THE DELAGOA BAY REVIEW

30/03/2010

QUEM VIVE NA PERIFERIA

por ABM (Alcoentre, 30 de Março de 2010)

Nas últimas semanas referi primeiro um projecto ambicioso para construir um bairro de luxo nos aterros onde se situava a FACIM na zona baixa da cidade de Maputo, e a seguir um artigo sobre o crescimento quase desmedido da periferia da capital moçambicana. É oportuno ver o quadro acima, baseado em dados da ONU, sobre o que se tem passado no mundo, e tirar uma ou duas ilacções.

Refira-se que os dados, citados numa peça do Economist desta semana, compreendem o periodo entre 1990 e 2007, ou seja, excluem os efeitos da crise que estalou em Outubro de 2008 e que começou com a falência do banco norte-americano Lehman Brothers.

Já por mais que uma vez afirmei que a maior revolução em termos do planeta e da nossa espécie, iniciada no século XVIII na Europa e que agora percorre o planeta, é a urbanização, isto é, a saída em massa das populações das zonas rurais para cidades. Esta migração tem tido e continuará a ter consequências profundíssimas em todos os aspectos da vida e actividade humanas, para o ambiente, para a terra. É uma revolução cataclísmica.

Referirei aqui a África do Sul, que está no quadro, e Moçambique e Portugal, que não estão.

Em vinte anos, a população sul-africana que vive em bairros da lata, que em 2007 se estimava ser cerca de 8.4 milhões de pessoas, diminuiu em cerca de metade em termos percentuais. Ou seja, presume-se que essa alteração assentou na integração de milhões de pessoas na fibra das cidades sul-africanas, o que em parte reflecte a evidência de que o objectivo – o sonho – de um (essencialmente, negro) sul-africano poder viver numa cidade é não só altamente desejável como um objectivo exequível.

Ora a taxa de sucesso nesta migração, ainda que se tenha reflectido em maiores taxas de criminalidade e a saturação das infra-estruturas sul-africanas, paradoxalmente é se calhar o maior sucesso da fase do pós-apartheid. De certa forma manteve a África do Sul a caminho do futuro (e o futuro, inexoravelmente, é a urbanização) e politicamente permitiu manter a paz política através da concretização do novo “sonho sul-africano” e ainda (pelo menos por enquanto) relegar para segundo plano a questão emocional mas largamente irrelevante da posse da terra, que naquele país podia ser tão quente senão mais do que no vizinho Zimbabué. Que está e vai estar de rastos.

No caso de Portugal, a saída das pessoas das zonas rurais, quer por via da urbanização para as cidades portuguesas, quer por via da emigração (que na verdade é outra forma de urbanização) acentuou-se nos anos 50 do século passado e percentualmente está a atingir os níveis médios da Europa Ocidental, com a consequência que um tema recorrente e popular na política portuguesa nos últimos anos é a “desertificação” das zonas rurais e interiores (as principais cidades portuguesas situam-se na faixa litoral atlântica). Esta tendência não se vai alterar. As muitas vilas e aldeias portuguesas, que hoje fazem lembrar as boom towns desertas do Faroeste americano de há cento e trinta anos atrás, irão continuar a esvaziar-se à medida que as gerações mais velhas morrem. As escolas continuarão a fechar, os serviços a deslocarem-se para onde está agora a viver a maior parte dos portugueses (fábricas, hospitais, polícia, serviços). O luxuoso capricho de tentar “fixar” as populações no interior tem sido apenas isso: luxuoso, e caprichoso.

O caso de Moçambique é mais difícil de quantificar mas mais interessante .

É mais interessante pelo percurso da sua urbanização e pelas escolhas políticas feitas antes e depois da independência.

Nos anos 50 e 70 e até 1974, as cidades moçambicanas, em larga parte “alimentadas” pelo crescimento económico e industrial e pela migração de quadros médios e técnicos especializados, a maior parte dos quais vindos de Portugal dada a inexistência de meios de os formar na então província portuguesa (mais conhecidos localmente por “os brancos”) caracterizavam-se pelo crescimento concumitante de vastas periferias residenciais e industriais para onde gradualmente se deslocavam as populações africanas vindas das zonas rurais. No Sul, essa migração era há muito “desviada” pela então deslocação de centenas de milhares de homens para alimentar a indústria mineira e agrícola sul-africana, iniciada nos anos 80 do século XIX com as descobertas de vastos depósitos de ouro e de diamantes em Kimberley e no Witswatersrand.

Mas a situação alterou-se radicalmente com o advento da independência, quando a economia entrou em colapso quase imediato e radical, e a liderança política da altura fez dogma da ruralidade, consagrada numa legislação chamada lei da terra – legislação e dogma que, com enormes, quase aberrantes buracos, permanecem até este dia, com algumas consequências funestas.

O efeito combinado destas realidades foi que a população moçambicana permaneceu no mato e quer o processo de modernização social, representado pela urbanização, que invariavelmente se traduz em mais oportunidades de trabalho, maior disponibilidade de serviços e qualidade de vida, congelou. De facto, a apregoação das virtudes da vida rural tornou-se em quase uma religião de Estado e uma forte (mas, a meu ver, falsa no longo prazo) mola de apoio do regime. Ainda hoje faz parte do discurso político a (totalmente falaciosa) afirmação de que uma das grandes “conquistas” da independência foi a posse da terra pelo “povo” (na realidade, à disposição de quem manda).

Pois a prazo, a terra é apenas – apenas – um factor de produção. Como exemplo, nos Estados Unidos, de longe a maior potência agrícola do planeta, menos que 1 por cento da população trabalha a terra.

A segunda migração urbana de Moçambique consistiu em tirar os portugueses e seus descendentes (“os brancos”) das cidades e substitui-los por moçambicanos. Para o efeito, o governo, que, convenientemente, apregoava uma linha dura de marxismo-leninismo, para além da terra, nacionalizou quase tudo. Em 1984, quando visitei Moçambique pela primeira vez desde a independência, as cidades e arredores estavam congeladas, as casas construídas até 1974 cheias de gente que viera do mato e quase sem nada que fazer. Os efeitos das guerras e da consequente repressão começavam a fazer-se sentir.

A terceira migração ocorreu no fim dos anos 80 quando a guerrilha da Renamo, com o apoio logístico das forças de segurança sul-africanas, espalhou a guerra pelas vastas zonas rurais moçambicanas e aterrorizou as populações que ali viviam, uma parte das quais fugiu e refugiou-se nas cidades e suas periferias, cujo controlo e relativa segurança eram ainda asseguradas pela Frelimo. Quando a guerra acabou em Outubro de 1992, as principais cidades moçambicanas estavam inundadas por gente rural essencialmente refugiada.

Uma boa parte da qual não voltou para os campos, que estavam abadonados, minados e sem quaisquer infra-estruturas. Afinal, a miséria peri-urbana era menos sombria que a enorme incerteza de sobreviver no mato, sem qualquer rede de apoio.

As cidades moçambicanas e o establishment político levaram algum tempo a reagir. A ideologia “ruralista” e a lei da terra intocadas, a sensação do observador externo era que se esperava que, cessadas as hostilidades, as pessoas voltariam para os campos e tudo voltaria a ser como dantes.

Só que não voltaram.

E aconteceu entretanto outro fenómeno; a população continuou (e continua) a crescer agressivamente. O que significa que em 2008 Moçambique passa a ter um cenário curioso: ao mesmo tempo, apesar de todos os esforços, continua com perto de 80 por cento da sua população total, que se cifra perto dos 22 milhões de pessoas (havia 6 milhões em 1974) a viver no mato e primariamente da subsistência – eufemisticamente descrita como “actividade agrícola”- enquanto que os remanescentes 20 por cento residem nas cidades e suas periferias, as quais, na sua configuração básica, continuam a ter quase exactamente a mesma estrutura que tinham em 1974, com a agravante dela não ter sido mantida nem tão pouco expandida.

Aliás daqui se extrai uma curiosa estatística: apesar de percentualmente, segundo os magos destas coisas, haver hoje uma percentagem da população abaixo de um mitológico (qualquer) “limiar da pobreza absoluta”, em números reais hoje há muito mais moçambicanos na miséria do que nunca.

Os poderes constituídos, convertidos entretanto a uma espécie de capitalismo keynesiano em que os capitalistas são eles e a parte keynesiana é composta por um curioso sortido de países doadores, ONG’s, empréstimos de instituições internacionais e grandes empresas, têm feito o que podem. O que se tem traduzido por “grandes” projectos de extracção daquilo que os portugueses pelos vistos se esqueceram que estava debaixo dos seus pés durante 475 anos.

Só que, à excepção daquela estação espacial que é a Mozal, e que fica entre Boane e a Matola, esses projectos têm que ficar situados por cima de onde os bens se encontram, que são sítios como Moatize, Moma, Pande, etc.

Bom, mas não vai resolver por si só o problema dos números.

Nos países que passaram por este processo, a urbanização foi acompanhada por forte (ou melhor, quase selvagem) crescimento industrial e comercial nas cidades e suas periferias, que geravam, bem ou mal, empregos aos milhares.

Mas o mundo de hoje já não é o que era. Não é fácil promover a substituição de produtos manufacturados importados pelos mesmos produzidos domesticamente, até porque, neste caso, como se sabe, só entre a China e a vizinha África do Sul, não há quase nada que Moçambique possa possivelmente fazer que estes dois países não façam melhor, mais barato, mais depressa e com maior qualidade.

Portanto, se já há algum (peco aqui pela contenção) sub-emprego urbano e suburbano pela ausência de uma “revolução comercial e industrial” urbana, como é que vai ser quando, nos próximos 50 anos, aproximadamente metade da população rural de Moçambique, e os seus descendentes, se deslocarem para as periferias das cidades, em busca de emprego e de uma melhor vida? Estamos a falar de 12 milhões de pessoas. Como vão Maputo-Matola, a Beira, Nampula, Chimoio, Xai-Xai, Inhambane, aguentar?

Como vai ser gerir Maputo com cinco, seis milhões de habitantes, noventa por cento dos quais provavelmente, praticamente, à beira da miséria?

Por outro lado, o que vai acontecer nas zonas rurais?

Este irá ser seguramente um dos maiores desafios da liderança da geração dos pós-fundadores.

Um desafio logístico, político e de paradigma.

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