THE DELAGOA BAY REVIEW

25/07/2021

OTELO SARAIVA DE CARVALHO, PORTUGAL E MOÇAMBIQUE

Não se devem misturar as coisas: Otelo Saraiva de Carvalho, o militar reformado que faleceu esta madrugada de 25 de Julho de 2021 com 84 anos de idade, era um comunista radical. Tornou-se incontornável por ser o coordenador operacional do golpe militar que derrubou a ditadura portuguesa em 25 de Abril de 1974, usou o seu controlo das armas logo a seguir para puxar Portugal para o limiar do comunismo e, não sucedendo, tentou mais tarde derrubar o regime socialista e mais ou menos democrático por meio de uma conspiração terrorista criminosa em que os seus correligionários mataram cidadãos que achavam não serem do seu agrado. Identificada a contenda pelas então autoridades portuguesas, sucedeu o quase impensável num regime democrático e num estado de direito: o parlamento português basicamente perdoou-lhes os crimes e fingiu que nada tinha acontecido. Otelo passou o resto da sua vida entre tertúlias e palestras, reclamando raivoso que não tinha feito o seu golpe de 1975 para este regime de socialismo cha-cha-cha que para ele era uma traição ao “povo”.

António de Spinola falando na televisão portuguesa em 1974. Ao lado o General Francisco Costa Gomes, um simpatizante comunista, que o sucederia (30 de Setembro de 1974-13 de Julho de 1976). Então por detrás de tudo, estava Otelo.

Otelo nasceu e cresceu em Lourenço Marques. O seu percurso na Cidade, relativamente inocente por comparação com a sua versão pós-1975, foi o de um jovem branco local, entretido com as míudas, a escola, o teatro e as passeatas.

A sua ligação a Moçambique e o que eu considero um erro curcial e inexcusável por parte do então aclamado presidente relutantemente aclamado pelos militares, o General António de Spínola (15 de Maio-30 de Setembro de 1974) ajudaria a ditar o destino subsequente da colónia, embrulhada numa guerrilha pela sua independência desde Setembro de 1964.

O episódio está bem documentado: enviado Mário Soares à Zâmbia (na qualidade de ministro dos Negócios Estrangeiros) para estabelecer ligações formais entre o novo regime e a Frente de Libertação, que se recusava a estabelecer uma trégua e de facto estava empenhada em escalar militarmente o conflito, ocorreu a Spínola, que não confiava em Soares, enviar Otelo para “vigiar” Soares. Para a missão, Otelo nem sequer tinha estatuto formal propriamente dito. No encontro, para encanto da liderança moçambicana, em vez de tentar negociar uma trégua e um plano de transição faseado para uma independência, para gáudio de Soares, Otelo interrompe-o e diz que em vez de se estar ali a perder tempo, o que tinha que ser feito era simplesmente entregar a governação da colónia imediatamente e incondicionalmente à Frente de Libertação. A liderança da Frente de Libertação ficou encantada e radicalizada. Nas semanas que se seguiram, não haveria trégua militar até se proceder à entrega do poder colonial aos representantes da Frente, mediante um apressado acordo assinado semanas mais tarde, no dia 7 de Setembro de 1974, e numa cerimónia formal no Palácio da Ponta Vermelha no dia 20 de Setembro de 1974.

Assim, de um dia para o outro, quem vivia na colónia passou da última ditadura colonial fascista europeia para uma ditadura radical comunista africana, apoiada relutantemente pelas ditaduras comunistas europeias, soviética e chinesa. Jovem, inexperiente e embriagada pelo súbito acesso ao poder, a liderança embarcou num experimento “marxista científico” que devolveu a sua economia para a idade da pedra e criou os anti-corpos que alimentaram uma longa e mortífera guerra civil. Quase cinquenta anos depois, e após demasiados inenarráveis episódios, as mesmas pessoas que herdaram o poder de Otelo, constituídas numa elite quase impune e milionária, ainda mandam na antiga colónia, que é dos países mais pobres, problemáticos, subdesenvolvidos, corruptos e desiguais do planeta, embrulhados na bandeira e evocando o estatuto de Libertadores.

Os Pais da Nação e Donos Daquilo Tudo, e com quem Otelo manteve sempre uma relação amistosa.

Otelo, graduado em brigadeiro, na capa da “Revista do Povo”, 1 de Novembro de 1974. Tinha 37 anos de idade.

Otelo retornaria a Portugal para derrubar Spínola e protagonizar o 28 de Setembro de 1974, o 11 de Março de 1975 e o Verão Quente de 1975, o verniz democrático do novo regime a estalar pelo fervor revolucionário comunista, a sanidade nacional salva por um triz pelo (nunca celebrado) contragolpe ocorrido no dia 25 de Novembro de 1975 e o quase milagre de se ter permitido implementar a nova constituição (socialista comunizante) e especialmente realizar a primeira eleição parlamentar em 25 de Abril de 1976. Em que – surpresa- afinal os comunistas que tanto mandavam e que tanto barulho faziam se revelaram uma minoria parlamentar quase negligível. O milagre teve muito a mão dos norte-americanos e dos europeus, que assistiam preocupados à tomada de poder comunista e que teriam em Soares um trunfo e em Ramalho Eanes uma figura providencial.

O regime ainda viveria até 1982, vigiado humilhantemente por um quase obsceno Conselho da Revolução e Otelo ainda concorreu a Presidente e viria a ser a alma por detrás das infames Forças Populares 25 de Abril. Preso com os seus colaboradores, viria a ser libertado e no meio dum mega-processo judicial, as instâncias acharam procedente simplesmente meter tudo na gaveta. A esquerda, especialmente a radical, continuaria intocada até hoje.

Tal como em Moçambique, embrulhada na bandeira nacional e no estatuto de Libertadora, os putativos Pais da Nação.

Volvidos cinquenta anos, este é em boa parte o legado de Otelo, com quem tive o curioso prazer de ver na televisão, junto com o General José Loureiro dos Santos, em Nova Iorque, numa memorável noite de Novembro de 1989, os alemães delirantes a começarem a demolir, à paulada e à martelada, o Muro de Berlim, assinalando exuberantes o fim das ditaduras comunistas na Europa e Leste e na União Soviética. Pelo meio, falámos do seu passado de Lourenço Marques. Não disse muito. Foi a única vez que o vi.

Aparentemente insanável, incapaz de se reformar, falido e corrupto, em 2021 o Portugal socialista continua a caminhar paulatinamente para se tornar o estado mais pobre e dos mais endividados da Europa, sustentado pelo acesso a dívida barata e sucessivos balões de oxigénio europeus, a sua população envelhecida. As pessoas deixaram de ter filhos e os mais jovens emigram em vagas sucessivas para onde há empregos mais decentemente remunerados e menos tributados. À miséria aparente as elites respondem empurrando os problemas para a frente com a barriga, com mais socialismo. mais despesa pública, maior rigidez nas políticas de investimento e do trabalho e mais impostos – e mais demagogia. Seduzidos por uma dispersão eleitoral oportunista em que o exercício do poder é traduzido por uma aliança de conveniência entre os socialistas e um cocktail de esquerdistas radicais e borlistas, a agenda política repleta de chavões da esquerda.

Um país apenas bom para funcionários públicos (alguns), para corruptos, ladrões, imigrantes miseráveis da Ásia, milionários de vistos Gold chineses e brasileiros, reformados de sucesso da Europa e quem se conseguir encaixar no peculiar estatuto fiscal de “não residente habitual”.

Naturalmente que este não era o Portugal que Otelo pensava que iria surgir e em que iria viver. Nem eu. Numa entrevista em 2014, ele explicou que, se fosse para isto, não tinha feito o seu golpe em 1974 e que na verdade se pudesse, derrubava o actual regime. Talvez para tornar a velha nação num regime de partido único de esquerda radical.

Não me surpreende.

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