Tudo indica que, possivelmente antes que cesse o segundo e último mandato de Armando Guebuza, a capital moçambicana passará a beneficiar de uma ponte que ligará directamente a Catembe (segundo uma recente alteração, que adopto, Ka Tembe) à baixa da cidade.
Onde neste preciso momento mil metros quadrados andam a ser vendidos por quase um milhão de dólares.
E quase não há.
Numa visita feita o dia de ontem à até recentemente pacata localidade, o Presidente, num daqueles comícios mais ou menos da praxe com a população, entre outros assuntos menores, como o que aconteceu ao Fundo Distrital de Desenvolvimento (uma medida que invariavelmente vem à baila), falou nesta questão.
Não sobre a ponte propriamente dita, cujo financiamento anda agora a ser negociado, e que certamente há-de representar uma dívida considerável para o erário público, e traduzida em portagens sustentáveis apenas para os mais abonados.
Ao que o Presidente Guebuza referiu-se foi à especulação imobiliária na zona.
Com a construção da ponte, pela primeira vez desde a Independência, abre-se uma nova, gigantesca e estruturante “frente” imobiliária para a crescente metrópole. Basta olhar para um mapa e constatar o que significa para a cidade a ligação à outra margem da Baía.
E eis o que me surpreende – especialmente dado estarmos a falar de Moçambique, onde, por um dogma curiosa e teimosamente preservado dos tempos do comunismo, a terra é tida como pertencendo ao povo, essa titularidade residindo directamente nas mãos do Estado, ou seja, do governo.
Sendo a ponte um projecto que poderá revolucionar Maputo em várias vertentes, e que na história da cidade só encontra precedente na inauguração da linha de caminho de ferro que primeiro ligou a velha Lourenço Marques a Pretória em 1895, supreende-me que nada tenha lido ainda sobre as medidas imediatas que devem ser tomadas na Ka Tembe.
Ainda por cima se se tiver em conta que a Ka Tembe é, efectivamente, um bairro de Maputo, ou seja, que reporta ao seu Conselho Municipal, na capital.
E tendo em conta que alguém, de alguma forma, vai ter que pagar a ponte.
E, mais importante, que a região vai passar a integrar Maputo, ou seja, vai deixar de ser mato para ser cidade, exigindo extensas obras de infra-estruturas como água, electricidade, esgotos, estradas, comunicações, escolas, estações da polícia, lojas, jardins, instalações desportivas, etc.
Acresce que Maputo não pode de forma alguma correr o risco de cometer o erro feito entre os anos 60-80, de se deixar “cintar” pelo tipo de urbanização que existe a norte, em que a zona está dividida em milhares e milhares de pequenos lotes com palhotas e construções precárias, sem condições, muito difícil de alterar para integrar a necessária expansão do que eufemísticamente se chama a Cidade do Cimento.
Pois este é o último grande espaço livre para onde a cidade se pode expandir. se tal acontecer, perde-se a última chance de continuar a expansão moderna da cidade – com infra-estruturas, para a vertical, com uma configuração virada para o futuro.
Ora, a única maneira de assegurar que isto seja feito é com a intervenção do Estado, aqui realmente agindo em defesa do bem comum.
O Estado deveria imediatamente agir para 1. “congelar” e declarar de utilidade pública num perímetro de uns cinco quilómetros em redor de onde a ponte irá desembocar na Ka Tembe, 2. levar a cabo um estudo quanto ao eventual aterro, esgotos, acessibilidades, loteamento, planeamento de áreas para uso público e privado, planeamento do que é que vai poder ser construído e onde, como, quando, a que preços, impacto ambiental, etc 3. Submeter esse plano ao escrutínio público para debate e posterior aprovação, 4. Ao mesmo tempo elaborar o plano financeiro que está subjacente a toda a operação, no que toca a custos, receitas e endividamento, e finalmente 5. seguir o plano aprovado sem fazer nem deixar fazer-se canganhiça pelo meio.
Este procedimento é normal e já devia estar feito e sido divulgado há muito tempo.
Antes da Independência, Maputo fez isto mais do que uma vez.
Mas até agora, não há conhecimento de qualquer plano ter sido trazido a público.
Em vez disso, assiste-se ao Presidente, numa espécie dum comício informal, ontem, em diálogo com a população, referir-se quase de passagem à preocupação dos actuais residentes quanto à febre especulativa que já se faz sentir no local – e a que muitos em nada beneficiará. Certamente não ao bem comum.
E quando se fala aqui em “febre especulativa”, toda a gente sabe perfeitamente de quem se está a falar. De certeza que não é o povão que está metido nisso.
O processo de concessão de DUAT’s continua (mal, pelos vistos) como se nada se passasse de invulgar.
Ora, dada a dimensão, importância crucial e impacto deste projecto, pelas razões acima aludidas, é absolutamente cristalina a evidência de que a única entidade que pode, que deve e no fim que tem que “especular” com os terrenos da Ka Tembe é o próprio Estado, talvez através duma entidade especificamente criada para o efeito, que assegure que se vão buscar os dinheiros necessários para as infra-estruturas que vão ter que ser criadas.
Criar a ponte com o resultado que se vai criar apenas mais uma oportunidade de aumentar mais fortunas privadas resultantes das consequentes negociatas imobiliárias, para criar mais uma espécie de Xipamanine para os ricos, é contraproducente, ilógico e quase certamente pouco moral.
Especialmente num país com os contornos de Moçambique.
Especialmente numa cidade como a cidade de Maputo.