado na Rua Araújo, no local onde hoje se situam o Cinema Matchedge e o Estúdio 222.

Nesses tempos, ganharam-se e perderam-se verdadeiras fortunas nos casinos da Rua Araújo. Após uns dias de loucura na roleta e no bacharat, muitos dos visitantes mal tinham dinheiro para pagar o bilhete de comboio de volta para Joanesburgo e Pretória e houve um número considerável de suicídios, cometidos por gente que perdeu tudo o que tinha nas mesas de jogo.

Na Rua Araújo, o negócio da noite não era só para os ricos. Era socialmente vertical. Os bares, cabarets e salas de jogo da Rua anualmente atendiam milhares e milhares de marinheiros, viajantes, homens de negócios, etc, trazidos pelo movimento louco no porto e no caminho de ferro.

Curiosamente, quase todo o negócio era entre brancos – incluindo, malgré as suspeitas da Frelimo, a prostituição. Mas do lado esquerdo da Rua Araújo, houve mais tarde uma casa amarela, o Bar Pinguim, que era o único sítio na Rua Araújo onde havia, para além de prostitutas brancas, prostitutas negras e mulatas e cujo ambiente era puro caos estilo filmes do Texas. Nos anos 50 era um hangout favorito de, entre outros, o poeta Reinaldo Ferreira.

Durante esses anos, a autoridade policial, especializada e presente, mantinha a ordem, num misto de negligência latina e pauladas vigorosas. Alguns se recordarão dum agente de polícia alto e encorpado que vigiava a Rua Araújo, e que era legendário por resolver problemas de rua com uma saraivada de cacetadas, o que supostamente funcionava bem junto dos marujos e dos tropas mais alcoolizados.

Convenientemente situadas perto da Rua Araújo, havia grandes casas de prostituição, negócios legais, de porta aberta. As prostitutas eram praticamente todas brancas, a maioria francesas e sul-africanas. Refiro por exemplo uma luxuosa mansão que existia na rua a seguir à antiga Paiva Manso (não faço ideia qual é o nome da rua hoje) e que era a maior e considerada a melhor, gerida por uma senhora que era conhecida na cidade pela sua generosidade e que tinha vários filhos que se formaram todos na África do Sul.

Belo, proprietário do principal casino, era uma figura conhecida na cidade, riquíssimo, generoso, respeitado. O primeiro frigorífico eléctrico doméstico que houve em Moçambique foi ele que o instalou em sua casa. Teve três filhos, um deles o Ernesto, outro que foi gerente da Casa Coimbra (aquele prédio mesmo ao lado esquerdo do Banco de Moçambique na 25 de Setembro em Maputo) e um terceiro sobre o qual nada sei.

O FIM DE UMA ERA

O fim desta Era Dourada da Rua Araújo começou quando, lá muito longe, do outro lado do mundo, em Lisboa, o ditador Oliveira Salazar, tentando perpetuamente fintar os jogos de cadeira locais com as diferentes facções sociais (são sempre as mesmas: radicais vs católicos vs maçónicos vs monárquicos, a treta do costume), com a intervenção do seu antigo amigo e antigo colega de carteira, Manuel Gonçalves Cerejeira, então Cardeal de Lisboa e representante da Igreja Católica Apostólica Romana em Portugal, celebrou em 1940 (ano em que se celebrou também o tricentenário da reaquisição da independência portuguesa das mãos dos Hespanholes) um entendimento formal entre o Estado português e o Vaticano, a que se chamou Concordata.

Através desse documento, para todos os efeitos, a Igreja Católica encerrou um trágico capítulo aberto com o advento da I república e assumiu uma parceria com o Estado português que teve assinaláveis ramificações por todo o Império.

Em Lisboa, os três amigos: o Cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira, o Presidente do Conselho, Oliveira Salazar, e o seu Presidente, Óscar Carmona. Dos três, só Salazar nunca meteu os pés em Moçambique.

Talvez não seja coincidência que nessa altura, se começou a construir a actual Catedral de Maputo, que foi concluída em 1944, recorrendo os poderes locais para a sua construção essencialmente a trabalho escravo nativo, o que enfim, é mais uma pequena vergonha e uma expressão do tal colonialismo no seu pior (alguém devia meter lá uma placa na parede para que se soubesse e se lembrasse essa vergonha).

A expressão da Trilogia do Poder Imperial no centro de Lourenço Marques: o Estado (a Câmara Municipal), a Igreja (a Catedral) e o vulto de Mousinho. Em 75, Samora despachou Mousinho para um canto da "fortaleza" antes de rebaptizar o local de Praça Mousinho de Albuquerque para Praça da Independência. E de meter uma gigantesca fotografia sua na fachada. Mousinho out, Samora in.

Em Agosto de 1944, já a II Guerra Mundial estava a começar a chegar ao seu término, num navio Serpa Pinto obscenamente artilhado para acolher Sua Católica Eminência, o Cardeal Patriarca de Lisboa, Manuel Gonçalves Cerejeira, viaja para Moçambique e desembarca em Lourenço Marques para inaugurar com imperial pompa a nova catedral, que ficou situada mesmo ao lado do também novo e imponente edifício da Câmara Municipal de Lourenço Marques, talvez para simbolizar a nova parceria entre o Estado e a Igreja – algo que acontecia pela primeira vez em Moçambique, cujo pluralismo religioso era palpável.

O quarto de cama de Gonçalves Cerejeira no Serpa Pinto

A sala de jantar do Cardeal Cerejeira no Serpa Pinto

O Serpa Pinto até tinha uma espécie de "sala do trono" para o Cardeal Cerejeira. Isto hoje dava um filme.

Pouco depois, a prostituição e os jogos de casino foram ilegalizados e desmantelados em Lourenço Marques.

Na Rua Araújo, ficaram os bares, os dancings e o ocasional jogo ilegal. A prostituição passou para a clandestinidade.

O RESSURGIMENTO

Mas a Rua Araújo não morreu.

Pouco depois, no início dos anos 60, com a instauração do apartheid do Sr. Verwoerd na África do Sul e a preparação e o início do que veio a ser a guerra pela Independência, Lourenço Marques conheceu um período de enorme movimento de pessoas, de investimento e de crescimento. Muitos portugueses vieram viver e trabalhar para a cidade, o número de visitantes da África do Sul, que agora viajavam em carros particulares, cresceu significativamente, e os navios começaram a chegar da Metrópole cheios de jovens militares sózinhos, muitos desejosos de fazer uma escalada na Rua Araújo para beber uns copitos e talvez experimentar o deslumbre de uma experiênciazinha sexual, para depois se ocuparem da defesa do território. E o movimento de navios, aviões e comboios cresceu quase exponencialmente. A cidade fervilhava.

O mito das LM Prawns: acima, o Restaurante da Costa do Sol, nas mãos da família luso-greco-moçambicana Petrakakis desde 1938.

Os usos e os costumes entretanto liberalizaram-se, muito mais em Moçambique do que era a norma quer na Metrópole portuguesa, quer no ambiente severo de Calvinismo puritano imposto na África do Sul – apesar de, nas praias e nos cafés de Lourenço Marques, serem as bifas que deixavam os locais de boca aberta, as meninas locais manietadas pelos velhos costumes dos seus pais portugueses.

Ainda que com a Pide a mordiscar, o Regime nervoso e a guerra dois mil quilómetros ao Norte a desenvolver-se, o ambiente na cidade tornou-se muito mais sofisticado e multiracial, começaram a aparecer galerias de arte, surge toda uma geração de pintores e escultores portugueses e moçambicanos, brancos e negros e com temas africanos, lojas de moda, a Sociedade de Estudos, a Casa Amarela, os bikinis, a mini-saia, veio a revolução musical com o rock, vomitado 24 horas por dia, sete dias por semana pela LM Radio, a Estação 2 do Rádio Clube que era de longe a mais popular em todo o Sul de África. Do Rádio Clube veio também a  marrabenta e inaugurou-se também a primeira estação de FM stereo, com jazz e música clássica, em todo o território português.

Em termos de desporto, tudo havia e tudo se fazia tudo na cidade. Campos de futebol de básquet, piscinas, golfe, mini-golfe, hóquei, equitação, aviação, tiro, regatas, pesca, pesca submarina. Era uma obsessão. Em entre 50 e 60 surgem estrelas como Coluna, Velasco, Matateu, Eusébio, Lage, Mário Albuquerque, Fernando Adrião, Dulce Gouveia, Mussá Tembe e tantos outros. A lista não acaba.

Nos anos 60, o pai BM, à esquerda, treinava equipas de futebol em Lourenço Marques.

Por sua parte, a Rua Araújo acompanhava todo este ambiente à sua maneira, com mulheres, marijuana, misturada com cerveja, vinho, shows de striptease (alguém se lembra da famosa travesti Belinda?) e com verdadeiras sessões de pancadaria que inevitavelmente envolviam comandos, fuzileiros e a polícia de choque a correr atrás deles com cacetetes. Segundo o Eduardo Pitta, até havia um discreto underground gay e lésbico na Rua Araújo que a Maluda vagamente confirma. O Carlos Gil esteve lá nos seus tempos de teenager e no seu livro Xicuembo deu uns lamirés da fauna louca que aquilo era.

Como em toda a parte, dizem-me que havia prostituição para todas as cores, todos os gostos e todas as bolsas. Mas se calhar a Rua Araújo não era o ponto principal dessa actividade. quando muito era um ponto de começo.

O Hotel Central e o Dancing Aquário, um conhecido empório da Rua Araújo e ponto de paragem de Vítor Crespo.

Foi esta Rua Araújo que Ricardo Rangel conheceu e retratou nos anos 60. E que, em meados dos anos 70, ajudou a destruir na sua revista.

De certa maneira, para a velha rua, esse foi apenas mais um momento da sua vida.

Uma nova metamorfose do que fora.

Viva a futura amizade entre os povos da CPLP !

E com o tempo, essa imagem do que fora nos anos 60 e 70, congelou-se e tornou-se num cliché, e pior, no todo, excluindo os quase cem anos que o precederam. Até Licínio de Azevedo recorreu agora a ele para o seu recente filme “Margarida”.

O tal símbolismo que eu acho que, isoladamente, não teve.

EPÍLOGO

Hoje, a Rua Araújo – a Rua do Bagamoyo – sobrevive precariamente, um dinossauro da história da Cidade, o seu berço irreconhecido, maltratado, desrespeitado, ignorado pelos cidadãos da Cidade, aguardando por melhores dias, quando eventualmente haja outro ressurgimento da Baixa da Cidade e uma outra apreciação do seu rico passado.

Que forma terá esse ressurgimento, ninguém sabe.

Uf. Depois disto, vou jantar ao chinês ali na esquina.

Bom fim de semana.

07/10/2010

SOBRE A FORTALEZA DE MAPUTO

Postal turístico da Fortaleza de Maputo, anos 60

por ABM (7 de Outubro de 2010)

No dia 4 de Abril de 2009, o nosso Grande Senador escreveu neste repositório de informação totalmente grátis que é o Maschamba, uma nota intitulada Vasco da Gama, em que, tendo estado na cidade de Inhambane, basicamente resmungava por ver uma estátua meio pirosa mas perfeitamente utilizável do conhecido navegador português que veio por ali abaixo e subiu por ali acima a caminho das Índias, espetada na parte de trás de um edifício municipal local. Na sua histórica viagem, em 1497 Gama parou para uma aguada e uns petiscos em Inhambane, onde terá sido bem tratado, e seguiu caminho para Norte, à procura dos tão falados negócios da Índia.

No dia 10 desse mês, às páginas tantas, eu, que ainda não tinha o nobre estatuto de estar deste lado da paliçada, depois de ler o texto Senatorial e de resmungar qualquer coisa sobre isso dos monumentos históricos portugueses (que agora, quer se goste ou não, são moçambicanos, pois estão no local e fazem parte da sua história), a propósito do tema, escrevi o seguinte:

O que queria realçar é o seguinte: a que hoje chamam Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição em Maputo é basicamente uma fraude, uma espécie de castelo da Disneylândia feita durante a II Guerra Mundial pelos então patrões da cidade para os turistas sul-africanos que vinham a LM fazer uns negócios e dar umas voltas no Casino Belo (que ficava na Praça Mac Mahon (ou lá como se chama hoje) em frente à estação dos CFM e ir à praia.

O local corresponde mais ou menos ao sítio onde houve de facto uma miseranda paliçada de paus e barro na ponta da língua de terra onde estava a “fortaleza”. Não é bem o mesmo que as fortificações de Moçambique, Sofala, Tete, etc, que sim, foram feitas nos tempos das rotas da Índia (de que LM nunca fez parte). Mas, pronto, tem um ar “vintage” colonial e, mais importante, tinha um átrio porreiro para se pôr o cavalo do Mousinho a olhar para a cara do António Enes.

Estes tiques das elites no poder são perfeitamente entendíveis. No tempo dos faróes egípcios, quando havia um que tinha sido por alguma razão percepcionado como um grandessíssimo cabrão, o que vinha a seguir mandava apagar das inscrições de pedra a sua cara, o seu nome e descrições dos seus feitos. Supostamente, era como se não tivesse existido nunca. Quatro mil anos depois, estes “black holes” eram perfeitamente identificados e reconstruídos. É uma chatice, esta mania de uns quererem os factos, e outros quererem os factos que querem, uma espécie de história feita por encomenda.

Felizmente, daqui a duzentos anos ninguém em Moçambique se vai lembrar deste episodiozito e antecipo que, sem dor nem remorso, os moçambicanos de então recordarão com a indiferença que o tempo causa, e aproveitarão o tal património que resta (sendo o único que se me afigura como inapagável a velha Lourenço Marques) para atrair turistas e contar estórias coloridas. Para suprema irritação de alguns dos presentes, na velha língua dos portugueses.

O nosso Senador, como é costume e usando da sua poderosa e abundante verve sociológica, discordou logo e despachou-me socraticamente: “discordo que [a fortaleza de Maputo]seja uma “fraude” no sentido de dar uma autenticidade genética aos monumentos.”

Hã?

Dado que ontem tive que andar a correr nos meus ficheiros à procura dos postais da velha câmara Municipal de Lourenço Marques para outro texto, por acaso cruzei-me com umas fotografias da “fortaleza” e um magnífico texto creio que da pena do Sr. Pedro Nunes, num blogue chamado Moçambique Multimédia, (que copio desavergonhadamente e com vénia até ao chão)  e que creio que passam da opinião meramente verbal para algo um pouco mais condicente com o que eu referi há um ano e meio atrás.

Mas antes do que se segue um brevíssimo comentário: Moçambique tem uma grande história e da melhor e mais esplêndida arquitectura militar portuguesa em quase todo o mundo. Menciono aqui a da Ilha de Moçambique, e há mais algumas espalhadas por aí. Tudo do mais genuíno que há.

Bom para o turismo.

Então vamos lá. Refere o Sr. Pedro Nunes:

Em diagonal à velha Casa Amarela é a Fortaleza Nova do Presídio, reconstruída em 1940 sobre o alicerce da primitiva. Que aliás nunca existiu, capaz e completa em qualquer tempo.Entra-se, e é um pequeno museu de sugestivas antiguidades históricas.Artilharia velha na parada, armas e peças no quartel da entrada á direita, epígrafos e pedras de armas arrancadas ás fortalezas do Norte e postas nas paredes do quartel da esquerda, com restos dum arco e pilastras de Sofala (1506), relíquias de arte sacra noutra ala em que se guarda a primitiva imagem de Nossa Senhora da capela do Presídio ( que data de 1819), retratos, bustos, espadas e recordações de grandes figuras históricas noutra sala e na caserna em frente os restos da vida quotidiana de outros tempos.

Fora plantas, desenhos e fotografias de sítios e coisas antigas.Conjunto eloquênte, acima de tudo simbólico, a principiar na Fortaleza reconstruída no alicerce primitivo, com imaginação e estilo, e poderosamente sugestiva. A falta mais sensível será,além de não ser verdadeira, não ter agora o flanco sul metido ao rio, com água pelo rodapé da muralha enterrada funda na praia, mas isso é culpa antiga dos aterros do começo do século XX e das grandes obras que já haviam modificado e acrescentado a Fortaleza para a fazer Quartel de Caçadores, e depois Capitania dos Portos, com casas à frente e alcândoradas nos baluartes e nas cortinas. Qualquer semelhança que possa haver entre a fortaleza atual, bonita como um brinquedo, e a realidade histórica, é, pois, pura imaginação.Durantes décadas seguidas o problema máximo da terra foi sempre acabar-se a fortaleza, isto é, transformarem-se em alvenarias as barracas, as palhotas e a estacada, fazer-se ao menos de pedra vermelha barrada a cal, em amarelo ou branco, o segundo baluarte, com pequenas ameias abertas no murinho estreito.

Sede de todos os embrionários serviços públicos da povoação, a fortaleza velha, á medida que perdeu o valor militar por ter passado a defesa para a orla do Presídio, foi-se rodeando de “acrescentos” encostados ás muralhas aproveitadas para paredes, e, transformadas as casernas em quartos com alpendres, ninhadas de crianças a brincar pela extinta parada, arames de roupa estendida ao sol em toda a parte, parecia a irreconhecível fortaleza uma típica Ilha do Porto, a quem nem sequer faltava o ambiente castiço dos marítimos da capitania a gozar a folga, exibindo-se nas preguiçosas cadeiras de lona em calças velhas e camisola interior.A restituição foi ao menos um ato de justiça elementar, com as conjecturas possíveis.

Mas os portugueses ficaram, embora fossem morrendo, uns atrás dos outros, governadores, oficiais e soldados.Adaptava-se cada um como podia com os velhos instintos da “Lusotropicalidade”. A verdade é que a “Feitoria da Sociedade dos negociantes da Baía de Lourenço Marques”crescia em Delagoa – designação internacional que a terra tinha.E foi assim que a cidade principiou, com dezesseis pessoas apenas.Construiu-se o Armazém Real,com a cal conduzida, provavelmente, da barreira de conchas que existe na margem do Rio Matola..Eram negros, além do pedreiro, o carpinteiro que fez as portas assim como o ferreiro de Inhambane que fabricou as ferragens,e o calafate que consertava a lancha do Estado.

A iluminação dos quartéis era com azeite de baleia, fabricado nas praias da baía pelos baleeiros Ingleses e Americanos.Quem tratava dos doentes era um curandeiro Landim, que, por cada soldado que curava recebia de pagamento uma capulana. De vez em quando entrava um navio estrangeiro que trocava qualquer coisa por marfim, pois o barco de viagem só chegava de ano a ano, e ás vezes naufragava.
Assim ia a vida em Lourenço Marques no começo do século XIX, ao principiar o estabelecimento miserável que é hoje a cidade encantadora, fascinante e requintada.

Antes das fotografias, há ainda mais uma coisa que acho piada mas que é essencialmente um segundo e delicioso barrete e que é…..(ta-raaam)

O ENFORCAMENTO DO GOVERNADOR RIBEIRO DIONÍSIO NA ÁRVORE

Dionísio António Ribeiro foi um governador de Lourenço Marques. “Governador de Presídio”, isto é, o que significava que governava principalmente a si próprio, pois então não havia nada de nada no local a não ser uma palhotas.

Isto até ter perturbado os poderes locais, que o prenderam e o executaram. Ponho o cargo dele acima entre aspas porque, se se ler a pouca literatura que existe sobre o assunto, o homem era mais um habilidoso pulha vigarista malcheiroso negociante de banha da cobra que basicamente fazia uns biscates para o governo português, o que era pouco ou nada (leia-se o Lobato e o Fernandes).

Ribeiro, que, ao que se entende dos relatos, naquela altura era o que hoje se pode chamar em Maputo um “empresário local de sucesso”, tentou forçar a sua sorte nos negócios usando o seu então recente e dúbio título de “Governador de Presídio” (a edificação em si era uma inegavelmente nojenta e destituta espelunca) e as poucas munições de que dispunha, para tentar extorquir concessões das tribos locais, de que se menciona os Maxaquenes.

Ora, uns dissidentes do Sr. Shaka Zulu (nada menos) liderados pelo Sr. Manicusse (ou Soshangane, nunca acerto nestes nomes) que por acaso passaram por lá enquanto fugiam dos homens do Sr. Shaka Zulu, deram-lhe cabo do canastro, derrubaram mais uma vez o “presídio” e foram para mais ao Norte, arrasando e conquistando tudo e todos pelo caminho (menos os Chopes, não me perguntem porquê) para fundar o mais tarde chamado Império de Gaza.

O Manicusse lá em cima, foi o que foi pai de Muzila, que foi pai de Gungunhana. Também havia monarquia cá.

Conto este episódio porque se os exmos Leitores forem ver na internet hoje em dia menções sobre a Fortaleza de Maputo, quase todas vêm com uma colorida chachada sobre uma “lenda” em que refere que Dionísio Ribeiro (após supostamente ter sido arrastado da “fortaleza” pela porta…) foi enforcado pelos funcionários do Sr. Manicusse numa velha árvore hoje situada mesmo em frente à entrada Poente da actual “fortaleza”. Isto tudo em 1883.

E que a “fortaleza foi atacada e a guarnição dizimada”.

Ai sim?

Bem, de facto, há aqui uns pequenos problemas.

O primeiro problema é que o episódio de Dionísio Ribeiro ocorreu cinquenta anos antes, ou seja em 1833, não em 1883, mais ou menos na altura em que os Suázis e os Zulus andaram pelo que é hoje o Sul de Moçambique a matar e a arrasar tudo e mais alguma coisa.

Há quem diga que deve ter sido em parte resultado do aquecimento global versão século XIX: para além do Sr Shaka Zulu, claro, que não era para brincadeiras, naquela altura uma grande parte de Moçambique atravessou uma das piores secas de sempre, quase dez anos seguidos, o que causou todo o tipo de problemas entre as populações, de entre os quais o colonialismo era provavelmente o menos importante. Muita gente morreu de fome e houve muito milando porque as populações tiveram que ir à procura de água e de comida.

Ribeiro terá sido morto mais precisamente, no dia 13 Outubro de 1833.

Eu sei que isto da data pode parecer uma gralha, mas pelos vistos a gralha já se espalhou de tal maneira que a ficção tornou-se a realidade. E agora até já temos o neto de Soshangane a matar o Dionísio, cinquenta anos depois de ele ter sido morto pelo avô.

Segundo, antes que se invente uma heróica investida na “fortaleza”, na verdade Dionísio Ribeiro foi capturado quando estava a tentar fugir numa barcaça da Ilha Xefina (pois que a “fortaleza” não aguentava com três homens a atirar pedras, nem tinha uma “guarnição” por assim dizer).

Terceiro, antes que se faça disto mais um daqueles episódios de resistência proto-nacionalista moçambicana contra os tugas de então (pois pelos vistos só havia dois em LM, e ainda por cima odiavam-se) os registos indicam que todo o episódio não passava, na realidade, de uma teia de tricas entre ele, um outros tugas rivais dele chamados Vicente e Nobre, e o Governador provincial, que estava no conforto do seu palácio lá na Ilha de Moçambique*.

Tiveram foi azar, pois Soshangane também não era para brincadeiras.

Finalmente, e não menos importante: em 1833 a veneranda árvore não existia no local para se poder lá pendurar o desgraçado do Ribeiro.

Não estava lá.

Ok.

Vamos então às fotografias, cortesia da Casa.

Não se esqueça: para ver melhor prima nas fotos para ampliar.

A "fortaleza", fim do séc. XIX. Sim, é "aquilo" à direita. Se o exmo. Leitor ampliar a foto verá os canhões a apontar para a baía. Aquilo à esquerda da "fortaleza" é um pontão de terra.

A "fortaleza" vista de poente no mesmo dia. É o que está directamente em frente ao exmo. Leitor, incluindo a cabana à direita. Pode-se ver o mastro meio dançante, onde creio estar uma bandeira

Uma nota de rodapé: entre a foto em cima e a que se segue, houve extensíssimos trabalhos de aterramento na cidade, em que se puxaram as areias das barreiras (que caiam abruptamente sobre a baía, tal como ainda se vê hoje na Catembe) e se aterrou a baía para o local em que se encontram hoje.

Uma consequência desses trabalhos é que a esquina da “fortaleza” que havia até há uns 110 anos no que é hoje a baixa de Maputo, e que nas duas primeiras fotos está directamente em cima da baía, agora está a uns cem metros da água.

Veja-se:

Nesta fotografia já se nota muito da actual Maputo. Mas se o exmo Leitor olhar atentamente, nesta precisa foto a "fortaleza" ainda está no seu estado original, tal como se vê nas fotos em cima, mas dentro de terra uns cem metros e atrás do então edifício da Capitania Buildings, que o ofuscava

Nesta foto, tirada já depois da II Guerra Mundial, a "fortaleza" foi "reconstruída" em pedra da Ponta Vermelha, fachada que basicamente nunca na vida teve, e com aquelas ameias óptimas para os miúdos brincarem, canhões, placas centenárias na parede, etc. Tudo ficção.

Aquilo no fundo foi um pouco como o que parece que os Aga Khans fizeram ao Hotel Polana agora. Oops: Polana Serena Hotel Maputo.

Após o derrube (criminoso) dos Capitania Buildings e uns trabalhos de jardinagem, a "fortaleza" assume o seu esplendor, aqui cerca de 1973. Boa para enganar os boers que vinham passear até à cidade

Portanto, exmo. Leitor, goze a Fortaleza de Maputo e lembre-se: se quiser, com um bocado de dinheiro, pode sempre construir o seu próprio passado.

O Vasco da Gama empedrado entretanto deve continuar esquecido lá no quintal do Conselho Municipal de Inhambane.

* ver Alexandre Lobato, “A Invasão Vátua de Lourenço Marques em 1833”, em Quatro Estudos e Uma Evocação para a História de Lourenço Marques (Estudos Moçambicanos, Junta de Investigações do Ultramar, 1961) pp. 119-140.

05/10/2010

A MONARQUIA PORTUGUESA EM MOÇAMBIQUE, 1907

Sua Alteza Real Dom Luiz Filipe de Órléans e Bragança, Príncipe da Beira, na residência do Governador-Geral na Ponta Vermelha em Lourenço Marques, no dia 2 a Agosto de 1907

por ABM (5 de Outubro de 2010)

O Príncipe Real e a Sua comitiva na esplanada do Palácio da Ponta Vermelha  em Lourenço Marques (hoje ainda a capital moçambicana, Maputo), momentos antes de se deslocar para a cerimónia da colocação da primeira pedra do Palácio da Cidade [o edifício situado directamente em frente à piscina do Desportivo em Maputo e que foi o primeiro assento da gestão municipal, antes de ser transferido em 1945 para o actual edifício do Conselho Municipal, na Praça da Independência] no dia 2 de Agosto de 1907.

Da esquerda para a direita,

Sentados:
Coronel António Costa, ajudante de campo do Príncipe;
Conselheiro Ayres d’Ornellas, Ministro do Ultramar;
Dom Luiz Filipe;
Conselheiro Alfredo Freire de Andrade, Governador de Moçambique;
O 6º Marquês de Lavradio, D. José Maria do Espírito Santo de Almeida Correia de Sá, 1º Tenente da Armada e Oficial às Ordens do Príncipe;

De pé:

Capitão-Tenente José Francisco da Silva, Chefe de Gabinete do Ministro;
1º Tenente da Armada, 9º Conde da Ponte, D. Manuel Maria José Ferrão de Castelo-Branco, Ajudante de Campo do Ministro;
Dr. Barros da Fonseca, médico da Real Câmara;
Padre José Vicente da Costa, Capelão da Casa Real;
Dois Oficiais, Ajudantes do Governador, Lopes e Torre do Valle.

A visita de Luiz Filipe, herdeiro da coroa, às colónias portuguesas de São Tomé, Moçambique, Angola e Cabo Verde, decorreu entre 1 de Julho e 27 de Setembro de 1907 e foi essencialmente um exercício de relações públicas e afirmação de soberania perante os demais poderes europeus.

Tirando as expedições reais a Marrocos no século XV, foi a única vez que um membro duma família real portuguesa esteve em África.

O nome original da cidade de Pemba, Porto Amélia, era o da sua mãe, Amélie de Órléans, a rainha portuguesa e uma francesa pertencente à Casa de Órléans, cujo pai era o pretendente à coroa francesa. Quando ela se casou aportuguesou o nome próprio para Amélia.

A cidade moçambicana da Beira ainda hoje tem o nome de um dos títulos de Dom Luiz Filipe, cujo nome completo era (ok cá vamos nós) Luís Filipe Maria Carlos Amélio Vítor Manuel António Lourenço Miguel Rafael Gabriel Gonzaga Xavier Francisco de Assis Bento de Bragança Saxe – Cobourg-Gotha e Orléans.

Para além de Príncipe da Beira (neste caso da província portuguesa da Beira) ele tinha ainda os títulos de Duque de Bragança e da Saxónia, Duque de Barcelos; Marquês de Vila Viçosa; e Conde de Arraiolos, de Barcelos, de Neiva e de Ourém. Foi Grã-Cruz da Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa e foi ainda Cavaleiro da Ordem da Jarreteira.

Luiz Filipe veio para Lourenço Marques, de onde seguiu para vários pontos da costa moçambicana e depois visitou ainda a África do Sul e a (então) Rodésia, onde deu dose de charme aos ingleses e aos boers.

Mousinho de Albuquerque, conhecido pela prisão do régulo Gungunhana em Chaimite no dia de Natal de 1895, foi nomeado aio (preceptor) de Dom Luiz em 1898. O príncipe tinha 13 anos de idade.  Em Janeiro de 1902 Mousinho cometeu suicídio.

O herdeiro da coroa portuguesa na cerimónia de lançamento da primeira pedra da primeira câmara municipal de Lourenço Marques, a 2 de Agosto de 1907

Os três edificios na imagem ainda hoje existem em Maputo, ficam mesmo em frente à sede do Desportivo. O edifício à esquerda foi a original sede do Conselho Municipal da cidade. No local do armazém à direita construiu-se no princípio dos anos 70 o Prédio 33 andares.

Outro ângulo da primeira Câmara Municipal de Lourenço Marques. Note-se a praia ali mesmo ao lado e a barreira a descer até mesmo em frente aos edifícios. Durante anos, o primeiro campo de futebol do Desportivo situava-se mesmo em frente ao edifício. Em tempos, pelo Sr. José Craveirinha, ofereci uma fotografia em que se vê o campo. Essa fotografia está na Sala dos Troféus do Desportivo, com dedicatória minha.

Precisamente cinco meses depois de tiradas estas fotografias, Luiz Filipe foi assassinado numa rua de Lisboa por um punhado de extremistas republicanos, juntamente com o seu pai, o rei Dom Carlos. A este evento, ocorrido no dia 1 de Fevereiro de 1908, os portugueses chamam “o Regicídio”.

Faltava-lhe um mês para completar 19 anos de idade.

Para variar, os seus assassinos conhecidos, Buíça e Costa, foram quase imediatamente “reabilitados” e são hoje admirados e festejados pelas instâncias oficiosas do regime. A RTP, estação do governo português, fez há meses uma longa série estilo novela brasileira sobre eles.

Mas os exmos Leitores sabem como são estas coisas: o reles assassino de hoje é um libertador amanhã. O terrorista de hoje é o freedom fighter de amanhã.

No fundo nunca se sabe ao certo quem é quem, não é?

Pois quem ganha gosta sempre de fazer a História.

E depois fica sempre aquela dúvida.

Aquela duvidazinha.

02/10/2010

LAM EM LISBOA EM ABRIL DE 2011

Filed under: Economia de Moçambique, Portugal-Moçambique — ABM @ 2:01 pm

O Chiloane, das Linhas Aéreas de Moçambique

por ABM (2 de Outubro de 2010)

Antes de ontem, o Sr. Cândido Munguambe, delegado da LAM na Europa, informou uma plateia de agentes de viagens no Holiday Inn Continental Lisboa que a sua empresa iniciará dois voos semanais que farão a ligação entre Maputo e Lisboa a partir do mês de Abril de 2011, usando um Boeing 767-300 ER.

No pressuposto que isto significará um aumento de um 30 a 40 por cento da capacidade da transporte de passageiros e carga desta rota, poderá eventualmente acontecer que a LAM e a TAP poderão, para variar uma vez na vida, competir e baixar um bocadinho os preços dos bilhetes, que têm sido um ultraje.

Configuração do Boeing 767-300 ER

01/10/2010

EM EUROS, SE FACHAVOR

Filed under: Portugal-Moçambique, Sociedade moçambicana — ABM @ 8:45 pm

Uma das entradas da Escola Portuguesa de Moçambique

por ABM (1 de Outubro de 2010)

O Diário de Notícias de Maputo de hoje informou na sua primeira página que, apesar de instruções em contrário, a Escola Portuguesa de Moçambique, situada em Maputo, e frequentada principalmente por alunos portugueses e moçambicanos (cujos pais optaram pelo sistema de ensino português para os seus filhos) continuava a cobrar propinas em euros, em vez de meticais. E basicamente protestou pelo acto de “desobediência” daquela instituição.

O que a peça (não assinada) do DN não indicou, e que pode não ser evidente para quem não vive em Maputo, são duas coisas.

A primeira é que, ao cobrar os seus honorários em euros, isso significa que, especialmente para quem ganha e tem acesso apenas a meticais, o custo de frequentar aquela escola efectivamente duplicou no espaço de um ano.

A segunda, é que, se se ignorar o primeiro ponto, dado o actual contexto do país, não é assim tão fácil como isso arranjar euros para pagar as propinas da escola dos meninos.

Há um elemento adicional que deve ser referido. É que a prática de cobrar em Maputo na moeda europeia não cabe na cabeça de ninguém. É, apenas, meramente, mais uma portuguesada.

Apenas igualado pela portuguesada ainda mais estúpida e absurda, de obrigar os portugueses que residem em Moçambique e que têm o azar de precisar de alguma coisa dos seus serviços consulares (grande cônsul, by the way), de terem que fazer precisamente a mesma coisa.

Não que sejam os únicos que tenham a majestática atitude umbiguista anal-retentiva. Lembro-me que uma vez, por exemplo, que tive que renovar os meus passaportes português e norte-americano em Maputo, há uns tempos. Na embaixada americana, tive que pagar em dólares americanos, e no consulado português, em euros. Quanto aos dólares, ainda vá que não vá, pois havia-os com abundância. Mas ir comprar euros com meticais para pagar o novo passaporte (a um preço absolutamente ultrajante, quer o câmbio quer o custo da emissão do documento) foi um filme, e no fim lembro-me que não tinham o troco em euros para me dar (mas claro!) e em que moeda é que eu recebi o meu troco?

O exmo. Leitor que adivinhe.

Grande país, este Portugal, que, onde quer que esteja, sempre se esforça para tornar o dia-a-dia dos seus cidadãos mais fácil.

Já viram o que é que seria se os nossos hermanos moçambicanos decidissem, só para chatear, instruir a sua embaixada em Lisboa para cobrar os seus emolumentos em meticais, obrigando quem quisesse ir a Moçambique, a ir desencantar meticais em Portugal para comprar um visto?

Já é mais do que altura para endireitar estas coisas.

22/09/2010

A JUSTIÇA PORTUGUESA EM TRÊS MOMENTOS

Filed under: Portugal-Moçambique, Sociedade portuguesa — ABM @ 2:28 am

por ABM (21 de Setembro de 2010)

A justiça portuguesa em três momentos. Com um bocadinho de férias em Moçambique à mistura.

MOMENTO NÚMERO UM DA JUSTIÇA PORTUGUESA: 2000

Segundo Rui Gaudêncio, do jornal Público, de Lisboa, no dia 16 de Dezembro de 2006, a propósito dum tal chamado Caso Lanalgo:

Quatro funcionários da Administração Fiscal, um empresário e dois leiloeiros vão a julgamento no caso da venda ilegal do imóvel da Lanalgo, um conhecido armazém de moda na Baixa de Lisboa, entretanto já falido, que em 2000 foi vendido pelas Finanças por 450 mil euros (90 mil contos). A base inicial do negócio era nove vezes superior, ou seja, quatro milhões de euros (800 mil contos). O comprador foi uma empresa sediada no paraíso fiscal de Gibraltar, que tem como sócio maioritário António Varela – também acusado neste processo.

MOMENTO NÚMERO DOIS DA JUSTIÇA PORTUGUESA: 2006

Continua o relato de Rui Gaudêncio, do jornal Público, acima referido:

O juíz de instrução do 5.º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa decidiu, no início de Dezembro [de 2006] levar a julgamento os sete suspeitos, confirmando a acusação do Ministério Público (MP), dois documentos que o PÚBLICO consultou. O MP considerou os arguidos co-autores de um crime de participação económica em negócio e, por isso, estão sujeitos a uma pena de prisão de até cinco anos. O chefe da repartição do 3.º Bairro Fiscal de Lisboa, onde correu o processo de penhora da Lanalgo – pelo facto de a empresa dever ao Estado perto de 1,4 milhões de euros (277 mil contos) de IRC, IRS e IVA – foi ainda acusado de um crime de peculato, por usar dinheiro público para destino diferente daquele a que estava afectado, e um crime de subtracção de documentos.

Tudo indica que os sete arguidos serão julgados, mas a decisão do juiz de instrução ainda não transitou em julgado. O facto de o magistrado ter confirmado a acusação do MP reduz as possibilidades de recurso, podendo os arguidos alegar apenas nulidades (violações graves dos procedimentos legais que nunca chegam a produzir efeitos).

Segundo a acusação, em Julho de 1999, o chefe da repartição do 3.º Bairro de Lisboa, Bertolino Figueira, determinou a publicação de um anúncio de venda do estabelecimento da Lanalgo, apesar de ter penhorado apenas os bens móveis e imóveis e não o estabelecimento (que incluía a manutenção dos contratos de trabalho dos 145 funcionários da empresa).

A venda seria feita por carta fechada e o valor-base do negócio era de cerca de quatro milhões de euros (cerca de três milhões pelo imóvel e um milhão pelos bens móveis).

O anúncio de que a venda se faria “sem prejuízo dos direitos dos trabalhadores” acabou por levar a que não houvesse qualquer proposta de compra. Para o MP, os moldes do anúncio, “com um tão gravoso ónus a recair sobre o potencial adquirente do bem penhorado – ter que assumir a posição de entidade patronal de 145 trabalhadores” -, justifica a ausência de propostas.

Depois disso, Bertolino Figueira submeteu à consideração superior, no caso, a 1.ª Direcção de Finanças de Lisboa (DFL), que a venda fosse feita por negociação particular, admitindo que quatro milhões até seria um valor baixo para a venda, se os trabalhadores não estivessem salvaguardados. Alertou, nessa altura, a 1.ª DFL que o fisco se “arriscava a ser ultrapassado” pela eventual declaração da falência, já que neste caso o Estado teria que dividir o dinheiro do património da empresa com os outros credores.

Em Outubro, Joaquim Baptista, técnico principal da 1.º DFL e outro dos arguidos, fez um parecer detectando as irregularidades do anúncio, já que a penhora tinha sido feita aos bens móveis e ao imóvel e não ao estabelecimento comercial. Indicava que, na execução fiscal, não existia sequer qualquer referência à existência de trabalhadores nem ao seu número. Joaquim Baptista propõe, por isso, que a venda seja feita de acordo com a penhora ou se corrija a mesma, defendendo que “seria preferível” a primeira opção.

No mesmo documento acaba, por, no entender do MP, se contrariar, já que acaba por falar em “unidade económica”, a que atribui um valor-base de 2,24 milhões de euros, sem que, na opinião dos magistrados, fundamente a redução do preço.

Apesar de Bertolino Figueira ter sugerido uma advogada para fazer a negociação, Joaquim Baptista insiste que tal não é compatível com a sua profissão e sugere a Soleilões ou a Jurisvenda (as duas propriedade dos mesmos sócios, dois dos arguidos do processo). Uns dias mais tarde, Joaquim Alves, chefe de divisão da 1.ª DFL, outro dos acusados, emite um parecer em concordância com o de Joaquim Baptista. O director de Finanças adjunto da 1.ª DFL, Francisco Lourenço – em quem o director; José Maria Pires, delegou competências – concorda com as sugestões e nomeia a Soleilões para fazer a negociação.

Em 15 de Dezembro, os dois sócios da Soleilões, Eduardo Silva e Rui Perdigão, informam Bertolino Figueira que tinham uma proposta de 450 mil euros apenas para o imóvel, que tinha que estar “livre de ónus ou encargos de pessoas e bens”. A proposta é encaminhada para a 1.ª DFL, sendo apreciada pelos três arguidos desta direcção “de imediato”. A venda é autorizada em Janeiro e a 17 de Abril de 2000 a escritura pública é feita em Lisboa.

Segundo o MP, os arguidos da administração fiscal actuaram em conluio com os dois leiloeiros para favorecer António Varela, tendo preterido determinados procedimentos da venda executiva e violando os deveres de zelo a que estavam obrigados. Três anos mais tarde o Tribunal Central Administrativo, em Lisboa, confirma a anulação do negócio devido às várias irregularidades detectadas.

COROLÁRIO DO MOMENTO Nº2

Como corolário do Momento Dois da Justiça Portuguesa, adiciono o texto do jornalista Miguel Ganhão, que escreveu isto para o jornal Correio da Manhã, em 4 de Dezembro de 2007:

Recorde-se que o imóvel da Lanalgo foi avaliado em três milhões de euros (com o recheio a valer 200 milhões) e que a realização da hasta pública, no dia 14 de Dezembro de 2000, ficou deserta. Face a esta situação, Bertolino Figueira iniciou o processo de oferta por carta particular, pedindo um prolongamento de trinta dias para arranjar comprador. No dia 15 de Dezembro o imóvel foi adquirido por 450 mil euros pela empresa Tayama, uma offshore situada em Gibraltar e que é propriedade do mesmo empresário dono do avião que foi apreendido na Venezuela com duas cidadãs portuguesas alegadamente envolvidas em tráfico de droga.

A venda por carta particular foi realizada sem publicidade nos principais órgãos de comunicação, sendo apenas publicado um edital na porta da repartição de Finanças. Bertolino Figueira reafirmou que as “irregularidades” da venda foram sancionadas pelas chefias e que “havia urgência na alienação do imóvel”.

Para além de Bertolino Figueira, estão a ser julgados o ex-director adjunto Guerreiro Lourenço, Joaquim Augusto Baptista e Joaquim Manuel Pombo Alves por parte da Administração Fiscal, e dois responsáveis da empresa Soleilões, Eduardo Manuel Cunha da Silva e Rui Noel Perdigão. Estão arroladas mais de 60 testemunhas de Defesa e Acusação.

MOMENTO NÚMERO TRÊS DA JUSTIÇA PORTUGUESA: 2010

Segundo Ricardo Marques, do jornal Expresso, de Lisboa, no dia 18 de Setembro de 2010, a propósito de um problema administrativo na sede do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal:

Vários volumes de pelo menos quatro processos desapareceram nas instalações do Supremo Tribunal de Justiça (STJ). A falta dos documentos foi notada em Maio e o caso, depois de esgotados todos os meios internos de investigação, foi comunicado ao Ministério Público e ao Conselho de Oficiais de Justiça.

Dois dos volumes desaparecidos pertencem a um processo em que terão sido desviados quatro milhões de euros por dois sócios de uma empresa leiloeira. Os dois homens, que trabalhavam com vários tribunais na venda de património de empresas falidas, levavam imóveis a leilão, mas depositavam o dinheiro das transações nas suas contas pessoais. Os factos terão ocorrido entre 2000 e 2003. Um dos arguidos conseguiu fugir para Moçambique e nunca voltou.

O desaparecimento dos dois volumes em falta, de um total de 21 que constituem o processo, foi comunicado ao presidente do STJ a 13 de Maio, por correio eletrónico. “De imediato, fez-se um visionamento total da informação recolhida pelas câmaras de videovigilâncias existentes, sem se ter obtido qualquer resultado concreto”, explicou ao Expresso, por escrito, Noronha do Nascimento, presidente do STJ.

Ao mesmo tempo, vários funcionários começaram a procurar os documentos no edifício da Praça do Comércio, em Lisboa. Não só não conseguiram encontrá-los como perceberam que havia mais volumes – de outros processos e de outras secções criminais do Supremo – que não estavam onde deveriam estar. “Houve mais alguns processos desaparecidos, poucos. Já todos eles tinham sido decididos definitivamente”, esclareceu Noronha do Nascimento. O caso foi comunicado ao Conselho de Oficiais de Justiça e, em 16 de junho de 2010, à Procuradoria-Geral da República.

O único processo em curso de onde faltam documentos é mesmo o da leiloeira. Os dois arguidos foram condenados a penas diferentes e por um número distinto de crimes. Um deles, que fugiu para o Brasil mas acabou por ser capturado e extraditado para Portugal há três anos, foi condenado a oito anos de prisão e está preso. O outro, que ainda se encontra em Moçambique, foi condenado a 12 anos de cadeia e foi ele que, em virtude de a pena o permitir, avançou com o recurso para o Supremo.

Para colmatar o desaparecimento dos dois volumes e proceder à reconstituição do processo, os advogados e o Ministério Público tiveram de ser notificados para entregarem cópias dos documentos que tivessem consigo. Ao mesmo tempo, o Supremo teve de pedir ao tribunal de 1.º instância as restantes peças processuais. “Por força dessa reconstituição, pode haver algum atraso na decisão”, referiu Noronha do Nascimento.

Os processos incompletos, segundo apurou o Expresso, pertencem às 3.ª e 5.ª secções do Supremo e estariam numa sala pertencente ao Ministério Público, que tem instalações no primeiro e no terceiro piso do tribunal. “Não confirmo que todos os processos desaparecidos estavam na mesma sala. Nada garante que o desaparecimento tivesse ocorrido nessa mesma sala, e é muito possível que tivesse sucedido noutro sítio”, adiantou o presidente do STJ, sublinhando que “é proibida a instalação de videovigilância nos gabinetes e noutros locais eminentemente privados, por força da lei de dados pessoais”.

Imagino que o português acima mencionado deve ser um dos famosos empresários de sucesso em Moçambique.

17/09/2010

III ENCONTRO DE ESCRITORES MOÇAMBICANOS NA DIÁSPORA

Aspecto (Aspeto?) da sessão inaugural do Encontro de Escritores

por ABM (17 de Setembro de 2010)

Decorre desde ontem na Casa de Goa em Lisboa o III Encontro de Escritores Moçambicanos na Diáspora.

O evento é organizado por Delmar Maia Gonçalves e o CEMD, com o apoio da Embaixada moçambicana em Lisboa, a Casa de Goa e a Confraria do Vento Editora.

O programa é extenso e pode ser lido consultando a página do sítio Macua.

A sessão de abertura decorreu conforme planeado, lamentando-se apenas a ausência de Guilherme de Melo, um dos homenageados do dia (o outro foi o José Pádua, artista plástico).

De salientar os comentários do embaixador moçambicano, o genial e congenial Dr. Miguel Mkaima, um antigo ministro da Cultura, sobre os recentes distúrbios na capital moçambicana, tópico que interessou os que o ouviram dada a sua actualidade e originalidade.

Confesso que quando vi a audiência acima a minha primeira reacção foi “mas que branquidão vem a ser esta”.  Mas certamente há-de haver razões para isso. Se calhar os escritores moçambicanos brancos vivem todos fora de Moçambique (todos menos o Mia, claro).

Hoje realizam-se duas conferências que prometem:

– uma em que participam nada menos que o João Craveirinha, o Renato Epifânio e o Joaquim Evónio (moderador: Delmar Maia Gonçalves) sobre essa coisa da lusofonia. A coisa promete.

-outra, a seguir, em que participam o pintor moçambicano Lívio de Morais (tema da sua alocução: “Moçambique ontem e hoje”), Ntaluma, Mingo Rangel, (moderador: Fernando Machado) e o bardo moçambicano de Almeirim e maschambeiro honoris causa, Carlos Gil, metamorfoseado para um look executivo, de fato e gravata, sem bigode, que preparou um texto intitulado Ser, sem sê-lo.

Vou tentar obter cópias do que foi lido, para os Maschambeiros ausentes poderem saborear o que foi.

As fotos roubei ao João Marques Valentim, a quem a casa agradece.

Ascêncio de Freitas, Miguel Mkaima, Delmar Gonçalves e São Passos

Em primeiro plano, Rodrigues Vaz, São Passos, João Marques Valentim. Os outros não sei quem são.

09/09/2010

MAL VISTO

Filed under: Portugal-Moçambique — ABM @ 2:29 am

por ABM (9 de Setembro de 2010)

Apareceu hoje na Lusa e no OJE:

O Governo moçambicano aumentou os preços das autorizações de residência, que passam agora a custar a cada estrangeiro mais de 500 euros, contra os cerca de 10 que custavam antes, ignorando acordos internacionais.

“Estão a aplicar indistintamente uma tabela mas há um acordo da CPLP, aprovado numa cimeira em Brasília em 2002, que diz que os cidadãos da CPLP estão isentos de pagamentos de taxas e emolumentos no preço das autorizações de residência”, diz à agência Lusa a cônsul de Portugal em Maputo, Graça Gonçalves Pereira.

A nova tabela de preços de DIRE (Documento de Identidade e Residência), vistos e emissão de passaportes está em vigor há já alguns meses mas só agora foi publicada no Boletim da República, documento oficial do Governo.

“Havendo necessidade de se aprovar a tabela que fixa as taxas a cobrar pela emissão de passaporte, autorização de residência, visto de leitura biométrica e electrónica, e proceder à distribuição do valor resultante das respectivas cobranças”, o Governo aprovou “a tabela que fixa as taxas de concessão, renovação ou substituição do passaporte, visto e DIRE de leitura biométrica e electrónica”, diz o documento oficial.

O DIRE é o documento que mais aumentou e o que mais afecta também a comunidade portuguesa, cerca de 18.000 pessoas, a maior parte com residência temporária e por isso a precisar todos os anos de renovar o documento que lhe permite viver em Moçambique.

Segundo a nova tabela, os DIRE precários ou temporários custam 24.000 meticais (517 euros) e os DIRE permanentes ou vitalícios custam 30.000 meticais (643 euros).

“Não se justifica”, diz a cônsul de Portugal, que pergunta como é que uma família de três ou quatro pessoas pode pagar esta tabela.

Graça Gonçalves Pereira acusa o Governo de Moçambique de não estar a “aplicar o acordo” que assinou em Brasília, numa cimeira de chefes de Estado da comunidade de países de língua portuguesa (CPLP), e que publicou em 2004.

Uma autorização de residência em Portugal custa 60 euros mas os cidadãos da CPLP pagam apenas 30, exemplificou.

(fim)

Hum.

Trinta euros por um visto de residência em Portugal, 517 euros em Moçambique.

Por pessoa.

Por ano.

Mas há um acordo intergovernamental.

Hum.

Ora vamos lá a ver as contas.

Individualmente

Pagando um português 517 euros por ano por um visto de residência, e um moçambicano em Portugal 30 euros por ano, isso quer dizer que cada cidadão português que está em Moçambique paga 1730% mais por ano para residir em Moçambique que um cidadão moçambicano paga para residir em Portugal.

Colectivamente

– 18 mil vistos destes por ano em Moçambique a 517 euros cada dá (18.000 x 517 = 5.806.000 euros) por ano. Pagos do bolso dos próprios ou, com sorte, pelas empresas que acharam por bem trazê-los para trabalhar em Moçambique.

Infelizmente há menos cidadãos moçambicanos a residir em Portugal. Vamos supor que são três mil.

– 3 mil vistos destes por ano a 30 euros cada dá (3.000 x 30 = 90.000 euros) por ano.

Diferença – 5.806.000 – 90.000 = 5.716.000 euros, por ano.

Conclusão

Porquê?

Em que é que isto ajuda Moçambique a desenvolver-se?

Afinal somos irmãos ou isto da irmandade cplpiana é tudo apenas música para embalar nas cimeiras?

Ia-me esquecendo de referir: grande cônsul, esta. Em cima da jogada e um comportamento exemplar para com as tropas durante as exéquias da semana passada.

Nunca se viu disto em Maputo.

Quase que dá vontade de ser português.

26/05/2010

A MAIOR DO MUNDO

Filed under: Portugal-Moçambique — ABM @ 12:32 pm

por ABM (26 de Maio de 2010)

Há uns tempos um embaixador português que está a dois passos de se reformar (presumo que com uma daquelas reformas milionárias sobre as quais anda tudo aos gritos) deu uma entrevista num dos jornais de Lisboa, em que às tantas ele conta em detalhe como ele em 1975 se meteu num avião para a capital moçambicana com umas malas cheias de dinheiro e, de entre uma série de desventuras, comprou aquele edifício no cruzamento da Avenida Eduardo Mondlane com a Avenida Julius Nyerere, em Maputo, para ali alojar a futura embaixada portuguesa – que, referiu, até esta data será a maior representação diplomática portuguesa em qualquer parte do mundo.

Mas ser a maior não quer dizer nada. Aparentemente, de dentro daquela torre, nos primeiros quinze anos da independência, os diplomatas portugueses assistiram silenciosos, impassíveis e impotentes perante os efeitos absolutamente demolidores do percurso pós-independência sobre os cidadãos os quais também fazia parte da sua job description defender. Não que pudessem fazer muito. pelos vistos. Até quando Raposo Pereira, um dos brancos de serviço do regime, instituiu e popularizou o 24/20 (recordou-me ontem Álvaro Mateus), mais uma das pequenas infâmias contra os poucos portugueses que tiveram a audácia de querer ficar em Moçambique, a reacção ali na embaixada foi notoriamente omissa e ineficaz. Quando por exemplo, cerca de 1981 o meu irmão mais velho, Mesquita, que vivia em Maputo, foi preso em Maputo e acusado de ser nada menos do que um espião da CIA (uma total fabricação) e o pai BM, que por acaso estava de férias na cidade, telefonou de madrugada à embaixada, o embaixador português comunicou que não tratava daqueles assuntos àquela hora. Mais tarde, quando se dirigiu à sua embaixada para requerer assistência, o filho da puta do embaixador português não quis, e não o recebeu. Eu, que na altura estudava numa universidade nos Estados Unidos, nem queria acreditar no que estava a ouvir.

O edifício ser grande não quer dizer que seja bonito ou bom. Aquilo é uma estranha estrutura do princípio dos anos setenta e pessoalmente acho aquela mistura de escritórios e apartamentos uma aberração, um bunker pouco seguro, numa altura em que esse tipo de configuração já não se usa em lado nenhum. Com os balúrdios que se reputa o Sr. Sócrates anda a enviar naquela direcção estes dias, alguém devia comprar dois ou três hectares, como fazem a IURD ou os americanos e, com uma Teixeira Duarte, fazer uma coisa monumental, bonita, digna e funcional, para suportar a supostamente relação especial entre Portugal e Moçambique. Nesse caso, transformaria o mastodonte num centro cultural e de negócios, unicamente.

Até porque os diplomatas portugueses, que, lentamente, evoluíram para qualquer coisa mais útil (a actual cônsul portuguesa em Maputo é de cinco estrelas, por exemplo, e trabalha noutro edifício ainda mais caricato que o da embaixada) merecem e precisam de melhores condições e dinheiro para trabalhar.

Para se fazerem omeletes, são precisos ovos.

20/05/2010

NÓ GÓRDIO

Filed under: História Moçambique, Memórias, Portugal-Moçambique — ABM @ 4:52 am

por ABM (20 de Maio de 2010)

Segundo a Wikipédia em língua portuguesa, o jornalista Joaquim Furtado terá três qualificativos, para além de uma carreira que desconheço na genial e obscenamente dispendiosa cadeia de media dos contribuintes portugueses, a RTP: estava na estação de rádio do Rádio Clube Português na noite de 24 para 25 de Abril, é pai da personalidade televisiva Catarina Furtado, e é autor de uma série documental sobre “a guerra”, que aqui significa a guerra colonial que decorreu entre 1961 e 1974 , a partir de Setembro de 1964 em Moçambique.

Esta noite, no prime time televisivo português, a RTP brindou a sua audiência com a sua mais recente produção, Nó Górdio. Este foi o nome dado na altura a uma complexa operação militar que teria por fim acabar, descobri hoje, com o controlo da região norte de Cabo Delgado pela Frente de Libertação de Moçambique.

A tal operação militar decorreu entre Junho e Julho de 1970 e se o exmo. Leitor for como eu, que tenho uns aparentemente saudáveis 50 anos de idade, naquela altura precisa jogava ao berlinde, ouvia discos de 45 rotações dos Beatles em Lourenço Marques e não sabia que havia uma guerra a não ser a do Vietname (essa ao menos vinha no Notícias e no Diário). Por isso, especialmente no caso dos mais moçambicanófilos e menos militarmente inclinados, importa tentar compreender melhor o que foi isso do Nó Górdio.

E, nesse sentido, independentemente de eventuais críticas para além do que o documentário ventila, Joaquim Furtado merece uma medalha, pois finalmente percebi em maior detalhe o que foi aquilo tudo, com a vantagem de, 40 anos após encerradas as hostilidades e estreadas as boas relações do pós-toma-lá-Cahora-Bassa, poder-se calmamente filmar os protagonistas do confronto a falar mais ou menos sem grandes papas na língua sobre como foi.

Devo dizer em abono da verdade que algumas das convicções que eu tinha sobre a operação mantiveram-se absolutamente inalteradas. Nomeadamente, que o dinheiro gasto ali tinha sido muito mais bem gasto noutro tipo de guerra, mais próximo daquilo que os rodesianos e os sul-africanos fizeram mais tarde. Essa de um exército formal chefiado por um centurião querer fazer guerra com uma guerrilha sem matar as populações é de gritos. Mas compreendo que os objectivos estratégicos eram diferentes. Os boers sul-africanos jogaram pelo tempo, ou seja por aguentarem até o bloco comunista se desfazer, e não se importaram de aterrorizar e matar populações inteiras. E, mais uma vez operavam como uma guerrilha contra um exército convencional. Os portugueses parece que tentaram ir metendo os dedos nos buracos porosos dessas (para eles) paredes que eram as fronteiras ao Norte. E basicamente ignoraram a necessidade de lidar adultamente com o facto de que a independência estaria para vir, com ou sem Frelimo. O que, como se sabe, era impossível dados os estados de espírito prevalecentes na altura.

Enfim, já passou.

No documentário, para minha surpresa, as críticas a Kaúlza de Arriaga foram de uma generosidade enorme, vindas de ambos os lados. No fim a coisa correu mal pois afinal, logo se percebe, não era preciso um Nó Górdio: eram precisos dois ou três. Mas Portugal não tinha dinheiro para isso e os russos e os chineses estavam empenhados em não perder face. Cabo Delgado foi tomado e a guerra passou para Tete e mais tarde para pontos ao Sul.

Independentemente do que eu pense sobre o assunto, acho que os testemunhos recolhidos e editados por Joaquim Furtado e a sua equipa são agora leitura obrigatória para quem quiser saber mais sobre este capítulo da história dos dois países. O que quer que seja que a RTP pagou pelo projecto de Furtado, para variar, foi dinheiro bem gasto.

Em baixo, alguns dos entrevistados.

01/05/2010

A VISITA PRESIDENCIAL

Filed under: Portugal-Moçambique — ABM @ 7:19 pm

por ABM (1 de Maio de 2010)

No meio da confusão, da crise despoletada pelo anúncio da empresa de análise de risco Standard & Poors quanto à descida do nível de risco da dívida portuguesa, e das audições na televisão do processo da TVI, a visita de dois dias do presidente de Moçambique e de uma comitiva de setenta personalidades a Portugal praticamente passou despercebida. Umas linhas aqui e ali e mais nada.

O que é curioso, dado que, supostamente, o relacionamento institucional entre os dois estados é supostamente melhor que bom, já que teoricamente, depois de três décadas e meia, estarão sanados os grandes diferendos.

De entre o que foi feito, assinalo apenas um evento que achei interessante, que foi o assinar de um protocolo (a implementar) em que os cidadãos portugueses que trabalham em Moçambique irão passar a poder transferir os créditos pelos descontos feitos para a segurança social moçambicana, para a a segurança social portuguesa. E vice-versa.

PS – A Travessa da RPM, cuja tabuleta se exibe, fica situada em Mem-Martins, a caminho de Sintra. É espúria, mas o que conta é a intenção.

18/04/2010

UM AR DA SUA GRAÇA

por ABM (18 de Abril de 2010)

Graça Machel deu uma curta entrevista em Joanesburgo e que foi publicada ontem no jornal britânico Mail & Guardian.

A curta entrevista, sobre o papel dos britânicos em África e nomeadamente em relação aos últimos anos no Zimbábué, é interessante quer pelo seu tom, quer por alguns dos comentários feitos avulsamente. Deliciosamente concluída com um comentário por Eddie Cross, um parlamentar zimbabueano do MDC, que parece concluir que, por piores que os britânicos sejam e tenham sido, que nada poderia ser tão mau como o colonialismo português. Para isso, refere que Samora Machel terá dito que, no que toca aos colonialistas, os britânicos foram de longe os melhores.

Donde se pode concluir que há bons e maus colonialistas. Os leitores britânicos devem-se ter babado com esta. Ah, rule Brittania, eles é que sabiam fazer as coisas.

Interessante para o exmo leitor que lê inglês, é ver os comentários feitos pelos leitores no fim da peça.

Graça é provavelmente a mulher mais rica de Moçambique e neste momento patriarca da dinastia Machel, apesar de ser simultaneamente a terceira mulher do grande Nelson, o que lhe confere um estatuto à parte.

A entrevista:

One of Africa’s most eminent political figures has condemned Britain for taking a patronising “big brother” attitude to its former colonies.

Graça Machel, a founder member of the Elders group of world leaders and the wife of former SA president Nelson Mandela, warned British politicians to “keep quiet” about countries such as Zimbabwe and let African diplomacy take its course.

Machel (64) is a former first lady of Mozambique, where she served as education minister, and has won numerous international awards for her advocacy of women’s and children’s rights.

In an interview with the Guardian in Johannesburg, she indicated that the crisis in Zimbabwe has revealed the shortcomings of a persistent imperialist mindset.

“Can I be a little bit provocative?” Machel said. “I think this should be an opportunity for Britain to re-examine its relationship with its colonies. To acknowledge that with independence those nations will want to have a relationship with Britain which is of shoulder to shoulder, and they will not expect Britain to continue to be the big brother.

“When a nation is independent, there is no big brother. They are partners. Part of the reason why Britain finds it difficult to accept Zimbabwe is precisely because that relationship of a big brother is influencing [efforts] to try to understand.”

Britain, along with the European Union and United States, has imposed travel restrictions and asset freezes on Zimbabwe President Robert Mugabe and his political and business allies. It has defied calls from South Africa to end these measures for the sake of the power sharing agreement between Mugabe’s Zanu-PF and the Movement for Democratic Change (MDC).

Earlier this year Foreign Secretary David Miliband said the UK would be “guided by what the MDC says to us about the conditions under which it is working and leading the country”. Critics said this handed Zanu-PF a propaganda coup, allowing it to portray the MDC as a puppet of Britain and blame it for sanctions.

Machel added: “I’m not saying things are OK, they’re all fine in Zimbabwe. I’m saying a different kind of dialogue, a different kind of bridge to try to understand the other side could have produced a different result from what it is.

“The more the British shout, the worse the situation will be in terms of relationship with Zimbabwe. That’s why sometimes I really question, when something happens in Zimbabwe and Britain shouts immediately. Can’t they just keep quiet? Sometimes you need just to keep quiet. Let them do their own things, let SADC [Southern African Development Community] deal with them, but keep quiet, because the more you shout, the worse [it is].”

Expectations
Asked if Britain’s attitude is patronising to its former colonies, Machel replied: “I’m afraid so. And what I’m saying is they have expectations which do not always coincide with what are the aspirations and expectations of those who are their former colony.

“When you change the relationship, you just have to give yourself to take the humility to stop and listen. And when you listen, then you take into account the other side. You put your case, then you take the other side. In a way, you harmonise interests of both sides.”

Zimbabwe will mark 30 years of independence this weekend. Britain remains politically and economically influential and denies Mugabe’s claim that it reneged on promises to fund the redistribution of land to the black majority.

Mugabe’s response, the chaotic seizure of white-owned farms, has been blamed for the collapse of Zimbabwean agriculture.

‘There’s more to Africa than Zimbabwe’
Machel, whose first husband was the late Mozambique president Samora Machel, called on Britain to take a broader view of the African continent. “That’s one of the issues, particularly with the British people: because of the emotional attachment they have with Zimbabwe, in many cases they define the continent in terms of Zimbabwe. Zimbabwe is one country among 53 countries, so you have all the rest of 52 countries. Well, let us put aside Somalia also, which is a failed state. But you have 50 countries who are running a relatively normal situation in the continent.

“I would like to raise with you the issue that yes, Zimbabwe has failed, and it is hurting British people directly, but there’s much, much more to Africa than Zimbabwe.”

Machel, who became Mandela’s third wife in 1998, also accused developed countries of double standards on CO2 emissions and climate change.

“This has been very clearly stated at the negotiations to Copenhagen. They know — the developing world, including China — that Africa has very small responsibility in the impact of climate change, but Africa is the one paying the highest price.”

Britain’s intentions are still treated with scepticism in Zimbabwe, even among some members of the MDC. Eddie Cross, policy coordinator general of the MDC, said: “Perfidious Albion. I tell you, you Brits have a well-deserved reputation for perfidity in your colonial relations … I think Britain’s always been very sophisticated in its relations with its former colonies — it’s got more experience than any other state in the world — but it doesn’t necessarily make them right.

‘You would never choose to be colonised by the Portuguese’
“Britain’s role in the last 10 years has often been difficult for us in the MDC to interpret and read. Sometimes they’ve backed certain initiatives in Zimbabwe which have not been helpful in terms of pursuing a principled transfer of power and I think sometimes the Brits regard us as being rather naïve in the MDC and they have a rather jaundiced view of Africa and African politics.”

But Cross, an economist and MP, added that other European powers probably behaved worse: “Samora Machel once said to me: ‘If you were to choose to be colonised, you would never choose to be colonised by the Portuguese.’ The colonial record was pretty dismal. For the British it was probably the best.”

12/03/2010

HENRIQUE BANZE

Filed under: Portugal-Moçambique — ABM @ 2:47 am

por ABM (12 de Março de 2010)

Na altura da visita de José Sócrates a Maputo para firmar as relações com Moçambique e assinar uma resma de acordos, e de uma emissão especial ao vivo a partir de Maputo para o mundo via as cadeias da RTP (neste caso, visto no canal principal da RTP em Portugal continental), o actual vice-ministro dos Negócios Estrangeiros moçambicano, Henrique Banze, concedeu uma rara entrevista. Bem disposto, à vontade, sublimemente eloquente, o senhor vice-ministro mandou uma dose industrial de simpatia bem moçambicana, sem por um momento omitir o que de sério havia para dizer nesta ocasião. Em bom português, deu um baile.

Ao contrário do entrevistador, que bem se esforçou, mas que me pareceu um erro de casting.

A emissão foi feita a partir da velha estação de Caminhos de Ferro de Maputo, que este ano faz cem anos.

A RTP, essa celebrava os seus 53 anos.

25/01/2010

Os 68 Parabéns de Eusébio

por ABM (Cascais, 25 de Janeiro de 2010)

O antigo jogador de futebol Eusébio completa hoje 68 anos de idade.

Aproveito assim para abordar brevemente esta figura do desporto português e moçambicano.

Ao contrário do clã BM, eu nunca liguei quase nada ao futebol, que em Moçambique antes da independência era uma total obsessão para muita gente. Fui a muitos jogos de futebol em Lourenço Marques, mas mais como castigo e para não causar distúrbios em casa aos fins de semana.

Olhando retrospectivamente, o futebol estabelecia uma das diferenças visíveis entre a África portuguesa e as colónias e ex-colónias inglesas, que rodeavam Moçambique, onde os desportos seguiam padrões raciais e culturais muito específicos. Na África do Sul, o futebol era, e ainda é, regra geral, um desporto predominantemente de e para os negros, enquanto que os brancos se cingiam quase exclusivamente ao râguebi e ao cricket e desprezavam o futebol como “desporto de preto”. Presumo que pouca gente então se apercebeu que o piropo também se dirigia aos portugueses, que aos olhos de muitos dos boers e dos sul-africanos brancos, eram uma raça “cafrealizada” – os kaffirs from the sea, como diziam alguns (touché).

Em Moçambique aquilo era mais um pagode, tudo ao molho e fé em Deus. Toda a gente ia e toda a gente vibrava com o futebol, independentemente das questões raciais, económicas e sociais que os analistas de hoje possam congeminar. Aos fins de semana muita gente ia ver o futebol e durante a semana falava-se do que tinha acontecido no fim de semana anterior. Os jogos eram transmitidos pelo rádio clube em simultâneo em português e em ronga. Nesse aspecto, fazia parte do ídílio africano de que falarei mais tarde e que pelos vistos se tornou desporto das classes literadas de hoje desafiar.

Se no esquema geral das coisas essa paixão partilhada entre brancos e negros na África portuguesa valia o que valia, ela existia e pelo menos baralhava um pouco as cartas em termos da dialéctica de então. Os portugueses do regime usavam-na para apontar credenciais não racistas ao mundo, enquanto que os restantes a desvalorizavam, apontando que praticamente não havia quaisquer moçambicanos negros em posições de poder e influência na nomenclatura nacional e colonial.

Mas, só para chatear – excepto no futebol.

Esta realidade foi a meu ver algo injusta em termos de verdadeiros talentos como Eusébio, Coluna e Hilário (por exemplo, mas há mais, como o Vicente, o Shéu, o Matateu, o Matine, o Abel) cujo valor deveria estar acima destas questões mas acabou, durante algum tempo, por ser questionado por temas que nada têm que ver com o facto de que eram atletas de invulgar talento.

As estrelas que Moçambique produziu foram muitas e brilharam. Outro dia ouvi um comentário que achei interessante e parcialmente correcto, não me lembro de quem, mas que dizia que a primeira “verdadeira” selecção de Moçambique foi a que Portugal levou ao Mundial de 1966 em Londres. Sem descurar os restantes jogadores, o talento moçambicano reunido naquela equipa era verdadeiramente excepcional.

E Eusébio, filho de um senhor branco e de uma senhora negra do Xipamanine (pois…) foi a estrela cadente desse conjunto de homens notáveis. Ao ponto de integrar, nas mentes do povão, com a tal de vidente Lúcia e a fadista Amália Rodrigues, uma espécie de santa trilogia do Portugal da segunda metade do salazarismo: Fátima, Fado e Futebol.

Ele era um deus em Moçambique quando eu era pequeno. Um dia, não sei bem por que razão, nos anos 60, ele visitou a casa onde os meus pais viviam na Polana. Não sei como, a palavra passou que ele estava lá, e em cinco minutos a casa estava rodeada de uma multidão a querer vê-lo e a pedir autógrafos. Diligente, eu passei o meu tempo a recolher livrinhos de autógrafos e levá-los ao Eusébio enquanto ele estava calmamente sentado a falar com o pai BM – e ia assinando os livrinhos.

Como um simbolo inescapável de Portugal, difícil foi, e tem sido, a reconciliação com o regime moçambicano, que, antes e depois da independência, nunca o viu como seu, e que nunca aceitou o portuguesismo de Eusébio – apesar de ele ser logicamente também tão moçambicano como qualquer outro, produto genuíno do Xipamanine e da Mafalala dos anos 50 do século passado.

Também não ajudou o facto de que, ao se nacionalizarem os bens imóveis em 1976, incluíram-se os investimentos que quer Coluna quer Eusébio tinham feito na sua terra. Na base da ideologia e de que não podiam abrir excepções, deixaram-nos mais pobres e mais ressabiados. Coluna, que regressou a Moçambique independente e refez lá a sua vida, ficou quase na miséria. Mas isso é história que dava panos para mangas.

Independentemente de todas essas questões, acho que a História já colocou Eusébio no seu lugar devido: o de ter ele sido um dos maiores talentos do futebol que o mundo jamais viu.

Um talento moçambicano.

E, também por isso, lhe dou hoje, e a nós também, os parabéns.

16/01/2010

Lizzie Had a Dog in LM

Lizzie & Bóbbi

por ABM (Cascais, 16 de Janeiro de 2010)

A lógica da breve discussão prévia o impunha e uns meros 15 euros o resolveram.

Disfarçado de dono de um veleiro de passagem por Cascais, e após breve e inócua aventura na Livraria Bulhosa no Cascais Villa, peregrinei até à quiçá mais próspera e dotada FNAC do Cascais Shopping, com a Dulce Gouveia a reboque, para comprar a grande obra recente da Escritora de origem moçambicana, publicada pela Editora sediada em Coimbra.

Mas na secção dos livros dou logo de caras com o José Rodrigues dos Santos no corredor, que é máfia moçambicana do melhor e estes dias uma espécie de versão lusa do Dan Brown. Com ele não há cá memórias para ninguém. Antes que ele pensasse que eu ia ao livro dele sobre a Al-Khaeda, que se encontra à venda em todas (mas todas) as livrarias, grandes superfícies, aeroportos e até por baixo de vãos de escada, escapuli-me pelo café da loja para o outro lado e fui ter com uma daquelas meninas simpáticas da FNAC que usam um coletezinho verde e nos ajudam a encontrar os livros.

“Olá, boa tarde. Procuro o novo best seller daquela escritora nascida em Moçambique Isabela Figueiredo e não encontro”.

“Só um momento, sefachavor”.

Clic clic clic clic no computador.

“Sim, devemos ter ainda uma cópia na loja, deixe-me ir ver”.

E desapareceu.

15 minutos à espera.

Após o que a menina surgiu do nada com um livrinho pequenino na mão.

“Quanto é?”

“15 euros”.

“15 euros! Bolas. Deixe-me cá ver”.

E peguei no volume. E inspeccionei-o.

Preliminarmente.

Na verdade o livro é algo estranho.

A seguir à capa e a contra-capa, tem quatro folhas verde-alface sem nada, duas de cada lado, que deve ser para o leitor precavido tomar apontamentos. No fim, a seguir à folha verde-alface, diz uma nota que foi composto numa empresa gráfica na bela Vila Nova de Famalicão, “34 anos após o regresso da autora a Portugal”. Ok. Suponho que uma anotação válida para quem ao chegar ao fim do livro ainda não se tiver apercebido desse facto da vida da autora, ou que não saiba fazer contas de subtraír (pois 2009-34 = 1975) infelizmente um provável infortúnio com o estado da educação nos dias que correm.

Só que na pala interior da capa tem mais uma foto simpática da Isabela, esta circa 2009 e sans Bóbbi, e mais uma notinha a dizer que ela nasceu em Lourenço Marques em 1963, que em 1975 veio para Portugal, e que nunca mais voltou.

Espera aí: se aqui diz que ela nasceu lá, que veio para cá e que nunca mais voltou, porque é que no fim do livro diz que ela regressou a Portugal?

É um mistério. Assumo que deve fazer parte da complexa e mística dialética subjacente aos conteúdos ali abordados. Ora veja-se.

Ela nasce e cresce em Moçambique.

Mas ao viajar para Portugal em 1975, regressa.

Ora isto é para mim uma alegoria fantástica.

Tem umas fotografias: na capa (a foto ali no topo) a Isabela avec Bóbbi. Depois duas piquininas de Lourenço Marques nos tempos e que mal se conseguem ver, e a seguir vêm: a Isabela a segurar o rádio de papá debaixo de uma papaeira, a Isabela vestida de saloia portuguesa num barco, a Isabela a fazer pose num parque, a Isabela na marginal de Lourenço Marques e a Isabela na comunhão.

Na página 7, presume-se que para dar o tom do que está para vir, três citações, uma de Paulo Auster a falar do pai (o do Paulo Aster), e duas do italiano Primo Levi, a mastigar a presumível fungibilidade da Memória Humana. Bem, ou pelo menos a dele.

E, presume-se, por osmose subliminar associativa, a da Isabela.

A menção do americano Paulo Auster confunde-me e levanta-me imediatas suspeitas quanto à proeminência fotográfica do Bóbbi. Pois na sua Timbuktu, não a africana mas uma mitológica e utópica urbe, são as memórias do rafeiro Mr. Bones que descascam, numa odisseia tão deprimente como cativante, a existência de Willy Christmas, um homem infeliz e falhado, que morre à porta da casa onde o seu ídolo, Edgar Allan Poe, vivera. Será isso? O que acha, quais as memórias de Bóbbi da sua dona e da Lourenço Marques que a viu nascer e crescer? será que Bóbbi também regressou?

Primo Levi suscitou-me ainda maior supresa. Pois a sua escrita, sendo judeu e tendo passado pelos maiores horrores da carnificina Nazi, incluindo quase um ano em Auschwitz-Birkenau, é mais conhecida pelo conteúdo memorialista desse período – memórias que o perseguiram até à morte. Em 1987, o grande Elie Wiesel, que era professor na Universidade de Boston, onde estudei gestão e um pouco sobre o judaísmo nessa altura e durante dois anos, e ele próprio um sobrevivente do horror Nazi, disse que, quando morreu – e referindo-se às suas peristentes e pungentes memórias – Levi na verdade morrera em Auschwitz mas quarenta anos depois.

Que associações poderá haver entre a obra e o percurso de Primo Levi e este livro de Isabela? A curiosidade avoluma-se dentro de mim.

Procurei, e descubro que o livro não tem índice. Tem, isso sim, em 136 páginas (as que estão numeradas), textos sequenciados, de 1 a 43. Sem títulos. Só os números.

E na verdade, aí me apercebi, afinal aquilo não é só um livro (daí, decorrem, presume-se, os 15 euros).

Logo a seguir ao texto Número 43, depois de uma folha com umas das fotos piquininas de Lourenço Marques que não se vê bem, tem outra onde apenas figura, a meio, a singela e solitária frase, que se presume dedicatória: “À memória do meu pai”.

Repare-se no detalhe: não é em memória do pai. É à memória do pai.

Hum.

E a seguir tem uma página que diz, na vertical, com o texto a apontar na direcção da lomba do livro, em letras garrafais “Adenda” onde, aí sim- surpresa!- tem um índice, mas um indicando o que vem a seguir (aos textos numerados de 1 a 43): seis textos descritos como posts, incluindo o intrigantemente títulado Falta dinamitar o Cristo-Rei e logo abaixo o assaz mais invocativo de assunto gastronómico, Fígado de Porco; e,  finalmente,  Uma conversa com Isabela, que inclui, um pouco como nas (brevemente findas) conversas do Professor Marcello na RTP aos domingos à noite, e à margem das doze páginas do texto da entrevista propriamente dita (feita por não se sabe quem) as sugestões dela de dez livros, cinco datas e cinco lugares.

Portanto, isto é o que se pode chamar um pacote completo.

Que agora é meu.

Por, afinal, uns modestos 15 euros.

E que, feito o investimento e aguçada a curiosidade, vou ler este fim de semana, de fio a pavio.

E de que logo darei conta aos exmos leitores, após reler também a prosa canciana et al.

Para tirarmos esta coisa a limpo de uma vez por todas.

Um bom fim de semana a todos.

10/01/2010

THE BEST OF ISABELA FIGUEIREDO

o horizonte nos contempla

por ABM (Alcoentre, 9 de Janeiro de 2010)

Fernanda Câncio, a putativa (segundo certa imprensa) namorada do actual primeiro-ministro português, José Sócrates, e fogosa escriba num Diário de Notícias infelizmente cada vez menos de referência, escreveu um curioso texto – que saiu na sua edição de hoje – sobre uma sra chamada Isabela, que, depreendo da leitura, como muitos de nós saiu um pouco a pontapé do Moçambique pós- independente e revolucionário aos 12 anos de idade, e sobre um livrinho que ela escreveu e que acabou de ser publicado, que dá pelo nome algo enigmático de Caderno de Memórias Coloniais.

Que não li.

Mas li o comentário de Câncio, que sempre vale alguma coisa e que me deixou algo mistificado.

Vamos por partes.

Deixou-me algo mistificado porque a Fernanda que, como já vi outras pessoas dizer noutras ocasiões, deve perceber tanto da realidade colonial como eu de física nuclear, começa por colocar legiões de “retornados” num vasto manicómio virtual, todos mentirosos e todos vivendo numa ilusão colectivamente induzida com o fito de não enfrentar uma inconfessável série de “crimes contra a Humanidade”, que, lá vai o argumento, só pode ser o que (no meu caso) os nossos pais e avós andaram todos lá pelas Áfricas durante séculos a cometer contra os nativos. Voluntária e até empenhadamente e, no caso do pai da Isabela, com requintes de malvadez.

Isso a acrescentar àquela outra Grande Ilusão Colectiva dos brancos e portugueses da África portuguesa (nunca os de cá, coitados) claro, a de que aquilo era “nosso”. Que se sabia perfeitamente que não era, especialmente a posteriori.

Bem, todos – especifique-se – menos a sua amiga Isabela.

No seu caso, Fernanda diz que a Isabela baseou os Cadernos nos seus escritos, alguns dos quais foi colocando num blogue de que nunca ouvi falar antes na minha vida, que alimenta regularmente e que se chama – algo deceptivamente – Mundo Perfeito. Bem, não pode ser assim tão perfeito como isso, se a imagem de cabeçalho que a Isabela escolheu para a porta do seu blogue é um corpo de mulher de cuecas e com cabeça de cão, sentada numa estufa com flores. É uma invocação que diz muito. Para mim uma alegoria de um mundo perfeito ( aquilo a que Sir Thomas More chamou em tempos de Utopia )podia ser a fotografia acima – mais ou menos. E ainda tem à porta da estufa retinintes e polidos avisos sobre os seus direitos de autora, que, na minha experiência na internet, são ah tão simpáticos como não valem um caracol furado. Neste meio a ofensa não se combate com avisos, combate-se com unhas e dentes.

Ou ignora-se.

Ora eis algo que não me ocorrera antes, isto de ter um blogue na internet, onde vou escrevinhando umas coisinhas e um belo dia, imagino que para aqueles que não têm internet, arranjo uma editora e escarrapacho tudo outra vez numa publicação, à laia de The Best of The Delagoa Bay Review. Bem, sempre tira a impressão fungível e a desconfortável sensação de estar sózinho num submarino e que as palavras que aqui escrevemos em suporte incompreensivelmente electrónico, pareçam um pouco menos aquilo que os americanos chamam pissing in the wind (no nosso vernacular, fazer chichi ao vento). Tenho que falar com o nosso Senador e a Sra Baronesa em reunião de Conselho de Machamba, mas receio que, numa futura edição do Caderno de Memórias Delagoabaianas, eu seja sumariamente relegado para uma recôndita nota de rodapé.

E lá se iria a etérea sensação da imortalidade literária.

Mas podia oferecer cópias dos livrinhos pelo Natal, o que com um blogue, admita-se, não se pode fazer.

A mistificação do comentário publicado no Diário de Notícias sobre a Isabela tem que ver com a evocação de um passado moçambicano que mais parece uma longa e pesada sessão de terapia duma branca com sentimentos negativos sobre a sua experiência africana e, quiçá, sobre o seu estatuto de retornada num Portugal revolucionário e recém-exorcizado da sua experiência colonial-bélica. Pelo meio, vagueiam ideias da injustiça daquilo tudo, o trauma do (presumo) rescaldo do 7 de Setembro de 1974 e ainda o fantasma do pai, que, recita, chamava coisas feias aos colonizados com pele mais escura e que, num contexto em que – creio – ninguém tinha “direitos”, tinham ainda menos que os colonizados mais clarinhos. A Fernanda, cuja experiência africana (e muito menos moçambicana) repito, desconheço por completo, arremata, no que presumo possa apenas ser uma infeliz exaltação literária, dizendo que vivia-se (em Moçambique) num país onde se podia atropelar um negro e não ir para a prisão. Pois. E esqueceu-se de referir que comíamos meninos pretos pequeninos para o matabicho.

Decorre que com a independência tudo isso acabou. E que com os assassínios de brancos por representantes armados da maioria negra nos arredores de Lourenço Marques em 1974 fez-se, apenas, justiça. Ai sim Fernanda? hum, sorte, então eu ter sobrevivido aquela pouca vergonha toda, e não graças à sua boa vontade.

Há aqui dois aspectos que me induzem a pensar que talvez este tipo de intro-retrospecção tenha que ser trabalhado um bocadinho mais.

O primeiro aspecto é que, segundo a Fernanda, cuja retórica para estes efeitos, aceite-se, é mais ou menos irrelevante, a Isabela saíu de Lourenço Marques em 1975 com 12 anos de idade. Se calhar viajámos os dois no mesmo avião da TAP em alturas diferentes, só que eu tinha 15 anos de idade, diferença que importa para efeitos desta discussão. Pelo menos eu já não era virgem, naquele e em muitos outros aspectos da vida.

Ora, para alguém que saíu de Lourenço Marques em 1975 com 12 anos de idade, a análise global da situação que a Fernanda diz que a Isabela faz, a crer-se biográfica e despida de preconceitos e análises que só possam ter sido posteriormente adquiridos, devem ser deveras de assombrar, vindos de uma miúda. A minha irmã mais nova, que tinha a mesma idade e teve o mesmíssimo percurso que a Isabela, mal sabia jogar ao berlinde. E lá em casa ainda estamos à espera dos seus cadernos.

Mas admita-se que pode ser que seja a nua verdade no seu caso pessoal, em que a forma como pinta o pai assusta mais que o papão colonial-racista. O que refere dava para horas e horas (e horas e horas) de sessões de psicoterapia.

Mas não logra por um segundo pintar uma realidade maior.

O segundo aspecto é que, por minha parte – e já o tentei explicar uma vez ao JPT e sob pena de me repetir – ao contrário de alguns eu vivi lá e, no meu microcosmo, o pai BM e a quase totalidade das pessoas com quem contactava, não chamava nomes a ninguém, branco ou preto, eu não era inibido de me dar com ninguém com base na cor da pele e, se não disputo (mas não desta maneira) a sustentabilidade do tal “ídilio colonial” de Lourenço Marques que a Fernanda diz que não existia (existia, sim, que chatice), pintar essa era e todas as vastas e complexíssimas relações pessoais, económicas, sociais e raciais de Moçambique no fim da era colonial em Lourenço Marques com um simples rótulo de “racismo” e “abuso” é totalmente descabido. É falso. É absurdo. É ridículo. É uma fraude moral, intelectual e histórica. É projectar os seus preconceitos actuais, ignorar as suas causas e tentar justificar moralmente os seus efeitos e a pulhice que veio a seguir, e em que de longe as maiores vítimas – surpresa – foram sempre, e quase só, milhões de moçambicanos, que de uma ditadura fascista e colonial passaram directamente para outra, não muito diferente.

Especialmente, destaco, se se estiver a falar no começo dos anos 70, em Lourenço Marques.

Claro que lá havia racismo. Montes. Claro que havia injustiça, incluindo a racial. Claro que tinha que acabar. Que tinha que mudar. Claro que havia gente como o pai da Isabela. Se calhar até bem pior. Claro que aquilo era uma ditadura, com tentáculos em Portugal, um anacromismo total num mundo já quase sem impérios coloniais e em que os países comunistas activamente armavam e patrocinavam os que combatiam o que sobrava de colonialismo no mundo. Ser colonial a partir de 1950 tinha o seu custo em lágrimas, suor e sangue. Salazar estava disposto a pagá-lo, outros não. Em 1974, venceram estes.

Mas cuidado ao pintar tudo de negro. O pior racismo que vi na minha vida não foi em Moçambique. Foi nos Estados Unidos quando para lá fui viver em 1977. Portugal hoje não é muito melhor. Quotidianamente vejo as maiores injustiças serem cometidas em Portugal hoje que não se distinguem assim tanto das injustiças que haviam em Lourenço Marques e que há em toda a parte. As injustiças económicas que se observavam há quarenta anos em Moçambique, aliás, ainda se mantêm em larga parte. Pois não é de um dia para o outro que se capacitam milhões de pessoas pobres, rurais e analfabetas que vivem de subsistência no mato e se lhes proporciona, e aos seus filhos, condições para ascensão social e económica.

O crime, se é que se pode dizer assim, não era do que a Isabela diz que vislumbrou aos dez anos de idade e muito menos dos tiques racistas do seu partido pai, que não conheci e pelos vistos ainda bem. É de um país que estava na mão de um ditador que escolheu manter um statu quo décadas depois da altura em que deveria ter iniciado medidas para atempadamente preparar e entregar o poder político e a gestão da nação moçambicana aos seus filhos, descomplexadamente e de cabeça erguida.

Provavelmente quer eu quer a Isabela teríamos lá ficado, a viver em paz e sossego e estaríamos a ajudar a construir esse então novo país, em vez de andarmos à esmola de familiares hostis e dependentes de amizades que se calhar nunca o foram, olhando no espelho à noite e inventando na mente o delírio de que aqui pertencíamos.

E a ter que tentar engolir de terceiros a tese de conspiração de que o que ali porventura encontrámos de bom e belo – e que hoje é apenas uma memória, só isso – não foi, não podia ser, que estamos a mentir aos outros e, pior, a nós próprios.

Vão à merda.

Dito isto tudo, acho que um dia destes lá vou ter que ir procurar o tal de livro para ver mesmo do que é que a Isabela está a falar.

Ou talvez não.

Quanto ao blogue, para já fico à porta.

05/12/2009

No Olho do Furacão

Filed under: Economia de Moçambique, Portugal-Moçambique — ABM @ 11:58 am

zim dollars

por ABM (Cascais, 5 de Dezembro de 2009)

Se há coisa que aprendi na vida é que a vida está sempre pronta para nos ensinar coisas novas. Cabe-nos ter valores fundamentais para que possamos gerir o presente e tentar antecipar algum futuro.

Na área do nosso dinheiro, esta é uma altura de aprender e de analisar esses valores fundamentais. Pois as opções que tomarmos agora e nos próximos tempos poderão ser críticas.

Se se analisarem alguns dos elementos económicos que nos afectam para além do emprego e ou negócio em que estivermos envolvidos – e cinjo-me a Portugal e Moçambique, essencialmente – os indicadores permanecem algo preocupantes.

Moçambique

Em Moçambique, há a relativa boa notícia de que a inflação média baixou para níveis históricos – 1.4% nos dez meses que terminaram em Outubro. Mas o défice da balança, o corte no investimento e fontes de financiamento externos podem vir a dar problemas e a desvalorização já observada na cotação do Metical auguram dias de renovada inflação. Pois – e o governo moçambicano é o primeiro a dizê-lo e muito bem – Moçambique ainda importa imenso, mas, mais importante, importa demasiadas coisas que não deveria ter que importar. Essa velha solução “terceiro-mundista” e pouco “globalizadora” que se chama a substituição das importações, deveria ser “o” desígnio nacional. O país tem uma relativa almofada na aparentemente perpétua disposição de cerca de vinte países para subsidiarem os custos do seu funcionamento e os projectos de infra-estrutura. Mas essa disposição não é na verdade perpétua. A confiança dos agentes económicos locais baixou e o resultado foi a saída de milhões de dólares em moeda estrangeira do mercado pela porta do cavalo, dinheiro esse que faz falta ao país. Quando há poucos anos foi relativamente fácil montar a operação de aquisição da maioria do capital da HCB (a “reversão”…) hoje a montagem da operação de financiamento da barragem e central de Mpanda-Nkua (cuja construção defendo devia ser iniciada ainda nesta legislatura) está a ser menos fácil. Para além de toda a trepidação em termos do impacto ambiental, as fontes de financiamento não são o que eram há cinco anos.

E há ainda assuntos por encerrar, como por exemplo a manutenção dos preços dos combustíveis a níveis artificialmente subsidiados pelo governo. Mais cedo ou mais tarde, esses valores vão ter que ser ajustados, com as previsíveis consequências para os factores de custo.

No entanto, politicamente o país saíu de uma eleição importante com um mandato forte para o governo do partido maioritário em quase todas as esferas da governação. E em termos macroeconómicos a gestão tem sido particularmente cuidadosa.

Não se passa o mesmo em Portugal.

Portugal

As mais recentes estimativas para a economia portuguesa são quase assustadoras. Apesar de se esperar uma  inflação nominal negativa este ano, há certos factores como o custo dos combustíveis que estão a níveis historicamente muito altos. O défice orçamental, que se estima agora em cerca de 8.5%, é uma loucura, apenas ofuscado na zona Euro pela Irlanda, Espanha, Itália e a Grécia, que são loucuras absolutas (mas com a desgraça dos outros todos podemos aguentar, não é?). Estes valores não levam em conta a intenção do governo central em continuar com chamados mega-projectos, cujo custo será enorme e cujo financiamento terá que vir de fora, e ainda com elementos pouco descuráveis como a contabilização da intervenção do Estado na nacionalização do Banco Português de Negócios e do Banco Privado Português, cujos processos se vão arrastando sem fim à vista. Adicione-se a esse contexto a maior dívida externa privada da história de Portugal e a crescente onda de desemprego, que deverá subir para os 11 ou 12 por cento antes que o próximo ano termine. A pressão política para aumentar os subsídios aos desempregados e as empresas já tecnicamente falidas e sem vendas aumentará e com ela os custos do governo. Governo esse que não só não tem qualquer maioria ou mandato especial para governar, como ainda por cima tem que lidar com a oposição menos organizada e mais descabida que já se viu numa geração.

O efeito destes condicionalismos económicos e políticos serão uma maior tensão social, uma maior chance de algum “caos” em termos de tomada de decisões, um contínuo aumento nos impostos directos e indirectos, uma maior pressão sobre o património e os rendimentos dos contribuintes particulares e empresas, bem como medidas “anti-corrupção” – não tanto porque a corrupção seja algo errado ou imoral, mas porque o governo central precisa desesperadamente de mais dinheiro para custear os seus programas e pagar as suas dívidas.

Curiosamente, mais por causa dos problemas similares nos Estados Unidos, o euro até agora tem mantido um valor considerável contra o dólar e a libra. Mas isso pode mudar, se se vier a confirmar que a economia europeia demorará a recuperar e irá absorver directamente os custos de financiamento dos défices acumulados dos seus estados via aquilo que os americanos já fizeram – imprimindo mais papel-moeda. Uma descida no valor do euro ajudaria nas exportações mas pressionaria a inflação e subiria as taxas de juro. Domesticamente, os efeitos poderiam ser perversos.

No caso português, corre-se ainda o risco de alguma contaminação resultante da deterioração económica em Espanha, um parceiro privilegiado e muito entrosado já com Portugal, onde a taxa de desemprego já se cifra em 20% e que está a passar por uma quebra sem precedente no sector imobiliário.

Claro que há muito pior que isso. Não consigo imaginar o que é viver estes dias no Zimbabué. Que cola com o centro de Moçambique.

27/11/2009

Gabriel Teixeira, Francisco e Nuno Craveiro Lopes e Moçambique

1956 Craveiro Lopes e Gabriel Teixeira(Na foto acima, Francisco Craveiro Lopes, então Presidente da República Portuguesa, de farda branca e óculos. De fato e chapéu à civil à direita na foto está Gabriel Teixeira, então Governador Geral de Moçambique. Numa visita ao Parque Nacional da Gorongosa, integrada numa visita de Estado à Província e à União Sul Africana, Julho e Agosto de 1956)

por ABM (Cascais, 26 de Novembro de 2009)

Parte da beleza de escrever num meio destes é que há pessoas de boa vontade que lêem alguns escritos e não só comentam e discutem, o que é interessante, mas nalguns casos dão outros contributos.

Numa crónica que preparei ontem sobre Gabriel Teixeira, um dos problemas que tive foi que, apesar de uma longa pesquisa na internet, não consegui encontrar uma -uma só que fosse – fotografia do distinto oficial e governante de Moçambique português. Felizmente, lá longe por detrás dos coqueiros e dos leões e búfalos da Serra da Gorongosa, o meu muito caro Dr. Vasco Galante  teve a iniciativa de enviar a foto acima, onde se pode ver o então governador Gabriel Teixeira. Muito grato e obrigado. Ajudou a compor a história de mais maneiras do que pensa. Continue a ler e vai ver como.

A “aparição” de Craveiro Lopes na fotografia acima apresentada motiva-me a mencionar algumas peças de trívia moçambicana que o tempo quase que apagou e que fazem parte do fabrico do Moçambique actual.

Francisco Craveiro Lopes foi presidente de Portugal entre Carmona e Américo Tomás. A sua presidência foi no mínimo penosa, por várias razões. São legendárias as suas ambivalências em relação a Salazar e aos destinos por que o seu país navegava. No fim, Salazar mandou-lhe uma simples nota indicando que a União Nacional (que era ele) seleccionara o mais dócil e ultra Américo Tomás para “concorrer” para a eleição de 1958 – a famosa eleição em que concorreu o General Humberto Delgado.

Tudo indica que Craveiro Lopes era um homem bom e decente, com um distinto currículo. O seu pai fora um general e governador da Índia e formou-se no Colégio Militar. Antes dele houve mais. Mais importante, foi um homem que se apercebeu, por mais suavemente que fosse, que algo corria mal na sua república, o que era mais do que se pode dizer de muito boa gente na altura. Foi o único presidente que activamente conspirou contra o regime que Salazar impora aos portugueses. Foi por isso alvo das maiores infâmias por parte dos correlegionários do regime. A ligação acima dá alguns detalhes e testemunhos sobre o que isso foi.

O que pouca gente sabe é que a primeira vez que Craveiro Lopes apareceu no cenário nacional foi pelo que fez em Moçambique, quando, em plena I Guerra Mundial, esteve na fronteira entre o Norte de Moçambique e o então Tanganica alemão, na qualidade de Aspirante de Cavalaria e distinguiu-se no combate aos alemães em 1915 e 1916, nomeadamente em Newala e Quionga. Após voltar à Europa em 1917 para se casar e tirar um curso de aviador, voltou a Moçambique em 1918 por algum tempo.

Craveiro Lopes teve quatro filhos, tudo boa gente mas aqui mencionarei apenas o seu filho Nuno, que viveu durante muitos anos em Moçambique e que, para além de opositor ao regime, foi um arquitecto que deixou obra interessante quer em Portugal quer em Moçambique, para onde veio viver em 1952 e trabalhar como responsável pelo Gabinete de Urbanização e Obras Públicas. A igreja de Santo António da Polana e a Igreja do Sagrado Coração de Jesus no Chibuto são de sua autoria.

Igreja sto ant Polana

Aliás há uma história interessante sobre Nuno Craveiro Lopes e a Igreja de Santo António da Polana. No seu projecto original, aquela horrível casa onde viviam (vivem?) os padres, e que foi erguida mesmo ao lado do ainda hoje arrojado edifício, ficava muito mais longe. Mas os senhores padres não se viam a andar a pé para entrar no templo e mandaram “encostar” a casa à igreja e fazer um túnel de acesso entre os dois edifícios para não molharem a batina, o que enfureceu o arquitecto (ele deve ter desmaiado quando fizeram o ainda mais arrepiante “salão de festas” por detrás, um armazém, basicamente, onde fui inúmeras vezes ao cinema – por cinco escudos via o filme e ainda comia uma bola de Berlim e bebia uma Coca-Cola).

Outro incidente igualmente grave foi que, no projecto original da igreja em si, tal como concebido por Craveiro Lopes, o altar-mor ficava não onde está hoje mas no centro da igreja, directamente debaixo da cúpula do espremedor de limão, onde o efeito da luz ao meio dia era mágico. E o chão da igreja era para ser feito em mármore branco. Ou seja, nas cerimónias os crentes ficariam sentados todos em círculo à volta do altar-mor, iluminado pelos vitrais coloridos de cima, o que é conceptualmente muito mais belo e dinâmico que a chachada que acabou por ser imposta no fim.

LM Igreja S A da Polana

Mas os srs. padres no fim mais uma vez deram a volta. Até hoje, aquilo ficou organizado em estilo teatro, o altar-mor encostado à parede e o povão crente sentado de frente.

Altar mor da Igreja st ant Polana

13/10/2009

J&M Lazarus e Lisboa, Abril de 1915

jmlazarus

por ABM

Dando uma achega à detalhada inserção do JPT, relativa aos primeiros fotógrafos a operar em Moçambique, acima reproduzo um anúncio publicitário de J & M Lazarus, que terão operado em Barberton no fim do século XIX mais ou menos na altura em que naquela vila da então República Sul Africana Meridional (mais tarde, Transvaal, a seguir Mpumalanga) ocorrera uma corrida ao ouro falsa, depois mudaram-se para Lourenço Marques (mais tarde, Maputo), onde operaram durante alguns anos e deixaram um interessante espólio fotográfico na forma de postais e trabalhos para a então edilidade. Os irmãos Lazarus depois mudaram-se para Lisboa, onde passaram a operar, sendo mencionados nomeadamente no espólio da colecção fotográfica da presidência da república portuguesa, donde se deduz serem então considerados entre os melhores fotógrafos da capital portuguesa.

Obtive o anúncio acima reproduzido numa interessantíssima revista lisboeta, dirigida à classe burguesa, que se chama Contemporanea (sem acento circunflexo), edição de Abril de 1915, página 13.

A Europa estava então nos primeiros seis meses da I Guerra Mundial (então conhecida apenas como a Grande Guerra) e Portugal na altura ainda não fazia parte do conflito. Entraria mais tarde para salvar as colónias e porque, quase caricatamente, os militares portugueses, com tesão de mijo porventura por causa do Gungunhana, achavam que podiam jogar a sério na Liga Principal. De uma Paris assediada pelos alemães a Leste, um correspondente da revista, Justino de Montalvão, redigira um sórdido e sombrio artigo, descrevendo as vicissitudes dos parisienses, a cidade silenciosa, às escuras, sem transportes e sem vida nocturna, sob a constante ameaça dos bombardeamentos pelos zeppelins alemães.

Em Abril de 1915 a república portuguesa existia há apenas cinco anos, desde que houvera umas escaramuças em Lisboa e o rei fugira e se procedera ao envio de telegramas para as províncias e colónias a avisar que fora instaurada uma – a -república. O novo regime era caracterizado por um optimismo quase fantasioso, uma instabilidade total e um anti-clericalismo sem precedente, mas já mostrava sinais claros de estar a perder o rumo e assustado pelos efeitos de uma potencialmente catastrófica participação no conflito mundial. Estupidamente, entrou 11 meses depois: La Lys foi infame; de resto foi apenas muito mau: um submarino (o U-155, que no fim roubou uns chicharros para um churrasco) mandou uns tiros contra Ponta Delgada, a cidade do Funchal foi atacada uma vez, Paul von Lettow-Vorbeck fez o que bem quis no Norte de Moçambique durante quatro anos e houve umas chaticezitas em Angola.

No cômputo geral, os 7500 soldados portugueses mortos num único dia em La Lys (9 de Abril de 1918) permitiram que a delegação portuguesa tomasse um lugar entre os vencedores em Versailles, pedisse umas massas valentes e mantivesse o Império.

Nas páginas da Contemporanea, surpreendentemente pelo menos para mim, que tinha a impressão que a melhoria nas relações entre a República e a Igreja Católica só ocorrera com a ditadura de Sidónio Pais, há um artigo acompanhado de fotografias, atestando parcialmente esse degêlo já em Abril de 1915, alternando fotografias do General Pimenta de Castro e do seu governo (caracteristicamente breve: nomeado a 28 de Janeiro, derrubado em 15 de Maio) com imagens das procissões e missas que decorriam na capital portuguesa durante a Páscoa Católica nesse mês: um mar negro de devotos à porta das igrejas.

Nesse ano de 1915, um obscuro tradutor de nome Fernando António Nogueira de Seabra Pessoa, anestesiado por doses consideráveis de aguardente Águia Real, escrevia confusos gatafunhos e deixava frases soltas sobre literatura, misticismo e astrologia no seu livro de notas e, assinando sob o então novel pseudónimo de Álvaro de Campos, enviava uma carta indignada ao Diário de Notícias, reclamando contra o tratamento feito nas suas páginas ao Nº1 da revista Orpheu, a um artigo ali contido e escrito por “um tal” de Fernando Pessoa, e ainda ao livro, então publicado, de Mário de Sá Carneiro. A carta termina assim: ” espero da lealdade jornalística de V.Exa a inserção desta carta em lugar onde pelo menos os jornalistas a leiam. Na impossibilidade de fazer os nossos críticos compreender, tentemos ao menos levá-los a fingir que compreendem.”

Que foi o que fiz.

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