por ABM (1 de Setembro de 2010)
Um dos mistérios em redor dos eventos na Covilhã aquando da deslocacão da equipa de controlo anti-doping para atestar da condição da selecção nacional de futebol é que se sabe que o controlo foi feito.
E que o seleccionador, Carlos Queiroz, terá constestado as circunstâncias ou a perturbação causada pela referida visita.
Alguns dos exmos leitores e calhar não sabem do que se está a falar. Afinal, recolher umas amostras de urina não parece ser complicado à partida.
Talvez sim, talvez não.
Vou explicar.
Nos meus tempos de desportista de competição, há uns séculos atrás, apesar de agora se saber que havia em abundância aquilo que hoje se considera doping em quantidades apreciáveis – até na natação, o desporto que eu praticava – não havia nem organismos nem protocolos para o seu controlo a nível nacional. E mesmo a nível interncaional, era extremamente raro.
A única vez que fui sujeito a um controlo anti-doping foi no verão de 1976, durante os jogos olímpicos de Montréal. Eu tinha 16 anos e, com quatro colegas, representava a natação portuguesa de então.
O que aconteceu foi que, de manhã disputavam-se as provas eliminatórias, e à tarde às provas finais.
Numa das eliminatórias, de manhã, logo após uma prova, apareceu um tipo à borda da piscina mal eu acabara de nadar, e mandou-me acompanhá-lo.
Pelo caminho, informou-se que eu seria sujeito a um controlo anti-doping.
Eu nem sabia do que ele estava a falar mas segui-o.
Levou-me para uma sala espaçosa e sem janelas, onde havia umas cadeiras e uma televisão a transmitir as provas na piscina ali ao lado, e fechou-me lá.
Indicou-me que o procedimento era que eu teria que urinar para uma pipeta em frente a ele e depois podia ir-me juntar de novo ao resto da equipa.
Dali a uns minutos, para minha surpresa, acompanhada por uma mulher, entrou na mesma sala a nadadora alemã-oriental Kornelia Ender (a menina na foto acima).
Eu sabia quem era Kornelia Ender pois vira fotos dela e lembro-me de a minha irmã Cló, que nadara também, falara sobre ela mais que uma vez. Era na altura uma legenda da natação mundial, com recordes mundiais batidos e parte daquela geração de atletas de craveira mundial que a RDA usava e abusava para puxar o lustre na podridão que era o seu regime. Posteriormente se comprovou que, como vários outros atletas, Kornelia Ender se dopou até dizer chega.
Mas na altura isso eram só rumores. Em parte por constatação visual simples. Ao pé das outras nadadoras, as atletas da RDA eram umas bestas humanas. Ao pé dos homens elas pareciam ser umas bestas.
E ali estávamos os dois, sentados, de fato de banho e toalha, sózinhos e vigiados pelos dois funcionários através de um vidro (eles estavam numa sala contígua).
Falámos pouco. O inglês dela era uma desgraça e eu não falava uma palavra de alemão.
Obviamente, ambos sofríamos do mesmo pequeno problema: antes de nadar nas provas, um dos rituais normais é ir ao quarto de banho e fazer-se chi-chi. Ora, tendo acabado as provas há minutos, não havia nada na bexiga para espremer para a pipeta que os diligentes funcionários tinham na mão à espera para fazer o seu trabalho.
Mas sem chi-chi na pipeta, não se saía dali.
Não que isso fosse um problema. Se fosse preciso ficávamos lá fechados o dia inteiro.
Para ajudar, os senhores da brigada anti-doping tinham disponibilizado um frigorífico cheio de águas, sumos e até cerveja.
Levou-me umas três horas para que a minha bexiga produzisse algo que se assemelhasse com a quantidade mínima para encher a pipeta. A Kornelia tinha o mesmo problema.
Mas quando fiz o sinal ao jovem para avançarmos com a colheita, ele explicou-me que eu teria que fazer o chi-chi directamente em frente a ele, eu de pé com a pipeta, e ele sentado à minha frente a olhar para a piloca.
Bem, eu não sei quantos exmos Leitores já passaram por uma destas, mas no momento crucial tive um bloqueio mental e passou-me a vontade de urinar (que para começar já era ténue).
Voltei para a sala, onde ainda estava a Kornelia e onde, já algo farto daquilo tudo, emborquei mais um sumo de laranja.
Passou mais uma hora, e finalmente, depois de um esforço hercúleo, lá enchi a pipeta, o fulano a olhar atentamente para o jorrozinho amarelo a encher a sua pipeta.
E me deixaram ir embora.
Nunca mais me disseram nada. Na vida, só vi a Kornelia Ender mais uma vez, um ano depois, quando ela veio com o Roland Mathes (campeão da RDA e mais tarde seu marido durante alguns anos) a Portugal inaugurar a piscina do SFUAP em Almada. Sendo Almada na altura uma espécie de reduto comunista no Novo Portugal, a inauguração foi uma daquelas festas com bandeiras vermelhas do PC, o hino da internacional comunista, montes de comida e, claro, a presença dos expoentes da RDA, o país socialista irmão da Cova da Piedade. Tanto Ender como Mathes estavam ambos fora de forma, mas deu para abrilhantar a festa.
Na altura, ela não me reconheceu e eu respirei de alívio por assim ser.
Voltando à questão do episódio do controlo anti-doping na Covilhã.
Se a equipa de controlo anti-doping aparecesse no começo de um treino, é de esperar que os meninos tivessem feito previamente os seus mundanos chi-chis antes de começar. Se lhes fizessem o que foi feito a mim em 1976, então não haveria treino.
Mas não sei. Ninguém explicou ainda.