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por ABM (Cascais, 16 de Fevereiro de 2010)
Gostava de explicar aos exmos leitores que geralmente não gosto de ouvir música no rádio. Tirando as estações de música clássica, desde sempre. Tolero o ocasional devaneio musical mas muito pouco, O que gosto de ouvir na rádio é gente a falar: jornalistas, entrevistados, comentadores, escritores, pessoas que telefonam, debates, etc.
Nos Estados Unidos existe um formato de estação de rádio para isto: chama-se talk radio. Dão notícias, entrevistas, programas em que as pessoas telefonam, programa da manhã com notícias e anedotas para quem está a ir no carro para o emprego, a mesma coisa quando estão a regressar a casa, programas para depois do jantar, conversas a meio da noite. Hoje pouca gente sabe que o Sr. Larry King, que mundialmente é conhecido por fazer entrevistas de meia hora ou uma hora na CNN, tornou-se conhecido nos EUA porque durante anos e anos e anos ele fazia todas as noites da semana, com repetição do melhor programa no sábado à noite, numa cadeia de estações chamada Mutual Broadcasting Network, da meia noite e seis minutos até às cinco da manhã um programa ao vivo. Eram magníficos e muito, muito maus, para o meu sono. Só anos mais tarde é que ele passou para a televisão com a CNN.
Em Portugal, só a estação TSF se aproxima vagamente desse formato (e por isso a escuto mais que as outras todas juntas) e mesmo assim, tirando raras excepções, não é uma estação de talk radio. Nem sequer de notícias é: quando houve um tremor de terra de 6.0 na escala Richter há umas semanas no continente português, eles continuaram a transmitir música gravada como se nada se tivesse passado até ao cimo da hora, quase meia hora depois do safanão. E quando dão notícias, repetem a mesma lenga-lenga ad aeternum, que deve ser para os que tinham os ouvidos entupidos há cinco minutos atrás. As entrevistas são pouquíssimas para o que podiam fazer e demasiado curtas.
Mas o que me irrita mais é que passam música. E com que critérios não sei. Tanto se lhes dá para uma balada dum roqueiro qualquer, como uma salsada moderna que eu não conheço e que, sinceramente, pagaria para não ouvir. Quando começa aquela mistórdia musical sem eira nem beira, tenho o problema adicional que é que o meu velho e delapidado carro tem um rádio que não muda de estação facilmente. Tenho que andar aos murros nos teclados até me aparecer outra estação, e em geral as escolhas são de fugir. Outro dia apanhei umas beatas a rezar o terço vez após vez na Rádio Renascença.
O que me surpreende (e já volto à música). Qualquer vertebrado pensante já se deve ter apercebido do que aconteceu ao mundo nos últimos dez anos. Toda a gente praticamente tem acesso quase gratuito exactamente, precisamente, aos tipos de música que gosta de ouvir. Poder gravá-la via computador ou por uma variedade de meios, e estar uma vida a ouvir Amália, o Frank, o Puccini ou lá o que quiserem é uma banalidade da vida actual. As audiências fragmentaram-se e portanto quem continua a apostar em programação generalista está a dar – na minha humilde opinião – tiros para o ar. A vantagem de uma talk radio é que é barata, tragável se bem gerida e eu acho que muita gente havia de gostar de ouvir programas interessantes.
E note-se – surpresa – é em português. Feita por portugueses. Como este blogue.
Claro que há uma coisa que em Portugal não funcionaria – e eu suspeito que é por isso que verdadeiramente não há talk radio em Portugal. É que para se ter bom talk radio tem que haver lá gente com cor e com cabeça. E em Portugal regra geral quem tem cor não tem cabeça, e quem tem cabeça não tem cor (nenhuma). É qualquer coisa étnico-cultural daqui. E em Portugal quase todos vivem para pretender que têm cabeça, mesmo que não tenham. Por exemplo, nunca vi país na terra com mais carros pretos, cinzentos escuros e azuis escuros como este. Se se for a um centro comercial num domingo numa tarde de inverno, presume-se que todos vieram de um funeral, quer pela cor sorumbática da roupa, quer pela atitude sério-sorumbática das multidões. O português não consegue rir para quem não conhece à sua volta. Deve ter medo que lhe levem os dentes.
Pior ainda, nenhum meio de comunicação social em Portugal regra geral aposta em “personalidades” – a não ser que sejam cómicos gays (na base de que é impossível serem levados a sério) pois que essas são para matar na primeira oportunidade.
A verdade é que, para se ser personalidade, um requisito básico é que tem que se a ter. E tê-la, neste país, significa que, mais cedo ou mais tarde, tem que se dizer esta ou aquela verdadinha que vai infalivelmente seriously piss off o sôr ministro ou o rei da batata frita, que telefona ao patrão da estação a insultar o gajo ou então, como agora está na moda, telefona a uma qualquer holding chamada Going On, que compra a estação (como faz o patego estúpido do anúncio do Euromilhões) e mete lá um mentecapto a fazer relatos de touradas. Como os portugueses individualmente são seres humanos sublimes mas no agregado são um fenómeno keynesiano de estupidez colectiva induzida exponencial, comem, comem e calam.
Aliás, regra geral o consumidor e o cidadão aqui quase sempre come e cala. Com tudo. Os professores são incompetentes? come e cala. O supermercado vende batatas que apodrecem em dois dias? nimguém vai andar de carro 20 minutos em bichas até ao supermercado fazer o gerente comer as batatas que vendeu. O médico não parece saber o que faz? paga-se e não se bufa. O défice este ano vai estoirar? para o ano há-de ser melhor, alguém que resolva. O vizinho do lado não paga as cotas do condomínio há três anos e comprou um carro novo há dois meses? não esquecer de fazer sempre aquele estranho (e unicamente português) cumprimento simpático mudo à saída no corredor a dizer “olá!” mas que na realidade significa “ó meu grandessíssimo filho da puta como estás tu?”
Por tudo isso, frequentemente sinto que, como os meus concidadãos, o colectivo português vive um quotidiano de entrelinhas acinzentadas, sempre resguardado, sempre à espera da próxima catanada, da próxima sacanice, ou da próxima oportunidade de obter algo em troca de nada, sendo a base da felicidade quando não se leva com ela mais vezes do que é normal, ou quando se constata que os outros (e os outros são todos os outros menos os “amigos”) estão pior que nós. Sendo que o normal é levar com as desgraças em cima. Aí, tem-se pena.
Ah, adoro estas generalizações. É tudo mentira, não é? ok.
E nesta questão da desgraça, o país tornou-se num esquema de pirâmide: a sujeira estes dias democratizou-se, vai do mais baixo ao mais alto nível da sociedade.
Voltando ao rádio, o tema que gostava de fechar aqui. De há uns meses para cá, nas vezes quando me deu para escutar a tal de TSF, comecei a reparar em três coisas.
A primeira, foi que começaram a passar música portuguesa com uma frequência suspeita. Ao princípio pensei que se tinham enganado, que tinham posto a senhora da limpeza a tomar conta da estação, ou que tinham ficado estúpidos e não tinham reparado no ecletismo das suas audiências. Em Alcoentre toda a gente sabe que o que vende é música pimba, fados e a as canções da Ágata a chorar o milésimo desgosto de amor sobre o homem da vida dela que (para variar) se pirou pela vigésima vez com a empregada ucraniana. Em Cascais e Lisboa já não é bem assim. Ainda por cima, as músicas que tocam, que são medíocres quase sem excepção, são de gente que não conheço, cujo estilo não gosto e cujas mensagens nada me dizem.
A segunda coisa que reparei, e que me deixou ainda mais apreensivo, foi que, mesmo quando mudava de estação, acontecia o mesmo, ou seja, levava com uma espécie de música pimba de vanguarda, e habitualmente a mesma que estava a dar na TSF.
A terceira, e de longe a mais desconcertante, foi quando me apercebi que, juntamente com a música pimba de vanguarda portuguesa, começaram a juntar-lhe a mesma gente, mas desta vez ou a tocar em ou em inglês, ou ainda mais surpreendemente, começaram a passar músicas americanas e inglesas, tocadas em inglês, mas por portugueses (!).
Não sei como explicar ao exmo leitor o que é ouvir o these boots are made for walking (a grande canção de Nancy Sinatra, sff de ver em cima) cantados vinte vezes na TSF, pela actriz Maria de Medeiros, irmã da agora deputada socialista residente em Paris e que vem a Lisboa de vez em quando receber o taco e atender as sessões do parlamento. Ou as baladas britânicas do jovem David Fonseca, simpático e esforçado mas para mim uma versão cultural do que é o milho transgénico para a alimentação.
Pois só a noite passada é que esclareci este mistério. Afinal eu não estava a alucinar. É que os poderes constituídos aqui do burgo, em 2006, passaram uma lei qualquer a obrigar as estações de rádio portuguesa a passar 25 a 40 por cento da música que vai para o ar por….. leia-se (decalco de uma peça da RTP):
A lei da Rádio determina que as rádios estão sujeitas ao cumprimento de quotas no que respeita à programação de música portuguesa, que uma portaria de Abril de 2007 fixou em 25 por cento.
O cálculo das percentagens é apurado mensalmente e tem como base o número de composições difundidas por serviço de programas no mês anterior.
A lei estabelece ainda que 60% da emissão de música nacional deve ser preenchida por música composta ou interpretada em língua portuguesa por cidadãos dos Estados membros da União Europeia.
A lei prevê o pagamento de coimas entre os 3 e os 15 mil euros para as estações locais e entre 30 e 50 mil euros nas estações nacionais.
Quando eu vivia fora de Portugal, achava alguma piada e respeitava o facto de que as estações que emitiam para as comunidades portuguesas, quase só passavam fados, música pimba e aqueles clássicos do tempo da Maria Cachucha. Pois era aquilo ou o vasto mar estrangeiro que nos rodeava. Agora, que se tenha importado o costume e que se tenha dele feito lei em Portugal é que foi novidade. Ou seja, em vez dos artistas daqui competirem honestamente pelo privilégio de me tentarem impingir a sua arte, o governo da república socialista portuguesa espeta-nos como uma espécie de IVA cultural em cima e somos obrigados a comer o que nos servem.
Mas como gente como eu não aguenta aquilo, e usando as regras impostas, inventou a música estrangeira, cantada em língua inglesa, por portugueses.
Já não bastava a porcaria do acordo ortográfico e os subsídios aos famosos filmes nacionais que rigorosamente ninguém vê. Esta liberdade socratiana está-se a revelar um verdadeiro assombro cultural.
Felizmente, há a minha teimosia em fazer o que me apetece e a tecnologia. Imitei o que qualquer teenager português hoje faz sem sequer pensar. Por cinco euros e 99 cêntimos, recentemente comprei uma espécie duma cassete com um fiozinho, que liga o meu velho rádio a um aparelhinho que cá se chama um MP3 (mas que na realidade é um MP4), onde gravei na internet não sei quantos gigabytes de: Sinatra, Nat King Cole, Chico Buarque, Óscar Peterson, Walter Wonderley, The Beatles, Mozart, etc etc etc. Até lá tenho o Poker Face da Lady Gágá.
E agora, quando acabam as notícias da TSF no meu carro, a programação passou a ser a minha. Em casa, pela internet e o computador, oiço a LM Radio a partir de Maputo.
Isto antes que eu comece a ouvir a Maria de Medeiros a arranhar o My Way do Frank numa estação portuguesa.
Bie, bie, TSF.