THE DELAGOA BAY REVIEW

14/04/2023

ANTÓNIO PRISTA E MAPUTO EM 2023

Filed under: António Prista e Maputo em 2023 — ABM @ 10:31 pm

Se Lourenço Marques era Uma cidade luzente na colina, mesmo num contexto colonial e apesar dos imensos estragos da explosão de construção nas duas décadas antes de 1975, a verdade é que, quase cinquenta anos volvidos de gestão nativa, num país extenso, muito subdesenvolvido e muito pobre, o que é Maputo em 2023? A peça sobre o assunto, publicada n’O País de hoje, dá algumas pistas, retratando uma explosão continuada e descontrolada no crescimento urbano, com alguns requintes de exuberância milionária, com consequências algumas previsíveis, outras não tanto, em que subjacente está um metro quadrado urbano que vale milhões. António Prista, um arquitecto local, aludiu a algumas situações, aqui retratadas. Um dos meus tópicos favoritos e pouco mencionado é o saneamento e a estrutura eléctrica e de água potável, que não foram mencionados. Terão falado na infra-estrutura de transportes, mas a peça não alude à publicitação de um novo projecto de mobilidade urbana – Move Maputo – que deve estar em condições de arrancar agora. A ver vai-se.

Vista parcial da Avenida Dr. Julius Nyerere (anteriormente, António Ennes) em Maputo, antes da mais recente ronda de edificação de prédios para ricos.

Na peça publicada hoje no excelente diário O País, o arquitecto António Prista disse duas coisas:

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17/05/2019

NOVO DOCUMENTÁRIO SOBRE MOÇAMBIQUE: “BRISA SOLAR”

Filed under: Documentário Brisa Solar — ABM @ 12:27 am

Está a passar na televisão portuguesa um documentário em três episódios sobre Moçambique, contrastando algum do passado português com a actualidade moçambicana, que penso que alguns exmos. Leitores poderão achar de interêsse.

Segue a informação em baixo.

Em meados de Junho, será exibido um filme na Cinemateca Nacional em Lisboa, penso que com base nos mesmos materiais.

Imagem de uma gravação que aparece no 2º dos três episódios.

 

Título

Brisa Solar

Tipo:

Documentário

Resumo

Uma viagem por Maputo e pela Beira que regista pequenos e grandes acontecimentos dos espaços pós-coloniais.

Exibição

3 episódios de cerca de uma hora, a serem exibidos pela Rádio Televisão Portuguesa, Canal 2 (RTP2).

Ficha Técnica

Argumento, Realização, Imagem, Som e Montagem: Ana Pissarra e José Nascimento
Misturas: Flak, Carlos Jorge Vales e Guilherme Vales
Dobragem: Costa Neto e Octávio Chambe
Produção: Maria José Peyroteo e Ana Sofia Nunes
Direção de produção: Rita Gonzalez
Direção de produção (Moçambique): Inadelso Cossa
Assistente de produção (Moçambique): Osvaldo Lupini Bambamba (Quilombo Films)
Produção executiva: Rita Gonzalez
Coprodução: Adonis Liranza
Produção: António Câmara Manuel (DuplaCena)
Financiamento ICA – Instituto do Cinema e Audiovisual e RTP – Rádio e Televisão de Portugal
Apoio ao desenvolvimento Programa MEDIA – Creative Europe
Apoio 22 Atelier

Descrição

Numa viagem em torno do edificado mais notável de arquitetura moderna entre Maputo e a Beira, o filme dá voz a estórias privadas que emergem no documentário como memória sensível e que testemunham a dimensão política da história comum entre Portugal e Moçambique.

O documentário realizado por Ana Pissarra e José Nascimento propõe um novo olhar para este património comum, que denuncia um inevitável parentesco entre os dois países e procura entender como é que os valores da democracia expressos pelo modernismo foram integrados pelas sociedades pós-coloniais.

‘As casas foram nacionalizadas e a cidade “passou para a mão do povo”. Os colonos cosmopolitas abandonaram o país e, pela mão da Frente de Libertação, chegaram os novos habitantes à cidade branca. Eram negros e traziam uma cultura rural. A cidade passou a chamar-se Maputo. Mas Lourenço Marques continuou a viver e a envelhecer dentro de Maputo.

Tem hoje um grande valor patrimonial e artístico e, para muitos portugueses, também um valor afetivo. Mas recorda valores racistas e pouco a pouco, será demolida pela especulação imobiliária.
Entre a delicadeza e o apocalíptico, Brisa Solar viaja por Maputo e pela Beira registando pequenos e grandes acontecimentos quotidianos que desenham estes espaços pós-coloniais mestiços.’

13/03/2012

A HISTÓRIA DA PONTE DONA ANA, SOBRE O RIO ZAMBEZE ENTRE SENA E MUTARARA

Filed under: Arquitectura Moçambique, História da Ponte Dona Ana — ABM @ 7:30 pm

A Ponte Dona Ana, vista de Sena. Liga a Beira ao Malawi.

A história de como se fizeram as linhas de caminho de ferro desde pontos na costa moçambicana para o interior é fascinante, quase tão fascinante como foi a criação de Moçambique como país.

Neste caso, debruço-me sobre um caso particular – a linha de caminho de ferro que liga a cidade da Beira ao Malawi, e especialmente sobre a ponte com cerca de 3.6 quilómetros que passa de uma margem para a outra do Rio Zambeze, nas localidades de Sena e Mutarara.

E isto em parte porque, depois de ter sido convidado pelo Exmo. Senhor Dr. José Meque para integrar um grupo de amigos de Mutarara (apesar de conhecer o nome da localidade, tive que ir ver no mapa onde ficava) li e reli na internet, a mesma informação invariavelmente reproduzida, referindo que foram os portugueses que fizeram a linha e a ponte, que a mesma fora concebida por Edgar Cardoso, um lendário arquitecto que de facto concebeu e construiu várias pontes em Moçambique (Tete, Xai-Xai, por exemplo), que a ponte e a linha de caminho de ferro fazia parte integrante do “colonialismo explorador” português a entrar pela já martirizada e depauperada região do grande povo Sena, etc e tal.

Do que fui descobrindo, a verdade é um pouco diferente e mais complexa do que à primeira vez parecia.

Nesta breve crónica, abundantemente ilustrada graças principalmente aos arquivos da Torre do Tombo em Lisboa, tentarei fazer um breve esboço historial de como foi aquilo tudo, que dedico com muito gosto ao Dr. José Meque e ao povo de Sena e Mutarara.

Sena, os Sena e Dona Ana

Para quem não sabe, a Wikipédia explica que “Sena” não é só o nome de uma localidade junto ao Rio Zambeze na qual os antigos portugueses desde o Séc. XVI tentaram fazer negócio com os locais. É o nome de um grupo étnico distinto e que a partir do Século XVI viveu “encaixado” entre as então duas grandes potências na região, o reino do Monomotapa a Sudoeste (onde fica o Zimbabué hoje), de extracção Shona, e os Maravi a Norte (onde fica o Malawi), de extracção Nyanha-Chewa.

Sena é ainda uma língua, falada em Moçambique ainda hoje por cerca de um milhão de pessoas, em pelo menos dois dialectos diferentes.

O nome “Dona Ana”, segundo António Sopa (ver no fim) D. Ana – “vem-lhe de uma célebre D. Ana Cativa, arrendatária do grande Prazo de Mutarara, que se estendia pelas margens do Zambeze, Ziuziu e, muito provavelmente, do Chire”.

A chamada experiência colonial com os Sena foi ainda mais típica que o costume: durante quase quinhentos anos de essencialmente contactos esporádicos (salvo a partir da primeira metade do Século XX, e mesmo aí) os portugueses fizeram aquilo que melhor sabiam fazer nas suas colónias: pouco, quase nada, ou rigorosamente nada. No caso da terra dos Sena, fizeram quase rigorosamente nada a não ser chateá-los a partir dos anos 20-30 para cultivarem algodão obrigatoriamente, o que não caíu lá muito com os agora “colonizados”. Eventualmente apareceram uns senhores da recentemente criada Frelimo a prometer correr com os portugueses dali para fora, o que foi mais ou menos bem recebido, e hoje os Sena fazem parte do rico mosaico moçambicano, não sem antes levarem em cima com os efeitos das guerras de Samora contra Ian Smith e logo a seguir da guerra civil. Em 2012, continuam a reclamar que ninguém faz nada por eles.

A linha de caminho de ferro

Mas se o exmo. Leitor for ver num mapa, a modernidade do Século XX, como aconteceu em muitas regiões do mundo, chegou junto dos Sena, principalmente através de uma linha de caminho de ferro. Desde meados dos anos 1930 que existe uma linha de caminho de ferro que liga a cidade (e o porto) da Beira, em Moçambique, com Blantyre, uma cidade situada ao Sul do Malawi.

A linha não foi construída de uma só vez. Recorro aqui à cábula feita por um filatelista brasileiro (veja-se só) para ilustrar mais ou menos o que foi.

Locais no mapa: 1 Metangula, 2 Vila Cabral, 3 Metónia, 4 Salima, 5 Mandimba, 6 Fort Johnston, 7 Nova Freixo, 8 Entre-Lagos, 9 Zomba, 10 Blantyre, 11 Chiromo, 12 Port Herald, 13 Chindio, 14 Murraça, 15 Sena, 16 Dona Ana/Mutarara, 17 Chinde, 18 Dondo e 19 Beira.

C.F.N. – CAMINHO DE FERRO DE NACALA (integrava-se no “Sistema Norte”, dos Caminhos de Ferro de Moçambique).

N.E./S.H.R. – NYASALAND RAILWAYS – NORTHERN EXTENSION (Extensão Norte da Nyasaland Railways); com a inauguração deste troço de linha, a norte, de Blantyre (10) a Salima (4), com término junto à margem ocidental do Lago Niassa ficou finalmente estabelecida a ligação direta do grande Lago com o mar, inteiramente por caminho de ferro.

S.H.R. – SHIRE HIGHLANDS RAILWAYS (transformou-se depois na Nyasaland Railways – Malawi Railways). O primeiro troço desta linha foi aberto ao tráfego, entre Blantyre (10) e Chiromo (11), em 1907. Reconhecidas as dificuldades de navegabilidade no Rio Chire ou Shire, logo no ano seguinte foi construído novo troço de linha, entre Chiromo (11) e Port Herald (12). Estes dois troços somaram 113 milhas, tendo sido considerada a data oficial da inauguração deste Caminho de ferro, na sua totalidade, 29 de Março de 1908.

C.A.R. – CENTRAL AFRICA RAILWAYS (que foi foi comprada, tal como a ponte do Zambeze, pelo governo de Portugal, em 1968). Em 1915, agravando-se as dificuldades de navegação nos rios Zambeze e Chire, tornou-se necessário prolongar o S.H.R para sul, tendo-se formado uma nova Companhia, a C.A.R., que começou a operar em 1915, com a maior parte do percurso em território de Moçambique; assim: troço Port Herald (12) à fronteira (16 milhas); troço fronteira à Chindio (13) 45 milhas. A ponte foi aberta à circulação ferroviária em Julho de 1935, com seus 3.677 metros de comprimento, estabeleceu a ligação directa da Niassalândia com o mar. Construída entre Sena (15) e Dona Ana-Mutarara (16), a ponte obrigou a algumas alterações nos traçados ferroviários de aproximação, da T.Z.R. e C.A.R. Então, a T.Z.R., do Dondo a Sena, ficou a ter 291km de comprimento, integrando-se a ponte na C.A.R.

T.Z.R. – TRANS-ZAMBEZI RAILWAYS (nacionalizada pelo governo de Moçambique em 1976). Caminho de Ferro inaugurado em 1 de Julho de 1922, inteiramente em território moçambicano, corria de Murraça (14) ao Dondo (18). Murraça situava-se na margem sul do Rio Zambeze em frente do Chindio (13, na margem norte), efetuando-se o transbordo de malas postais, passageiros e mercadorias por um sistema de “ferries”, que era difícil, moroso e dispendioso. Estava assim completa a ligação da Niassalândia com o mar, através do porto da Beira (19), trazendo a linha, também, apreciáveis benefícios para Moçambique. A ligação do Dondo (18) com a Beira (19) fazia-se pela Beira Railway.

B.R. – BEIRA RAILWAY / CAMINHO DE FERRO DA BEIRA (ao longo dos anos teve várias outras designações).

Saliente-se que, devido às dificuldades de transbordo Murraça-Chindio (14-13), não se considerava que o Caminho de Ferro trabalhasse com a máxima eficiência e há muito que se pensava na ligação das duas margens do Zambeze com uma ponte. Mesmo assim, devido às más condições de operacionalidade do porto do Chinde (17), em progressivo assoreamento, a T.Z.R. constituiu um importante impulso para o melhoramento das comunicações na região, dadas as enormes potencialidades do porto da Beira. Estes factos levaram ao abandono da Concessão Britânica do Chinde, o que ocorreu logo em 1923.

A Construção da Ponte Dona Ana

Ao contrário do que parece que alguns pensam, os portugueses praticamente não tiveram nada que ver com a concepção, a construção e o pagamento da ponte, muito menos o grande Eng. Edgar Cardoso, que mais tarde fez, entre outras obras, as pontes de Tete e do Xai-Xai, mas que na altura ainda era um miúdo a estudar na faculdade no Porto). A ponte Dona Ana (nome de uma localidade adjacente ao local onde foi edificada) foi uma obra britânica, mandada fazer por duas empresas britânicas, executada por uma empresa britânica (a mesma que, vinte anos antes, construiu a ponte junto às Quedas de Victória, ligando as então Rodésias do Norte e do Sul) e paga também com capitais britânicos. Só em 1968 é que interesses portugueses adquiririam a ponte e o caminho de ferro, mais ou menos a preço de saldo.

O anúncio da adjudicação da construção da Ponte Dona Ana pela Central African Railway e pela Tranz Zambezia Railways à Cleveland Bridge and Engineering Company, publicado na página 2 do  The Glasgow Herald, 5ª feira, 20 de Novembro de 1930.

Copio um texto inglês da época sobre a Ponte Dona Ana, que quando foi concluída era a mais longa ponte ferroviária do mundo:

RECENT years have shown that the railway engineer is still as unafraid of the might of great rivers as in the days when he launched the Forth Bridge and first spanned the Falls of Niagara. His latest achievement in steel is the Lower Zambesi Bridge. This, the longest railway bridge in the world—though not the longest viaduct—measures nearly two miles from end to end, without counting approaches.

To do full justice to this great triumph in Africa demands in the writer an impossible combination of faculties—the rapturous admiration of youth, the awed wonder of a native, the knowledge and experience of a geographer, doctor, town planner, and many kinds of engineer, and the capacity for expression of a talented author.

Calling for a remarkable co-ordination of human industry, the task of building the Lower Zambesi Bridge was undertaken to provide something more than a mere spectacular addition to railway engineering. The great feat was accomplished as part of a comprehensive plan which will provide for the proper development of British Nyasaland, and for the simplification of its whole system of communication with the sea.

The best river transport can never handle such large quantities of merchandise as the railway, and the lower reaches of the Zambesi are unfavourable for shipping. From December to March in each year the flooded river inundates the country for miles around. From August to November, on the other hand, it shrinks until it is so shallow that only flat-bottomed barges can get across, and teams of native boys wade through the water pulling the barges with ropes. The two-mile crossing takes up to two hours to make, and a regular landing base cannot be maintained owing to the changes of the river.

At one time this river ferry provided the only link between the railway which ran south from Nyasaland to Chindio, on the north bank of the river, and the line which ran north from Beira to Murraca on the opposite bank. These two villages, Chindio and Murraca, are situated about ninety miles from the mouths of the Zambesi, and 160 miles from the Portuguese port of Beira, which lies to the south.

Since Beira is the only port which can conveniently handle the overseas trade of British Nyasaland, itself an inland territory, it will readily be seen how vital was the necessity for overcoming the break in the railway at the Zambesi River.

The building of the two-mile bridge was not undertaken without some trepidation, and much forethought had to be expended before the scheme got properly under way. British enterprise was responsible for the project, although the site of the bridge lay in Portuguese East Africa, some forty miles south of the Nyasaland boundary. After preliminary surveys, it was decided to bridge the river at Sena, twenty-five miles upstream from Murraca, where the primitive barges and stern-wheel steamers carried on the ferry service.

The preparations for the erection of the bridge included the construction of approach railway lines along new embankments, and the clearing of the bush to build a camp. The Cleveland Bridge and Engineering Co., Ltd., of Darlington. England, who secured the contract, placed orders for materials with nearly a hundred British firms. The necessary equipment included steel cranes, excavating gear, thousands of tons of steelwork, timber, cement, concrete mixers, diving apparatus, lubricating oil, electric light fittings, paint, machine tools, portable forges, scientific instruments, millions of bolts and nuts, medical equipment, water purification plant, portable offices, office furniture (specially treated to withstand the hot, damp climate), eight pontoons, twenty barges, and two light-draught stern-wheel steamers.

Some of the larger items, including the river barges, were dispatched in parts and reassembled on the banks of the Zambesi. Stone had to be obtained for concrete making ; two quarries were opened for this purpose on either side of the river. To fit out the 2-ft. gauge railways installed for running the quarries, further supplies of equipment were transhipped from England to Beira, and thence by the Trans-Zambesia Railway to the site of the proposed bridge.

These supplies included twenty-eight sets of switches and crossings, sixteen ball-bearing turntables, 130 tipping wagons, sixteen platform wagons, twenty rubble skips, twenty tipping buckets, and a number of petrol locomotives. Three 0-6-0 outside-framed Peckett steam, locomotives were also supplied from England for service on the 3 ft. 6 in. gauge main line approaching and crossing the bridge.

Not only did the engineers clear the bush to build a camp; they also changed the whole geography of the district and planted two small towns on opposing banks of the river. The European supervisors had four thousand native workers under their charge, at times even six thousand, and the task of housing, feeding—though scarcely clothing—this enormous number of natives called for skilled social organization. Particular attention was paid to the question of hygiene, and two hospitals, each with excellent surgery, dispensary, and specially trained staff, were erected near the Zambesi River.

Exhaustive precautions were taken, with encouraging results, against the malaria peril. The perfection of the drainage system helped very largely in this direction, while a permanent gang of boys was employed to wage an anti-malarial war. Their duties included the capturing of a number of mosquitoes at frequent intervals for examination by the medical officer, who was able to ascertain what percentage of them was of the malaria-carrying species.

Since the engineers and other Europeans had to spend four years in residence by the Zambesi, it was only reasonable that certain social amenities should be provided for their recreation during leisure hours. The indoor attractions comprised a recreation room, a squash-rackets court, a billiards table, and a reading-room. Out of doors there were tennis courts, a football ground, a cricket pitch, as well as a nine-hole golf course.

The remarkable preliminaries to the Lower Zambesi Bridge being completed, the year 1931 saw the beginning of constructional work. Perhaps of minor interest to the onlooker, but of surpassing importance to the engineer, are the foundations and piers of a bridge. Anyone giving the matter a passing thought must be impressed by the apparent impossibility of laying satisfactory foundations for piers which have to stand in water.

There are several methods of achieving this difficult feat. The usual procedure is to erect a cofferdam, this being an arrangement for laying dry a space below water-level. Cofferdams may be constructed of earth, timber, steel, or concrete, or of a combination of these items.

The earth cofferdam is the simplest kind, and is often used in shallow rivers with currents of low velocity. It consists of a bank of earth, containing a good deal of clay, placed round the pier foundation site to be enclosed, and of a thickness sufficient to furnish the required stability. The bank projects two or three feet above water, with a width of at least 3 ft. at the top, though this width will probably be a good deal larger unless one or two strengthening rows of wood or steel sheet-piling are inserted in the circular bank. When the bank has been built, it remains only to pump out the water from the interior, and excavation for the foundations may begin on the dry bed of the river.

A more elaborate cofferdam is formed by driving into the river-bed one or more concentric rings of contiguous wooden piles, braced internally with timber, to withstand the pressure of the surrounding water. If two or more circles of piling are used, the space of a foot or two between them is filled with concrete or clay-puddle. Steel sheeting is often substituted for wooden piles, and used with success.

The engineers do not attempt to make coffer-dams absolutely watertight ; this would be an expensive task. So long as the bed of the river can be kept dry with a reasonable amount of pumping, the conditions are considered satisfactory.

The nature of the Zambesi River permitted some of the pier foundations to be dredged without preliminary removal of the water, though cofferdams were usually adopted where rock replaced sand and mud at a distance not too great from the surface. Pontoons and barges, carrying concrete mixers, forges, cranes, and other impedimenta, were drawn round the site of each pier, forming suitable islands from which the constructional work could be conducted. During the dry season, as it happens, no water flows over the south side of the river-bed, so that railway lines here took the place of the pontoons and barges.

The laying of the foundations began with the lowering of an oval steel curb, shaped like a steamer funnel, and with cross-section measuring 36 ft. by 20 ft., into the bed of the river at the site of each pier. Within this structural shield the proper foundation well was next forced into the ground. This enormously strong steel-sided well, containing suitable dredge shafts leading to the bottom, was in most instances 120 ft. deep. Steam cranes lowered mechanical grabs, having a capacity up to 38 cu. ft., down the dredge shafts, the work of excavation proceeding simultaneously with the lowering of the well.

The well was built up in sections as the excavations deepened. At the same time it was filled with concrete, reinforced with vertical and horizontal steel rods. The two excavation shafts were, of course, not filled in till the sinking of the wells had been completed. The thirty-two wells were sunk to a minimum depth of 80 ft., and some of them to a depth of no ft., below low-water level. These figures, owing to the shallowness of low-water, practically represent the depth of the foundations below ground.

The wells were surmounted by imposing concrete piers, likewise reinforced. Two additional main piers, bringing the total up to thirty-four, were founded directly on rock on the left bank of the river.

The thirty-three main steelwork spans connecting the piers, and carrying a single line of 3 ft. 6 in. gauge track, each measures 262 ft. 6 in. in length Nineteen of the spans were set on a slight incline, mainly at 1 in 216, the permanent way being higher on the left bank of the river than on the right. The highest spans stand 27 ft. above high-water level.

From the right bank, or the Sena side of the river, the bridge is approached by a steel trestle viaduct, founded on ferro-concrete piles, with a total length of 1,805 ft. 8 in. There follow seven small spans, forming part of the main bridge, and then the thirty-three main spans already mentioned. The forty spans together measure 8,662 ft. 6 in. The six plate-girder spans constituting the left-bank approach together contribute 399 ft. to the total length. The overall length of the whole structure is 12,064 ft. 4 in. The last span was erected on October 12, 1934.

This, then, is the measure of the world’s longest railway bridge, built at a cost of over £1,400,000. The provision of a footpath on the up-stream side of the bridge will also facilitate communication between the localities of Sena and Dona Anna.

The account which has been given of this engineering achievement will convey some idea of the complications and difficulties involved in the construction of major railway bridges in uncivilized territories.

It is a curious fact that the Lower Zambesi Bridge stands on a railway system which has a route mileage of only forty-two and a half, from Port Herald, in Nyasaland, to the southern end of the bridge. The old twenty-four miles stretch from Bawe to Chindio has been abandoned.

The Central Africa Railway, as it is called, is now operated by Nyasaland Railways Ltd., the company floated specially to finance the construction of the bridge. This company was empowered to purchase the Shire Highlands Railway, which ran from Port Herald to Blantyre, a distance of 113 miles, and to build an extension 160 miles long to Chipoka and Salima, at the foot of Lake Nyasa. An improved shipping service is being set up on this lake, which is 360 miles long. and a large part of Nyasaland will thus be brought within easy reach of the ocean port of Beira. (fim)

A Ponte Dona Ana foi construída entre 1931 e 1935, tendo iniciado a actividade em Julho de 1935.

À data da sua inauguração, esta era a mais longa ponte ferroviária no Mundo.

Detalhes do processo que levou à construção podem ser encontrados nos arquivos britânicos, por exemplo AQUI.

Uns anos mais tarde, em 1956, a revista portuguesa Gazeta dos Caminhos de Ferro, publicou o seguinte artigo, alusivo à ponte e ao uso da linha de caminho de ferro entre a Beira e o então Protectorado da Nyasalândia:

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Página 2 de 2.

Junto dos arquivos da Torre do Tombo, em Lisboa, obtive a excelente colecção de fotografias que ilustram a construção da ponte, entre meados dos anos 1920 e meados dos anos 1930.

Aqui vão, em ordem cronológica.

1925. Fim da Linha do comboio em Sena. Não havia ponte ainda.

1925. Grupo de oficiais e visitantes no fim da linha do comboio em Sena.

1931. A ponte começa a ser feita.

1931. Duas crianças posam junto à placa que assinala o ponto onde o acesso à futura ponte começará.

1931. Um dos futuros acessos ferroviários à ponte.

1931. Junto dos futuros acessos à ponte.

1931. A Vila de Dona Ana, no outro lado do Zambeze. Acho que hoje dá pelo nome de Mutarara.

1931. Início do trabalho. Aqui, a testa da futura ponte.

1931. A margem esquerda do Zambeze. Dona Ana.

1931. O término da linha de caminho de ferro junto ao rio Zambeze.

1931. O rio Zambeze no local onde vai ser construída a ponte.

1933. Aspecto da construção dos pilares da ponte.

1933. Outra imagem dos pilares em construção.

1933. Um dos acessos da ponte, já praticamente concluído.

1933. Uma parte da ponte já mais ou menos concluída.

1933. A plataforma já com aspecto final, os acessos ainda por fazer.

1933. Um dos pilares a ser feito.

1933. Outra imagem de um dos pilares a ser construído.

1933. A obra de um dos lados da ponte avança.

1933. Um dos lados da ponte, já concluída, os carris a serem instalados.

1933. Os tramos da ponte do lado de Sena já instalados.

1933. Viadutos e tramos concluídos.

1934. A passagem pedestre, num dos lados da Ponte Dona Ana.

1934. A ponte, já mais ou menos concluída.

A Ponte Dona Ana, em 1936. Começou a prestar o seu serviço em Julho de 1935.

1936. A ponte, então recém-inaugurada.

1936. Mais uma imagem da ponte acabada de inaugurar.

Uma última imagem da Ponte Dona Ana em 1936. Para ver esta fotografia em tamanho gigante, prima na imagem duas vezes com o rato do seu computador.

ADITAMENTO – Nota de António Sopa, publicada em HPIP e aqui reprduzida com vénia:

A Ponte Metálica D. Ana (entre Sena e Mutarara)

A ponte ferroviária de D. Ana – o nome vem-lhe de uma célebre D. Ana Cativa, arrendatária do grande Prazo de Mutarara, que se estendia pelas margens do Zambeze, Ziuziu e, muito provavelmente, do Chire – foi aberta ao tráfego em 14 de janeiro de 1935. Os seus 3.677 metros de comprimento, distribuídos por trinta e três arcos principais (arcos metálicos triangulados, sobre pilares maciços), com oitenta metros de altura cada, tornaram-na, na época, a maior ponte ferroviária de África e a terceira a nível mundial, sendo sem dúvida ainda hoje uma das peças mais valiosas do património arqueológico industrial moçambicano. A sua existência prende-se com a linha ferroviária ligando Moçambique à Niassalândia (atual República do Malawi), cuja inauguração ocorreu em 1 de julho de 1922, por iniciativa da Trans-Zambezia Railway. Até à construção da ponte, a passagem do Rio Zambeze, entre Sena e D. Ana, fazia-se usando os antigos barcos de rodas que prestavam serviço naquele rio. A ponte começou a ser pensada em junho de 1922, tendo a empresa de engenharia civil Liversey Son & Henderson enviado a Moçambique Seager Berry, já conhecido pelos trabalhos realizados no Porto de Buenos Aires. Instalado num banco de areia, perto de Mutarara, dedicou-se durante cerca de quatro meses ao estudo do rio, tendo fixado a sua opção num local próximo de Sena, no vilarejo de D. Ana. O desenvolvimento do tráfego ferroviário e as dificuldades de transbordo fizeram pensar na necessidade absoluta de construção naquele local da referida ponte. Em 1930, a recém-constituída Nyassaland Railway Ltd. decidiu estabelecer uma ligação direta entre as linhas da Central Africa Railway Co. Ltd. e da Trans-Zambezia, garantindo assim o tráfego ferroviário contínuo entre a Niassalândia e a Beira. A construção iniciar-se-ia do lado de Sena, em janeiro de 1932, tendo sido projetada por G. A. Hobson e construída pela empresa Cleveland Bridge & Engineering Co. Ltd., de Darlington (Inglaterra). O trabalho de construção foi muito difícil, em virtude de não se terem encontrado fundos de rocha no leito do rio (dos trinta e quatro pilares principais, apenas dois são cravados diretamente na rocha, na margem esquerda), tendo-se empregado cerca de 6.000 trabalhadores durante a realização da obra. Durante a década de 1960, as populações pediram como solução de recurso, embora perfeitamente viável, o lançamento de uma passadeira rodoviária na ponte, para evitar onerosas e demoradas travessias de automóveis em cima de vagões. Porém, a inauguração da ponte rodoviária (Ponte Marcelo Caetano/Ponte Samora Machel) ligando a cidade de Tete ao Matundo, em 20 de julho de 1972, veio pôr fim a estas reivindicações. Após a independência, e no decorrer da guerra civil em que viveu o país, viria a ser convertida em ponte rodoviária, situação que se manteve até setembro de 2008, quando se realizaram trabalhos que a reconduziram à sua vocação inicial, no âmbito da reabilitação da Linha de Sena.

(António Sopa)

19/02/2012

MALANGATANA E PANCHO GUEDES

Foto da Kitty Viljoen, gentilmente cedida.

 

Suzette Honwana (mulher do Luis Bernardo), Malangatana e Pancho Miranda Guedes

01/11/2011

RUY ROQUE GAMEIRO E O MONUMENTO AOS MORTOS DA GRANDE GUERRA EM LOURENÇO MARQUES

O monumento em homenagem aos homens que morreram durante a Primeira Guerra Mundial no Norte de Moçambique.

RUY ROQUE GAMEIRO (1907 – 1935)

No sítio acima referenciado, da mão do Sr. João Cabral, José Amaro Júnior teceu o seguinte esboço deste escultor, membro de uma ilustre dinastia deartistas e que aqui se reproduz com vénia

Ruy Roque Gameiro, escultor de garra e artista de rara sensibilidade estética, viveu pouco; deixou-nos na juventude aos vinte e oito anos, quando começava com segurança a percorrer o caminho da vida e a longa e tortuosa estrada que conduz os homens vulgares à superioridade dos invulgares, na posse heróica da palavra «génio».

Mesmo assim, nesse tão curto espaço de tempo em que viveu, não era uma efémera existência de esperanças, mas definida afirmação de certeza — foi e continua a ser na escultura contemporânea uma presença.

Os seus dois últimos nomes nada estranhos e vulgares a toda a gente de espírito culto e até das classes populares, indicam a honesta heráldica duma família de artistas vincadamente portugueses e estremenhos.

Ruy Roque Gameiro, desenhado por Amaro.

Era filho do grande Mestre aguarelista Alfredo Roque Gameiro, pessoa e artista que nos foi servido ouvir, admirar e ver, a quem a Estremadura, e principalmente Lisboa, ficou devendo preciosas obras de valor documental, juntas a uma segura e maravilhosa técnica, que o colocaram entre os maiores dessa tão difícil e delicada maneira de pintar.

Todos os filhos do Mestre nasceram artistas: Manuel, Raquel, Helena, Màmía e Ruy — último dessa tão curiosa geração e o único até hoje desaparecido dela.

Mais tarde, por uniões espirituais, entraram na «família-oficina» mais dois artistas pintores: Leitão de Barros e Martins Barata, frequentadores assíduos do «atelier» que, do alto da Rua de D. Pedro V, olhava sobranceiro a aguarela do casario lisboeta.

E os netos desse homem de barbas loiras e mãos finas criadoras de beleza, inspirada nessa outra beleza sagrada das coisas, que não morre nunca, preparam-se para manter viva a tradição da escola iniciada por seu avô, caso singular em Portugal e talvez até no mundo, na continuidade duma profissão.

Mestre Roque Gameiro era um homem encantadoramente simpático, austero e digno, de andar apressado, vestido sempre de surrobeco castanho, laçarote de seda verde, que conhecia Lisboa de lés a lés e tinha nos becos, nos largos e nos terreiros, como admiradores extasiados, os garotos da rua, que se empoleiravam curiosos em volta do seu cavalete.

Era bem o tipo característico dum mestre de pintores; da sua oficina e peregrinações, nas ruelas, nas docas e nos campos, outros pintores saíram entusiasmados em procura do desenho e da côr.
Porém, entre todos, abriu-se uma excepção: Ruy escolheu a forma e os planos em relevo, para transmitir esse encantador estado de alma, na ansiedade sempre crescente e insatisfeita de dar aspecto e ritmo à rigidez das pedras ou suavizar as durezas metálicas dos bronzes.

Certamente, a essa resolução, não foi estranho o desejo que possuía duma luta interna e dinamicamente febril, dividida quási em partes iguais pelos seus dois estados psicotécnicos: o operário e o artista.

Mas poderia ter sido até qualquer outra coisa dentro de todas as expressões plásticas; o que é certo é que Ruy Gameiro, nascido e criado nesse meio ambiente de Arte, trazia consigo, por atavismo, quando veio à luz que ilumina a terra onde estacionamos apenas, a determinação imperativa a que se obedece automaticamente, duma «tendência-vocação», que lhe deu a mais elevada causa, para desejar viver a sua tão curta vida.

Nasceu na Estremadura, no dia 27 de Fevereiro do ano de 1907, na Venteira, um alto donde o vento se desprende próximo à Amadora, numa casinha modesta, sem título nem rótulo, mas de aspecto invulgar e que dizia a quem a olhava de fora, no meio das árvores que lhe serviam de moldura: — aqui vive um português que é artista.

O seu primeiro contacto de vida em pleno campo e parte da sua infância passada nesse meio deram-lhe uma compleição sadia e robusta; seu pai adorava o ar livre como um caminheiro e achava imensa graça à vontade que o Ruy já mostrava em ser caçador, ao construir espingarditas com os materiais inúteis que encontrava ao alcance das pequenas e jeitosas mãos. Deixou-o fazer o exame de instrução primária, onde já se destacava dos camaradas, no desenho e pelo arranjo cuidado das páginas de cópia, quási sempre ilustradas com bonecos, à maneira de friso…

Miniatura do monumento aos mortos da I Guerra em Moçambique.

E um dos primeiros presentes foi uma espingarda a sério, um cartão da respectiva licença e o retrato tirado para ela, com o largo chapéu paterno, enfiado quási até ao pescoço, para parecer mais homem, mais crescido…

Como fosse dotado de grande habilidade manual, demonstrada sobejamente no minúsculo espingardeiro, no construtor engenhoso de inúmeros brinquedos, e o seu feitio precocemente rebelde não se adaptasse a estudos com obrigatoriedade de dição no dia imediato, e, ainda, por orientação educativa dando margem a possíveis revelações muitas vezes variáveis nas crianças, matriculava-se na Escola Industrial Marquês de Pombal, em Lisboa, no curso de mecânico de automóveis, ao tempo dirigido por outro artista bastante curioso que foi Sanches de Castro, um dos precursores do movimento futurista entre nós.

Um dos relevos do monumento aos mortos da Grande Guerra, na baixa de Maputo.

Decorreu algum tempo sem que obtivesse nessa especialidade o que pretendia; além de várias coisas de mecânica, como ele próprio afirmava, aprendeu muito bem como se lustrava um casaco de cabedal, muito em uso pelos motoristas desse tempo, e usado… pelo professor.
Não era bem aquilo que o seduzia; havia nele uma atracção oficinal, de facto, mas não era uma oficina de automóveis com «pistons», válvulas e cambotas — era outra, onde a mecânica fosse dirigida pela alma. Não se conformava, dotado como era duma enérgica vontade própria, com os primeiros momentos graves que o destino lhe impunha.

Até que, em 1921, com a idade de quinze anos, por meio de exame de admissão feito de 10 a 15 de Outubro, entrava na Escola de Belas Artes de Lisboa, com a modesta e vulgar classificação de 12 valores. Na pauta, só conseguia destacar-se dos outros pelos tais dois nomes muito conhecidos.

Outro dos relevos do monumento concebido por Ruy Roque Gameiro.

Tinha finalmente encontrado o princípio duma «iniciação», o nortear que estava marcado dentro dele, mas que a agulha da sua bússola interior não tinha ainda bem determinado.

Ia agora ter ocasião de tornar as suas vigorosas mãos motoras do pensamento, feitas ferramenta viva, na modelação das linhas e dos volumes, que começava a visionar na base segura da aprendizagem do desenho. Sabia já que dali seguiria a dar calor à pasta de barro, que esperava nas tulhas o arranque vigoroso das suas mãos de gigante, confiada num simbólico abandono da matéria, em presença dum homem que começava a sentir-lhe o «para além» das suas pressões, na inquietação visível da forma.

Ruy Gameiro, no entanto, continuava rebelde, mesmo dentro da sua definida realidade; não se adaptava muito às teorias escolares das proporções e dos módulos. As classificações obtidas indicavam uma nítida insujeição aos sistemas adoptados.

Mais um dos relevos do monumento.

Seu pai sabia-o; começava a sentir ligeiras preocupações manifestadas em desabafos a vários amigos; no fundo orgulhava-se de seu filho e sabia esperar confiado no que o decorrer do tempo lhe viria a dizer.
Talvez mesmo gostasse desse temperamento; e gostava com certeza esse voluntarioso artista, nobre exemplo de persistente coragem. Três anos decorridos, em 1924, terminava o «curso geral preparatório» composto de cadeiras especiais e de outras subsidiárias, nas quais e principalmente nas de carácter literário conseguia passar apenas com as médias mínimas obtidas por lei…

Para entrar no curso especial, o de Escultura, como sucedia em todos os outros, era necessário o exame de francês, passaporte diplomático da cultura e dos artistas; Ruy Gameiro, em 3 de Outubro de 1924, faz no Liceu de Gil Vicente, o exame singular dessa cadeira.

Foi nessa altura que, atraídos pelo encanto do mesmo sonho, saímos do Liceu e o fomos encontrar na Escola, onde seguimos curso diferente, nessa velha e histórica Academia, instalada no antigo Convento de São-Francisco, no Largo da Biblioteca, com o busto do Visconde de Valmor ao meio dum sossegado jardim municipal, onde havia muitas pombas e um jardineiro bondoso que nos aturava e de quem éramos amigos.

Era director e professor, nesse tempo, José Luís Monteiro, arquitecto mestre de arquitectos.

Começámos por compreender e sentir a elevada dignidade da alma do Ruy, acamaradámos no espírito e na idade; e se censuras houve às nossas impertinências de rapazes, eram ouvidas e sofridas as consequências por ambos.

E ainda mais um dos relevos.

Estávamos na aula de Condeixa, nos ensaios dos primeiros desenhos, onde havia o rigor da bitola e fio de prumo na cópia em claro-escuro de carvão e esfuminho das cabeças clássicas de Antinoos, de Pedro (o Grande), e outros, até ao antipático Vitélius de grossas e gordas pregas sob o queixo, que o Mestre nos fazia desenhar com precisão matemática…

Era o primeiro ano.

Ruy, consolidada já a sua aspiração de modelar, entra no curso especial, dirigido por Mestre Simões de Almeida, tendo como companheiros de aula Júlio de Sousa, Barata Feio, Norte de Almeida, Macário Dinis e Albuquerque de Bettencourt, o mais romântico e literário de todos, revolucionário e bom, o que dizia que iria um dia a Paris, não para aprender, mas para ensinar… Ruy era o «garoto» do «atelier»; ria dessas afirmações com gargalhadas francas que ecoavam frescas pelos arcos dos velhos corredores abobadados. Tempos passados, já fora da Escola, veio a ser desse artista o mais dedicado amigo, na sua angustiosa situação de luta pela vida, quando a indiferença colectiva ajudava a ruir os projectos altivos dum sonhador romântico.

Começa o barro, o material eleito.

Das suas mãos aparecem as cabeças, os torsos, as «maquettes», as estátuas — e Ruy segue corajosamente até onde pode chegar; no entanto continua a existir o rebelde, o inconformista, o escolar que luta contra os cânones, o que pretende inventar técnicas, o que deseja ser «ele mesmo».

O conceito que gozava entre os mestres não era dos melhores… Era um aluno curioso e com interesse, bem o sabiam; mas era irrequieto, deliciosamente atrevido, acriançado às vezes e muito amigo de brincadeiras…

Esqueciam-se, o que sucede a todos na relativa gravidade imposta pela situação de professores, do tempo em que tinham vinte anos e de que nós, sabíamos e muito bem, das pitorescas aventuras feitas quando se encontravam em posição idêntica à nossa, e até dos ecos contados de ano para ano, da sua vida «montmartroise», nesses tempos precursores de Paris, em que Degas, Cezanne, Rodin e Bourdelle deitavam para fora as teorias avançadas de «l’art vivant».

Mas a irreverência do Ruy não tinha maldade; era apenas dirigida pela força exuberante da sua mocidade descuidosa e alegre, possuidora dum humorismo onde havia ternura, duma graça onde havia bondade, tudo isto enquadrado num belo carácter, numa isenção onde havia absoluta independência. Alinhavamos nessa maneira de ser; pertencíamos ao grupo dos «dissidentes», os partidários da tal Arte Viva, alegres por fora e sentidos por dentro, quando era preciso sentir.

Muitas vezes fomos sofrer o desterro voluntário das nossas rebeldias, em longos passeios de meditação silenciosa, ou em fugas para um casalinho que Pai Gameiro alugara para os lados de Colares, a «Quinta do Conde», onde havia um mobiliário de cores festivas, com flores pintadas ao sabor popular, todo feito pelo Ruy com tábuas de velhos caixotes.

Uma vez por outra, partia para o campo em procura de caça; e ao cair da noite, de regresso, junto a um pequeno chafariz que havia num largo fronteiriço, falávamos enternecidos dos nossos projectos de pintura, de escultura, misturados com perdigueiros, tiro aos pratos, pólvoras de categoria…

Era assim, esse rapaz artista, simples, quási ingénuo, quando conversava.

A sua vida decorria alegremente entre o espírito da casa paterna, os amigos, a Escola, a caça, a escultura, a satisfação exuberante de viver e a Maria Helena, que adorava na esperança duma vida de encantamento quando acabasse o curso.

Juntava em si várias personalidades diferentes, mas todas elas formando a sua única personalidade.

Usava capa e batina, como farda daquele que estudava qualquer coisa; tocava guitarra e cantava em noites de luar: era o romântico, mixto de boémio.

Outras vezes vestia camisa de quadrados berrantes, iguais às que usam os pescadores da Nazaré e boina a esconder o farto cabelo negro e ondeado: era o rapaz do povo perfeitamente confundível com os outros rapazes que às oito horas da manhã se dirigiam apressados para as fábricas.

Espingarda ao ombro, salta aqui e acolá, correndo montes e campinas atrás das perdizes, ou entre as assistências interessadas, na prancha de atirador na conquista de títulos e trofeus, era o desportista sadio que educava a precisão da vontade serena e se retemperava aos raios escaldantes do sol, que o seu acentuado meridionalismo adorava em extremo.

E, vestido de blusa comprida, de linho ou com duas abotoaduras sobre os ombros, todo sujo de barro, era finalmente o escultor, o artista, o Ruy Roque Gameiro.

Entretanto a sua vida de escolar continuava; obtém três prémios denominados de «Alberto Nunes», em consagração ao antigo Mestre, e a primeira medalha no terceiro ano do curso especial pela classificação de 20 valores.

Começava a revelar-se o aluno que sabe e os mestres já com imparcialidade, e mais com aquele acolhedor carinho dado aos discípulos mais velhos, eram os primeiros a reconhecer o êxito dos seus persistentes ensinamentos e de que estavam também em presença dum escultor.

Em 13 de Julho de 1928, sete anos decorridos após a sua entrada na Escola, concluía, sem perder nenhum ano, o curso de escultura, com a prova intitulada «Abel e Caim», classificada com 15 valores, e média geral de 13,4.

A realidade da vida chamava-o aos 22 anos; ia agora, de facto, entrar nela e realizar a sua maior aspiração.

Tornava-se urgente uma oficina; começou primeiro por trabalhar em casa de seu pai, que era nessa altura na Travessa Estevão Pinto, rua de Lisboa, mais do campo que da cidade. Os arcos de Campolide, quintas pitorescas e hortas de pequenos casais eram o cenário procurado de novo pelo homem que tinha a paixão do campo.

Depois apareceu uma pequena sala, situada ao lado da oficina do seu colega Neves, próximo à Praça das Flores, onde foi por ele modelado o nosso busto. Por essa altura, foi professor do Ensino Técnico, numa das nossas escolas industriais, mas por curto espaço de tempo.

Toda a sua vida tencionava empregá-la unicamente a trabalhar até quando a luz do dia o permitisse, só, independente e livre.

Precisava de viajar, para ver o que se fazia lá por fora; ei-lo a caminho de Paris e Berlim. A capital da França falou-lhe.

Um ano depois construía, sob projecto de Veloso Reis, amigo comum, a sua oficina própria, na Rua do Arco Carvalhão, entre as Amoreiras e Campolide, com o alçado simples de um bico elevado, um gótico do século XX, pequenino retábulo dum imaginário, abrigo franco a todos nós, os desse tempo.

Em 1929, com o fim de começar a expor nos Salões da Sociedade Nacional de Belas Artes, fazia-se sócio da casa dos artistas, proposto por seu pai e por seu cunhado Martins Barata, sendo aprovado efectivo com o número 258.

Nesse mesmo ano concorria pela primeira vez à Exposição da S. N. B. A., onde foi admitido, apresentando a estátua «Salomé», interpretação sensual e esguia dessa tão estranha mulher, sempre falada através dos tempos, não se sabendo ainda bem ao certo porquê: por ser estranha, por ser bela, por ser má, ou unicamente por ser mulher…

Mais dois trabalhos, a nossa cabeça e a do também já desaparecido e talentoso pintor José Tagarro, completavam o conjunto de obras vindas do artista às Salas das Exposições.

Começam os triunfos: obtém a 3.a medalha e entra com a cabeça de Tagarro, para as galerias do Museu Nacional de Arte Contemporânea por proposta do Estado; a crítica recebe-o com elogiosas referências; os consagrados olham-no devagar, os camaradas gostam dos seus trabalhos (caso bastante difícil entre nós) e Ruy sorri a todos despretensiosamente com o seu modo quási infantil, quando as felicitações começavam a aparecer.

Verificada a realidade dum sonho, outro existe no artista para realizar.
Veloso Reis é chamado a projectar a sua futura habitação, na Rua Azedo Gneco, que a pouco e pouco durante longo tempo foi decorando, cheio de contentamento, com encantadora e fresca simplicidade no arranjo de todos os detalhes, em lagos de vidro grosso onde viviam peixes multicores, obras de arte, «bibelots» feitos pelas suas próprias mãos, a casa de um verdadeiro artista que se vai casar em breve.

No dia 27 de Maio de 1933 realizava-se a união para a vida e para a morte de Maria Helena Castelo Branco com o escultor Ruy Roque Gameiro.

No acolhedor «atelier» da Rua do Arco Carvalhão, passámos horas que nunca esquecem, nessas camaradagem e amizade tão íntimas que já vão rareando a ponto de nos apetecer a seu respeito usar o lugar-comum de «no nosso tempo …»

Tinha uma ligeira rampa à entrada, uma salinha à direita e ao fundo a sala grande, destinada a casa de trabalho.

Muitas vezes, na ânsia do sol, da côr e do ar fresco, saíamos juntos, «motor-aberto», nessa «moto» fatídica, a saltar à beira do Oceano e descer devagarinho quando o sol se deitava, mais preguiçoso do que nós.

No dia seguinte o seu refúgio esperava. Vinha trabalhar e de vez em quando dava uma reparação à «moto», que se encontrava fazendo parte da oficina de escultura, a lembrar os primeiros passos da sua vida…

Mesmo quando se produzia, nunca se tomou aquele ar propositadamente sério dos grandes momentos — nunca, porque ao pé do Ruy ninguém se mantinha por muito tempo sem mostrar que a vida devia ser sinceramente vivida e alegre.

Duma vez pintávamos o retrato de Rosa Maria, «estrela» de cinema da época; era uma tela grande, em atitude invulgar e arrojada, cuja pose foi sugerida pelas opiniões de Ruy.

Tudo ia muito bem; pintura saída à primeira, a cara é que começava a ser repintada e a resultar com aspecto desagradável e francamente de má pintura.

Intervém aconselhando a solução do caso: «largas pinceladas a formarem grandes planos e depois junta-os todos — mas primeiro raspas tudo o que tens. É pá! experimenta!» Seguimos esse conselho e mãos à obra. Ruy apenas pronunciou o seu bordão: «Fixe!» E a cabeça da artista aparece finalmente numa parecença absoluta e pintada, para nós, como deveria ser pintada.

Rompeu a cantar de contente; abraça-nos, salta a nosso lado e sem darmos por isso, todos nós, (pois que, Rosa Maria contagiada, também saltou da «pose»), dançávamos em volta do quadro numa expressão de contentamento, comandada pelo Ruy, na linguagem alegre da sua alma.
Foi uma tarde feliz para todos. Alegrava-se ao máximo com os resultados do triunfo, após qualquer luta; gostava de lutar e vencer. Uma tarde, ao comunicar a notícia de ter ganho determinado concurso, dum trabalho realizado com a colaboração do arquitecto Veloso Reis, apressado, corado da possível correria até lá, entra em casa do seu camarada a cantar, a rir, forma uma bicha de mãos dadas, composta pelos dois e a esposa do arquitecto, percorre assim toda a casa, cantando a vitória obtida humanamente, sempre com a tal linguagem simples da alma. De uma outra vez, falávamos do estetismo feminino: belezas clássicas e antigas à Vénus de Milo ou à Rubens, modernas e contemporâneas, nas esguias personagens de Despiau ou Van Dongen, e ultra-modernas, nas falsas magras em voga, devido à invasão da moda, lançada pelas triunfadoras nórdicas de sorrisos enigmáticos, através do claro-escuro cinematográfico.

A conversa, sendo simples, parecia complicar-se…

E a discussão terminou assim :
Chamou-nos a atenção para a influência da côr e disse: «todas as mulheres vestidas de azul são bonitas».

Ficámos surpreendidos com a afirmação e retorquimos com teoria idêntica, chamando-lhe a atenção da forma; «repara que todas as mulheres que usam óculos têm as pernas bem modeladas».

Exultámos pelo avanço dos conceitos criados; deveria ser assim, com certeza.

E ou fosse por mero acaso ou fosse por uma deliciosa sugestão imposta a rir despreocupadamente a nós mesmos, (mas que se estivesse nessa altura firmado por precursores chagallistas ou picasseanos seria um curioso princípio estético super-realista), o que é certo, é que todas as mulheres que passavam à porta da oficina eram, consoante o azul ou os óculos, conforme nós as tínhamos classificado em teoria.

Delirava com o acerto. Era assim esse maravilhoso e simples rapaz, amigo das crianças e dos animais, por causa de quem muitas vezes foi parar às esquadras de polícia, misturado com mães que batiam nos filhos ou com carroceiros que batiam nos cavalos…

Era assim mesmo, sem ar de artista feito ou preocupadamente feito à custa de aspecto exterior ou de teorias estonteantes, geralmente engendradas e fechadas ao perímetro circular duma mesa de café.
Francamente popular, passando desapercebido nas ruas, tal o seu aspecto vulgaríssimo, cultura geral mediana ou talvez melhor muito pouca, além das viagens ao estrangeiro, Ruy, um pouco à semelhança do escultor espanhol Mateo Hernandez, possuía mais a simplicidade da forma do que a complicação da literatura plástica.

Conta-se que Mateo disse a propósito da sua cultura que: «mi libro es Ia vida». De Ruy Gameiro podia dizer-se quási o mesmo.

Poucos livros lia; os autores célebres eram-lhe desconhecidos; no entanto Eça de Queiroz existia com suas obras, na tal salinha à entrada da oficina; em cima duma mesa quadrada, tendo a servir de pano um cobertor popular de garridas faixas, um «gouache» assinado por nós na parede da frente, um cinzeiro de barro e um livro pequeno contando a vida de Hernandez, o tal escultor espanhol, e que tinha nascido do povo.

Eça de Queiroz estava em boa companhia. O Ruy era atraído pela sinceridade nos seus aspectos simples ou complicados, leves ou rudes, e até sociais, compondo imagens, grupos em esquiços onde a força da sua arrogância de escultor se revelava já em catadupas de inconformismo e se começavam a adivinhar as tão difíceis simplicidades técnicas de soluções que só os mestres, os que a ciência classifica de super-normais, a transpor o limiar do génio, conseguem realizar.

Adorava a gente humilde do povo, a sua forma simples de viver e de vestir; abria a janela do seu «atelier» para ouvir de olhos rasos de água o cego cantor da rua; gostava de ver passar as varinas em correria de gaivota; encantava-o ver as saloias lavadeiras com muitas saias e botas de «flor»; perdia a noção do tempo a conversar com simples pescadores, com todo esse lirismo do povo que se movia nas ruas tão lindas de Lisboa, onde o artista descobria o ritmo vigoroso do mar, nesta gente estremenha, ribeirinha e atlântica, que olha o Sado, o Tejo e, não contente, lança o golpe de vista lá para mais longe em busca de outras águas com mais misteriosa vastidão…

Era um sentimental, sem ser romântico; sabia rir, mas também sabia chorar — duas condições primárias para se saber viver.

O trabalho não lhe metia medo; nunca houve nele um leve desejo de folga ou de repouso; queria trabalhar sempre, por muito violento ou áspero que ele fosse; mesmo os mais grosseiros da sua profissão, tais como ferragens, armações, esqueletos e o enchimento das massas volumosas, era ele que fazia tudo isso, amassando por vezes o próprio barro, operação esta violentíssima, que ele fazia atleticamente, operariamente, dando satisfação íntima ao desejo que existia dentro da sua maneira de ser.

A par disto, a sua alma de eleito, um original sentido estético, uma coragem límpida, posta de uma só vez, inteiramente, ao serviço apaixonado da Arte de Miguel Angelo.

Era um modernista, não à força de procurar ritmos intencionalmente forçados, mas porque era assim mesmo; eram a época e a idade a impô-lo, e o sentir, a ordenar.

Não era um moderno «à maneira de», com preocupações de termos a que ele não ligava muita importância e que eram importados através da cultura revisteira, de perlengas eruditas que o desconcertavam e até o faziam sorrir quando as ouvia aos outros camaradas, mais cultos…

Havia nele uma personalidade especial que era só dele, pessoal, ao ponto de não conhecer e não se deixar influenciar por ninguém; possuía, no entanto, a noção exacta do equilíbrio que resultava sempre dum pensamento espontâneo, lógico e natural, sobre o equilíbrio duma noção própria.

E esse equilíbrio partia dele de «dentro para fora», quási num singelo primitivismo onde a fantasia do saber não tinha tocado — tudo nele nascia como devia nascer; livre, belo pela criação, grande pela alma, vivo pela vida; — nunca consentiu tutor para lhe ajudar o crescimento da forma — ele próprio a fez.

Sentia como se fosse um marinheiro ou cavador — a sua vida era o barro, a deles o mar e a terra — o céu, o mesmo para todos… talvez uma única vontade em globo, de gritar aos complicados fantasistas: o Mundo e a Vida são isto e foi Deus que tudo criou.

Sentia assim, tal como o nosso querido Mestre e amigo Veloso Salgado nos dizia na sua encantadora aula de pintura: «se fôssemos sinceros, que seguíssemos sempre por aí fora sem olhar a ninguém».

E era verdade, o que nos dizia o simpático e amigo Mestre. Não se pode dar ouvidos a algumas críticas dos outros e mais a essa desastrada opinião pública, adoradora passageira dos seus ídolos, partidária quási sempre das coisas de mau gosto, no campo da Arte.

Não se confunda, aqui, o povo ingénuo na sua singela e sedutora beleza; este representa o tal encantador primitivismo, sem mácula; o outro, o que alinha no título geral de opinião pública, não é nada e tem como cultura o que a sua vaidade rebusca nos almanaques e aquilo que ouve dizer. O primeiro representa simbolicamente o Ruy Gameiro, o segundo, não sabemos…

Se quisesse, era helénico, era clássico, era moderno, quási ultramoderno, sub-conscientista até, sem nunca ter pensado muito a sério nessas coisas que se inventaram para dividir e criar escolas, aumentar a cotação nas bolsas dos «marchands», sem se lembrar quem as inventou, que a Arte é só uma, seja lá como for, e que os museus, as «patines» mais o caminhar dos tempos impõem (e então já a opinião pública) que se esqueçam os medíocres e se fale sempre nos que foram grandes.

Ruy Gameiro sabia apenas que era escultor, era o que ele queria ser. Artista — era-o ele próprio sem dar por isso.

Possuía a noção justa da escultura para a Praça Pública, ao ar livre, rígida, a verdadeira estatuária-arquitectónica, com o movimento da sua vida interior parado a tempo, a-fim-de não se confundir com o parado movimento das multidões; a demarcar a alteração da uniformidade geral que marcha sem saber andar, olha sem saber ver, impondo que suspenda o caminho por um segundo, para lhes afirmar — «eu sou, eu represento, eu simbolizo». A ele se devem, em parte, na escultura dos últimos anos em Portugal, os primeiros arrôjos, as primeiras oposições à estátua de «pirueta», de rendilhado, ilógica para as grandes perspectivas de figura de candeeiro de entrada do «202» do grande Eça, assim como a cenografia de apoteose plástica género «mágica», — e o seu primeiro trabalho nesse sentido foi o sólido, o arrogante e sentidamente nacional monumento aos mortos da Grande Guerra, em Abrantes, o primeiro da escultura portuguesa a ser fundido em cimento.

A estátua a ser transportada.

De colaboração com o arquitecto Veloso Reis realizou depois o projecto de outro monumento com o mesmo fim simbólico para Lourenço Marques, classificado em primeiro lugar na reunião de júri em 26 de Novembro de 1931 e entregue solenemente à Câmara Municipal da mesma cidade, em 11 de Novembro de 1935.

Bastavam estas duas estátuas para marcar a existência dum grande escultor.

Porém, essa maravilhosa colecção de baixos relevos para o monumento ao Infante de Sagres, com arquitectura dos irmãos Rebelo de Andrade, foi das maiores expressões do seu talento, do seu portuguesismo, do seu enorme poder criador.

Embora não se chegassem a realizar em material definitivo, figuraram brilhantemente nas Exposições Internacionais de Paris, em 1938, e de New-York, em 1939.

De intenso valor expressivo, essas admiráveis peças lembram a composição dos painéis vicentinos de Nuno Gonçalves, e onde Ruy Gameiro viveu como português a alma de Portugal, que um dia partiu em busca do mundo, sentiu talvez vontade de rezar, sem nunca o ter feito (embora fosse crente em Deus), de combater sem nunca ter entrado num combate, de se fazer ao mar sem nunca ter sido marinheiro e finalmente de sentir tudo isso junto, o que fez de facto.

Executou com superior talento a estátua de D. João II, que se encontrava modestamente colocada na Avenida da índia, em Lisboa, e que mais tarde figurou com dignidade na maravilhosa Exposição do Mundo Português, em 1940, no ano histórico das Comemorações Centenárias.

Esta estátua é também considerada uma das suas melhores realizações; D. João II, chefe do movimento político-geográfico de Portugal, aparece na sua figura austera de pessoa humana, tendo bem expressa a nota vincada do precursor do impulso desta Pátria que olhava inconformada a vastidão do mar.

Uma «Figura decorativa», exposta em Lisboa, na S. N. B. A., no ano de 1933, no «Salão dos Independentes», conjuntamente com outra destinada à filial da Caixa Geral dos Depósitos, em Santarém, mereceram o aplauso inteiro da crítica e Artur Portela afirmava no «Diário de Lisboa»: «artista cheio de juventude e originalidade, com uma estátua que é um prodígio de graça e uma figura decorativa modelada com humano calor».

A sua escultura, mesmo sem ele querer, tinha grandezas comparadas às desse génio com figura de apóstolo que se chamou Bourdelle, artista nascido em França e pertença do Mundo.

Na parte referente a cabeças, além de algumas a que já nos referimos, deixou-nos as do arquitecto Veloso Reis, Dr. David Benoíiel (exposta no II Salão dos Independentes em 1931) e algumas curiosas cabeças de mulher, entre elas a de uma estranha bailarina, além de dois admiráveis bustos de Diogo Cão e Bartolomeu Dias, este último que figurou no Pavilhão de Portugal, na Exposição de Sevilha.

No páteo empedrado, antes da entrada da casa de sua família, na Travessa Estêvão Pinto, para as janelas da qual modelou uma grinalda de flores ao sabor do século XVIII, existe hoje uma estátua, representando a «Força», destinada à escadaria da Assembleia Nacional, que não chegou a ser executada em pedra, por não estar no espírito da concepção do conjunto. Ruy, de facto, também não gostava dela, mas é no entanto uma estátua no mais elevado sentido, peça de estatuária para arquitectura, com pormenores de real valor, aliados a uma realização vigorosa no sentido da sua representação.

Pouco antes de morrer, tinha esboçado um estudo em baixo-relevo representando D. Nuno Álvares Pereira, a cavalo e de mãos postas, que infelizmente não chegou a executar em grande. Seria talvez uma oportunidade de consagrar quem falta…

Deixou-nos também algumas peças animalistas, em metal e ferro saídas das suas mãos obreiras, numa estilização avançada de ultra-modernismo, além de ter igualmente tentado a cerâmica.

Dessa modalidade, legou-nos uma graciosa peça de sabor popular, um canjirão intitulado «Santo António de Lisboa», feito com doçura estremenha, em barro cozido em duas tonalidades (creme e vermelho), que constituiu na reconstituição dum mercado português do século XVII, realizado nas Festas da Cidade em 1934, um gracioso documento da popularidade do artista: ele próprio se encontrava na barraca que os vendia, sempre sorridente, popular, anónimo…

Das suas mãos e do seu bom humor também saíram peças de cerâmica caricatural, figurando Greta Garbo e Maurice Chevalier.

Continuava a saber rir, continuava a ser uma vez por outra o tal aluno irrequieto da Escola de Belas Artes de Lisboa…

Ruy Roque Gameiro, foi um grande artista e uma grande alma. Viria a ser um grande escultor de Portugal — ia a caminho do triunfo, aquele superior triunfo que só é grande quando se luta muito. José de Figueiredo, o esteta admirável e crítico ilustre, profetizava a sua consagração. O meio artístico e intelectual seguia-o com a inquietação de quem espera mais; o povo começava a adorá-lo e talvez até a compreendê-lo. O Estado consagrou-o, e os amigos recordam-no…

Num domingo, ao cair da tarde, no dia 18 de Agosto de 1935, depois de passar mais um dia puro da sua ingénua vida, em casa de família, próximo da Iguaria, em Colares, ao regressar a Lisboa com sua mulher, numa curva traiçoeira da estrada de Sintra, num choque violento entre a sua «moto» e um automóvel, continuaram na morte o sonho encantadoramente humano e espiritual que os encantou durante curto espaço de vida.

Ruy e Maria Helena fazem hoje parte duma vida especial, que do alto do Céu olha com calma para tudo e sabe ser indulgente até para os que porventura se tenham esquecido deles…

Mãos amigas ergueram, quási ao nível do chão, na estrada de Sintra, algumas pedras brancas em singela memória, onde caem sempre flores, a lembrarem aos que por ali passam a saudade que ficou de Ruy Roque Gameiro, artista de garra, no caminho do génio, nascido na Estremadura e que desapareceu quando começava justamente a aparecer.

21/10/2011

SAMORA MACHEL VINTE CINCO ANOS DEPOIS: OS EVENTOS E A NOTA DE FERNANDO LIMA

Samora Machel revisitado - mais uma vez.

Por razões evidentes de regime, mas também históricas e de senso comum, Samora Machel é lembrado e comemorado, mesmo vinte cinco anos após o seu desparecimento físico num acidente, ou incidente, aéreo, cujas causas ainda fazem correr tinta (vejam-se os esforços continuados de Mamã Graça e os tiros quase hilariantes trocados entre o Sérgio Vieira e o João Cabrita).

Lamentavelmente (suponho que deve ser qualquer coisa ainda a ver com a herança cultural portuguesa) celebra-se, não o dia em que nasceu, mas o dia em que morreu. Eu sei que Samora Machel nasceu num 29 de Setembro e que em Moçambique este mês já está pejado de feriados. Mas comemorá-lo não tem que ser um feriado. Senão qualquer dia Moçambique fica como Portugal, com tantos feriados que não se trabalha. E acima de tudo, Moçambique precisa que se trabalhe. Não querendo ser dogmático, eu diria: querem celebrar Samora? então trabalhem mais.

Esta semana, por exemplo, finalmente, lá se fez o gesto de colocar no lugar vago por Mouzinho de Albuquerque uma estátua menos má de Samora (importada da Coreia do Norte, doze metros de altura, sem pedestal, um bocadinho demais ao estilo do Querido Líder lá nos confins da península coreana mas enfim) mais uma vez recompondo a bem conseguida estética da praça em frente ao edifício do Conselho Municipal e, espero, salvando-a de vez de um plano de reconfiguração totalmente surreal que circulou em tempos pelos circuitos subterrâneos da máfia moçambicana na internet, creio que da autoria do Sr. Arquitecto José Forjaz.

36 anos depois de Mouzinho out, Samora in.

Mas, para além de uma romaria ao local do acidente/incidente em Mbuzini, na vizinha África do Sul, e do gesto simpático de Jacob Zuma e de Sua Eternidade salazarenta o Sr. Robert, terem publicamente agradecido qualquer coisinha pela catástrofe libertadora infligida ao povo moçambicano sob a liderança de Samora logo a seguir à declaração de “independência” (na verdade, Moçambique tornou-se independente dez dias após a assinatura dos acordos em Lusaka, no final da primeira semana de Setembro de 1974), o prato forte foi uma conferência sobre Samora em Maputo.

A conferência teve a interessante, e provavelmente única, e irrepetível, característica, de reunir sob o mesmo tecto uma boa parte dos protagonistas ainda vivos dos eventos de que resultou, entre 1974 e 1992, a entrega, ou a tomada, dos governos da maior parte dos países da África Austral, para as mãos de elites nacionais, seguindo apenas um pouco mais tardiamente o curso de quase todo o resto da humanidade.

Papá António e Mamã Graça na Conferência sobre Samora.

Sobre a mesma, com profunda vénia, reproduzo em seguida o magnífico texto da autoria de Fernando Lima, participante, espectador, jornalista e também gestor de media, que viveu muitos dos eventos ali tratados e que pelos vistos esteve sentado lá o dia inteiro a ouvir o que as pessoas tinham para dizer. Este texto foi publicado no jornal Savana, que se publica em Maputo, na sua edição de hoje.

Aqui vai:

Quando Samora era Jack Dempsey

Por Fernando Lima em Savana, 21 de Outubro de 2011

Terça-feira fui ao Centro de Conferências, ali para os lados do Miramar, aqui na capital, e fiz como disse que faria o Dr. Almeida Santos, um dos ilustres oradores no simpósio dedicado a Samora Machel. Apesar de não ter convite, fiz-me à sala e passei lá o dia todo. Ouvi 15 intervenções e como não levava bloco de notas passo a citar de memória.

Do que gostei mesmo foi das memórias de Albino Maheche, um “mais velho”, enfermeiro de profissão, que fui aprendendo a conhecer pelas bandas do ministério da Saúde no pós-independência.

Maheche, um contemporâneo e amigo de Samora, trouxe à colação as suas recordações da vivência em comum com o então jovem enfermeiro Machel. E ficámos todos a saber do seu fascínio pelo boxe, como era hábito na década de 50/60. Craveirinha, também contemporâneo de ambos, redige o famoso poema de exaltação ao combate de desforra protagonizado pelo pugilista negro Joe Louis em Berlim. (“A desforra do nosso Joe Louis frente ao Max Schmmeling/veio no telégrafo e saiu no jornal Notícias/mas quanto ao resto em Lourenço Marques…/Nada !/O resto não saiu no jornal Notícias/Não saiu na Rádio Clube de Moçambique./Só o Brado Africano é que está a dizer./Portanto guarda bem guardado este Brado/e treina muito bem este boxe !”).

Samora, na camarata onde viviam os aspirantes a enfermeiros, levava a alcunha de Jack Dempsey, um formidável boxeiro americano, campeão de pesados entre 1919 e 1926. Para melhorar o seu boxe, Samora golpeava com frequência um saco de areia na casa de banho e assistia aos combates que tinham lugar habitualmente no pavilhão do Malhangalene (hoje Estrela Vermelha).

Também ficámos a saber que um padre católico na Catedral o apoiou nas matérias lectivas do 2º. ciclo dos liceus, que gostava das disciplinas de História, Geografia e Português, sabendo de cor várias estrofes dos Lusíadas de Luís de Camões, leitura obrigatória na escola.

Quase inevitavelmente, os jovens Maheche e Machel cruzam-se com o Dr. Mondlane, então hospedado no Khovo (Missão Suiça), vindo dos Estados Unidos. Ali se cruzam também com o poeta Virgílio de Lemos (exilado desde 1963 em França) que queria que os dois se juntassem ao movimento independentista. Lemos tornou-se conhecido por ter apelidado a bandeira portuguesa de “kapulana verde e vermelha” e mais tarde foi preso durante 14 meses por advogar a independência de Moçambique.

Na opinião de Maheche, o estilo contestatário de Machel não ajudou a sua progressão na enfermagem. Numa das aulas, a propósito de enfermeiros e massagens, Samora jocoso quis saber quem dava massagens ao ditador Salazar, conhecido como asceta e celibatário.

Os monitores tomaram-no de ponta e nem sequer o deixaram fazer prova oral de um exame onde tinha positiva na escrita.

Pelo relato da sua filha Ornila fiquei a conhecer um bocadinho mais do Samora doméstico. Dos jantares em família, apesar de ser o “camarada presidente”. Dos treinos dedicados às meninas “para saberem caminhar como senhoras” equilibrando um livro no alto da cabeça, como cruzar as pernas, como sentar e levantar. De como o trautear a canção “canta, canta minha gente, deixa a tristeza para lá” deu origem a semanas de rigoroso “chá” sobre liberalismo e libertinagem.

Não sabe a Ornila porventura que o dito Martinho da Vila, o autor brasileiro da canção, em carne e osso, na sua primeira visita a Moçambique depois da independência, por causa da “libertinagem”, foi impedido de actuar em Maputo e, para salvar a digressão, foi mandado para a Beira, onde actuou para uma plateia de militantes da Frelimo no pavilhão do Ferroviário.

Por causa da mesma libertinagem, anos mais tarde, Bob Marley foi impedido de vir a Moçambique, pois passou a cerimónia da independência do Zimbabwe, no Rufaro Stadium, a fumar vigorosos charros de suruma, mesmo por detrás da delegação oficial moçambicana. O que me recorda a simpatia que os “freaks” citadinos nutriam por Samora à altura da independência, alegadamente por não ser contrário à legalização da “cannabis”. As razões prendem-se com um famoso discurso, em que perante o rufar inebriante dos tambores, Samora disse qualquer coisa como “a cultura é como a suruma a subir pelas nossas veias”.

Voltando para o Zimbabwe, da ajuda de Samora à independência da Rodésia do Sul se encarregou Robert Mugabe, também convidado do simpósio. E como a história é habitualmente feita pelos vencedores, ficaram na gaveta as memórias de Mugabe como pacato professor de inglês na cidade de Quelimane, enquanto Samora apostava numa guerrilha vitoriosa das forças com a sigla ZIPA (Exército Popular do Zimbabwe). E como a história dá muitas voltas, mais tarde os comandantes do ZIPA acabaram presos em Moçambique por solicitação de Mugabe, como documentado por Dzinashe Machingura. Mas isto seria matéria de dissertação para os saudosos Fernando Honwana e Rafael Maguni, por sinal o primeiro embaixador de Moçambique no novo Zimbabwe.

Mugabe falou de Samora, mas aproveitou o microfone aberto e um moderador temeroso do [seu] estatuto “chefe de Estado” para perorar longamente sobre a guerra no Iraque, a selvajaria de George W. Bush, as maquinações de Sarkozy, a ineficácia da União Africana na questão líbia e até o harém de prostitutas à disposição do primeiro-ministro italiano Sílvio Berlusconni.

Quando um jovem exaltado o interpelou sobre os moçambicanos pretos que hoje se substituem aos colonos brancos na partilha das riquezas, Mugabe passou ao lado do debate dizendo secamente que era melhor que as riquezas fossem desfrutadas por nacionais do que por estrangeiros.

Almeida Santos, provavelmente o mais famoso advogado do Moçambique colonial, amigo de Craveirinha, Nogar, Luís Bernardo, Malangatana, de Graça e Samora, mostrou que tem a oratória em forma. Chamou de “preguiçoso” a Luís Bernardo Honwana, o moderador do seu painel, por continuar a ser o nosso escritor de uma obra só, o cão tinhoso que as nossas crianças descobrem na escola pública.

E como Almeida Santos não deixa créditos por mãos alheias, disse ao simpósio que sugeriu a Samora o pacto com a África do Sul que ficou conhecido como o Acordo de Nkomati e organizou a apresentação em Londres a Harry Oppenheimmer, o sul-africano patrão da Anglo-American e crítico do apartheid. Tal como tinha acontecido com Ronald Reagan, Samora descrito por Almeida Santos como “um conquistador” , “um sedutor” , entrou na sala onde estava Oppenheimmer e, por entre efusivos abraços, tratou-se como “Senhor Capital”. Aparentemente, foi “amor à primeira vista”.

Menos simpático ficou na fotografia o já falecido jornalista Pinto Coelho, a quem Almeida Santos revelou ter pedido o “frete” de fazer uma reportagem favorável sobre Samora para preparar o que depois foi a sua viagem triunfal a Portugal [em 1983]. E lá deixou cair também que Samora se “esqueceu” dos papéis para o discurso na Assembleia da República mas conseguiu arrancar um dos mais espectaculares improvisos da sua primeira visita à antiga metrópole colonial.

Noite fora, Marcelino dos Santos, que já disse que ele era a própria Frelimo, vestiu pose mais modesta para falar do humanismo do companheiro Samora, dando os respectivos recados, socorrendo-se do belo poema de Jorge Rebelo, “não basta que seja pura e justa a nossa causa/ é necessário que a pureza e a justiça vivam dentro de nós”. Uma espécie de desforra à recente afronta na reunião nacional de quadros da Frelimo onde o mandaram calar.

Gostei da postura mais académica, menos presidencial de Joaquim Chissano dissertando sobre o Estado-Nação, dos “conselhos” de Prakash Ratilal à juventude que pensa que o futuro é um pronto-a vestir e Óscar Monteiro, que replicou sobre a tradicional “intuição” atribuída a Samora. Gostei que Mário Machungo tenha desenterrado o “samorismo” que defendia Aquino de Bragança, ele que foi um dos vergastados do congresso de Quelimane por defender regras e o rigor na economia moçambicana. Gostei da intervenção emocionada do general Chipande, clarificando a morte do padre holandês (se não me engano em Nangololo) às mãos de dissidentes da Manu ( que um lapsus linguae atribuiu à Renamo), embora não estivesse lá Gruveta para contestar a teoria do primeiro tiro em Chai. Na versão portuguesa, e na cola dos acontecimentos em Angola e no Congo, o assassinato do padre foi o início da luta armada.

A Universidade Eduardo Mondlane organizou o debate mas esteve muito fraca na matéria crítica que podia e deveria ter trazido ao Simpósio. Quando se elevam a categorias históricas termos como “o pai da nação” e o “criador da geração 8 de Março”, fica a impressão que a academia continua a reboque dos acontecimentos, incapaz de aportes críticos e investigações sérias e seguras, indicativas de protagonismo independente dos poderes do dia. Deliberado ou não, os louros das contribuições foram para fora dos muros da universidade.

Armando Guebuza, fez questão de seguir o debate de fio a pavio. Certamente que já deitou contas à vida de como quer ficar na história dos seus dois mandatos constitucionais: eventualmente pela via das presidências abertas ou pelos sete bis aos distritos.

Porém, na “família da Frelimo”, há duas famílias que lhe estarão indelevelmente gratas: os descendentes de Mondlane e Samora. A presidência Guebuza, aparentemente, sarou ou procurou claramente pôr fim às feridas expostas destas duas famílias com contas a ajustar no seio da Frelimo.

Com a poeira e os ventos que nos afagam a memória, o futuro será certamente o melhor juiz.

(fim)

07/02/2011

CARLOS MENDES, O ARQUITECTO DO BAZAR DE LOURENÇO MARQUES

Do sítio ProF. 2000, com vénia, retirei o texto em seguida, creio que da autoria do Sr. Carlos Albino:

Carlos Mendes, que concebeu o actual Bazar de Maputo, inaugurado em 1903.

De seu nome completo Carlos Augusto José Mendes, nasceu perto da cidade de Aveiro a 13 de Agosto de 1869, no Cojo, filho de um empregado da Alfândega e de uma padeira. Era gente muito pobre.

Apesar de inúmeras dificuldades materiais, o seu enorme talento artístico impeliu-o a matricular-se na Academia Portuense de Belas Artes, em Arquitectura Civil, em 21 de Outubro de 1889.

O Bazar de LM, pouco depois de inaugurado. Que eu saiba, foi a única obra de Carlos Mendes em África.

Aí frequentou também Escultura, Desenho Histórico e Pintura, tendo sido companheiro de estudos dos que viriam a ser os tão conhecidos aveirenses, arquitecto Jaime Inácio dos Santos e escultor José Maia Romão Júnior.

A grande pintora portuguesa Aurélia de Sousa foi sua contemporânea na Academia.

Carlos Mendes foi primeiro 2° prémio do concurso “Soares dos Reis”, com um projecto de “invenção de arquitectura civil”.

Nos arquivos da Academia Portuense de Belas Artes há notícia de Carlos Mendes, como aluno, ate 31 de Agosto de 1894 [tinha 25 anos].

Em 1908 [38 anos] , publicou um anúncio no jornal aveirense “Democrata”, oferecendo-se como professor de desenho e pintura e projectista de arquitectura.

Outro aspecto do Bazar. Construído sobre terrenos onde antes havia uma praia, o trabalho de aterro aqui nunca foi adequadamente feito, por não ter sido nivelado com a "ilha" em frente. O resultado é que sempre que chove copiosamente, a zona inunda.

Foi o primeiro Comandante dos Bombeiros Novos de Aveiro, de 1 de Dezembro de 1909 até Outubro de 1913.

O primeiro quartel [dos Bombeiros de Aveiro], feito de raiz, de sua autoria, começou a ser construído em 1920.

O desenho do auto de posse da Primeira Comissão Municipal Administrativa Republicana é de sua autoria.

Carlos Mendes foi chefe da repartição das Obras Municipais da Câmara de Aveiro, merecendo, conforme registos em actas camarárias, desde a mais violenta censura até ao mais rasgado elogio, como funcionário, como arquitecto e como cidadão.

Outro aspecto do Bazar de LM.

Tentou a sua sorte nas Colónias e deixou em Lourenço Marques, hoje Maputo, talvez a sua obra arquitectónica mais impressiva: o Mercado Municipal desta cidade moçambicana é de sua autoria, constituindo visita obrigatória para os estudantes de arquitectura da África do Sul.

Veio a morrer em Aveiro, aos 25 de Maio de 1922 [com 52 anos de idade].

Mais uma imagem da fachada frontal do complexo, que dá para a actual Avenida 25 de Setembro em Maputo.

A parte de trás do Bazar tinha uma zona aberta ao céu, chamada pelos vistos o "bazar nativo", que desde a abertura teve um grande sucesso. E pelos vistos era já destino turístico.

Mais uma imagem da parte de trás do Bazar, em dia de muito negócio.

Uma vista aérea da zona do Bazar nos anos 60. Com a destruição do Café Olímpia e a construção do mastodonte onde hoje se situa a sede do Millennium BIM, a zona começou a descaracterizar-se.

A actual fachada. Durante o mandato de Eneas Comiche, já neste século, a cidade mandou arrancar o símbolo original e colocar o nome e selo actual da cidade. O efeito estético é este.

O enquadramento actual do Bazar. Apesar de tudo, continua a ser um dos principais monumentos de arquitectura pública da cidade. Consta que vai ser restaurado. Carlos Mendes agradece.

17/12/2010

EXPOSIÇÃO “AS ÁFRICAS DE PANCHO GUEDES” EM LISBOA ATÉ 8 DE MARÇO

Filed under: Arquitectura Moçambique, Pancho Miranda Guedes — ABM @ 11:12 pm

Saiu no Diário de Notícias de ontem. O texto é da jornalista Marina Marques. Com vénia, aqui vai:

(a parte salientada é obra minha)

Colecção feita ao sabor de viagens e amizades

São mais de 500 peças de artes plásticas, artesanato, arte popular, objectos  do quotidiano e de carácter ritual que Pancho Guedes juntou desde os anos de 1950/60.

À entrada, uma arca concebida por Pancho Guedes cheia de estátuas de animais em madeira, qual Arca de Noé, é uma das poucas peças feitas pelo artista patentes na exposição “As Áfricas de Pancho Guedes”, que pode ser vista no Mercado de Santa Clara, em Lisboa, até 8 de Março. “É o Pátria”, diz o arquitecto, numa referência ao transatlântico que fazia a ligação entre Moçambique e Portugal.

Diferente das habituais colecções de arte africana, escolhidas em antiquários, Pancho Guedes foi juntando estas mais de 500 peças a partir dos anos 1950/60, e o acervo foi enriquecido um pouco ao sabor das viagens profissionais do arquitecto e das relações pessoais que foi travando.

E isso mesmo se percebe ao percorrer a exposição na sua companhia, à medida que vai contando a história de cada peça. Objectos de carácter ritual – como as máscaras de iniciação lómuès (tribo do Norte de Moçambique) – ou de uso quotidiano surgem lado a lado com obras de arte plástica, arte popular e artesanato. E como Pancho Guedes percorria grande parte do território africano em trabalho ou a título particular, recolheu peças de locais tão diversos, como os desertos do sudoeste de Angola ou a Nigéria.

“Uma exposição imprevisível e irreverente”, diz Alexandre Pomar, que comissaria a exposição, juntamente com Rui Mateus Pereira. “E a montagem da exposição ainda acentua mais esses aspectos, porque houve uma grande intervenção do arquitecto, mesmo na colocação de algumas peças, que não corresponde ao habitual noutras exposições”, refere. Situação ilustrada por um busto de Salazar, em pau-rosa, que Pancho Guedes quis fixado na parte superior de uma vitrine, de cabeça para baixo. Bem-disposto e com sentido de humor, o arquitecto explica: “É como se estivesse no céu, mas vem cá de vez em quando.”

Na sequência de três outras exposições de colecções africanas promovidas pela Câmara Municipal de Lisboa, esta é uma colecção mais próxima da realidade e das populações africanas e apresenta numerosas peças de artistas amadores, “gente que trabalha noutras coisas e que faz a sua pintura e escultura fora de horas”, nas palavras de Pancho Guedes. De entre os vários exemplos, destaque para um núcleo de bordados. “Vivíamos em Maputo, em frente ao quartel com os magalas africanos que faziam os bordados, e como ao sábado o general Kaúlza de Arriaga (1915-2004) queria que as tropas vissem filmes de cowboys, eles depois faziam coboiadas nos bordados”, explica o arquitecto.

(fim)

In Diário de Notícias de 17 de Dezembro de 2010.

 

 

24/11/2010

MONUMENTAE MOZAMBICUS INSULAE

A lápide por cima da entrada da Fortaleza de São Sebastião, na Ilha de Moçambique.

por ABM (24 de Novembro de 2010)

O Sr. Paulo Pires Teixeira, que em tempos idos jogava hóquei no Clube Ferroviário de Nampula ( nas fotos, é o miúdo vestido de branco), outro dia mostrou um conjunto de fotografias da Ilha de Moçambique, de que as que estão em baixo são apenas uma amostra. Foram tiradas há cerca de um ano.

Eu nunca visitei a Ilha de Moçambique, mesmo tendo tido a oportunidade, porque o que me dizem daquilo é desencorajador: que está uma desgraça, gente a mais, fezes ao ar livre, tudo em ruínas. Na minha mente, guardo as imagens das deslumbrantes fotografias a preto e branco do Carlos Alberto pai, tiradas nos anos 60 e 70, quando aquilo estava um brinco. E espero por melhores dias. Que tardam a vir.

Mais ou menos. Se o exmo. Leitor observar os registos em baixo do Paulo Teixeira, espero que descubra nelas a beleza e a história que eu vi.

Se há um ponto físico onde se fez a história de Moçambique, e de Portugal, foi ali na Ilha de Moçambique. Foi o ponto absolutamente nevrálgico para tudo o que se fez a partir do início do século XVI, rivalizando apenas com Goa, que por sua vez não se aguentaria sem esta praça na retaguarda.

Paulo Teixeira tem como objectivo fazer um trabalho sobre a Ilha, o seu passado, as suas gentes. Um projecto monumental, que deverá chegar aos dez volumes. É um projecto a médio prazo. Para tal, ele já obteve muitos dados em vários pontos do mundo (é desconcertante constatar que se calhar onde se encontra menos é na própria Ilha).

Para tal, ele gostaria de obter mais dados – testemunhos, fotografias de família, registos escritos, de quem tenha, ou tenha tido, ligações com a Ilha de Moçambique, ou quem saiba onde haja informações dignas de serem vistas. Deixo aqui o desafio ao eventual Maschambiano que tenha dessas coisas na gaveta lá em casa. O Paulo agradeceria. O contacto de correio electrónico dele é pptfdv50@gmail.com.

E em troca, em baixo, coloco algumas das suas fotografias, as que mais me seduziram.

São um encanto.

Janela de uma casa da Ilha.

Uma coluna meio decrépita.

Isto cheira-me a base de estátua que foi banida.

Fachada de uma casa.

Outra fachada de uma casa.

Entrada de uma casa.

Isto não sei o que é mas com bandeira nacional deve ser qualquer coisa do governo.

O velho palácio do governador.

O altar da capela do Palácio de São Paulo.

Vitral da capela do Palácio de São Paulo.

Gradeamento junto do Palácio.

Pórtico à entrada da Igreja da Misericórdia.

Uma das ameias da Fortaleza de São Sebastião

Decoração indo-portuguesa num dos portões

Um dos portões do Palácio

O Cais Principal. Segundo o Paulo, está em reabilitação.

A sede do Sporting Clube Ilha de Moçambique. Ora eis um bom projecto de reabilitação para o nosso Senador. Tem vista para a praia e tudo.

08/10/2010

DEUS, O NEGÓCIO E O PECADO NA RUA ARAÚJO EM LOURENÇO MARQUES

A Rua Araújo em dia de sol, anos 1890

por ABM (8 de Outubro de 2010)

Quis divertir-me um pouco hoje.

Vamos lá.

AGRADECIMENTOS

Esta nota é dedicada ao Nuno Quadros, que involuntariamente foi o seu agent provocateur ao mandar-me uma mensagem a dizer que S.Exa. o Aga Khan tinha inaugurado um dos casinos que operaram na Rua Araújo (acho que não, Nuno) e à Sra D. Suzette Malosso que, na plenitude dos seus 82 anos de idade, tendo crescido na cidade aqui focada, lembra-se de coisas que eu não sabia sequer terem existido e que teve a pachorra de aturar os meus interrogatórios.

INTRODUÇÃO

Creio -dizem-me- que uma das expressões enfáticas e mais badaladas da protagonizada ética limpa do então novo regime que se instalou em Moçambique com a retirada da administração portuguesa da governação do país em 1975, foi, literalmente, o encerramento dos estabelecimentos na Rua do Bagamoyo em Maputo (então Rua Araújo em LM, terminologia que se usa doravante, pois o relato situa-se nessa era) e a proibição da sua vida boémia, tida como imoral, decadente, capitalista e exploradora, entre outras coisas, dos corpos e vulnerabilidades das mulheres moçambicanas.

A agenda dos líderes guerrilheiros da Frelimo recentemente chegados à capital, aparentemente horrorizados com os seus decadentes hábitos e costumes, foi, claramente, de dar um sinal das coisas para vir e da Nova Ordem, congeminada lá no meio do mato, em Nachingwea. Aquilo que viam em Lourenço Marques era o colonialismo. e o colonialismo acabara. A prole, emocionada, estúpida e oportunista, aplaudiu logo o gesto de eliminação da prostituição e da vida boémia – e já agora de tudo o resto mais que viesse à cabeça dos Libertadores.

Libertadores para quem, mais do que a Independência, que já era obra, consideravam a Revolução para Criar o Novo Homem Moçambicano o objectivo mais sério, e para quem o exemplo predilecto da pura vivência revolucionária – um pouco como Eça ironiza quando em A Cidade e as Serras “obriga” um rico parisiense a gostar de viver na parca rispidez serrana portuguesa – era aquela vida porreiraça e espartana que tinham andado eles próprios a viver lá no mato no Norte.

A solução clara era simples: o povo genuíno vem do mato, a gente não controla bem as cidades, que estão cheias de colonos brancos que ainda por cima pensam que ainda mandam alguma coisa e que são um veneno e um empecilho à Revolução Moçambicana. Portanto vamos colocar esta gente toda na ordem, mostrar-lhes quem manda aqui e correr com o maior número possível deles, preferencialmente de forma a que o que eles pensam que é deles (mas que é nosso) fique atrás.  E acabar já com os reaccionários vícios deles.

Não demorou muito (basta perguntar a quem passou por esta altura e que especialmente é white ou quase) e as cadeias estavam cheias de gente que foi repetidamente presa durante dias e dias porque atravessou a rua na hora errada, porque não bateu uma continência que não sabia que tinha que fazer, que não parou o carro a tempo quando a banda lá no palácio se lembrou de tocar o novo hino, que se esqueceu do bilhete de identidade naquela noite em que foi ao cinema com os amigos.

E isto era só para os que não tinham feito nada.

Mas na altura a Rua Araújo foi muito mais falada porque era uma medida muito mais visível, mais colectiva e mais ostensiva. O simbolismo era inescapável, e deliberado.

As alegadas putas e os seus alegados proxenetas foram mandados para a reabilitação e a rua (o tal de Araújo que dava o nome à rua foi o primeiro Governador do Presídio de Lourenço Marques, nomeado em 1781) mudou mais uma vez de nome, desta vez para um dos locais sacros da Gloriosa Guerrilha lá longe na Tanzânia: Bagamoyo, a escola para a formação do Novo Homem Moçambicano, cortesia da Frente de Libertação de Moçambique e, durante algum tempo, de Janet Mondlane.

Mas que apropriado.

O encerramento (na altura rotulado como “limpeza”, referido numa edição de Abril de 1975 na outrora Pacatamente Burguesa mas agora Raivosamente Revolucionária revista Tempo – e em que Ricardo Rangel era sócio) coincidiu com a Independência, felizmente para Victor Crespo, o memorável almirante e o último (e único) Alto Comissário em Moçambique, que representou o novo regime português pós-golpe de Estado em 1974 antes de formalizar a entrega do poder aos líderes da guerrilha na data por eles escolhida. Pois refere quem viu,  que o Almirante passava mais tempo no Dancing Aquário na Rua Araújo a beber whiskies e a discutir as colorações epidérmicas das senhoras que lá dançavam, que no seu escritório a fingir que presidia às formalidades da governação e que defendia os interesses do seu país (em boa verdade, parece que na altura ninguém sabia quais eram esses interesses e mesmo assim por essa altura a Frelimo estava-se a marimbar para o que quer que fosse que ele dissesse, que mesmo assim foi nada).

E esse acto apenas foi um começo. No início de Novembro de 1975, numa operação de grande envergadura e que durou dois dias e incluiu três cidades, as forças da Frelimo, de AK47s em riste apontadas contra uma população urbana basicamente inocente e completamente indefesa, pura e simplesmente prenderam cerca de três mil pessoas, que consideraram suspeitas de estarem envolvidas com drogas, prostituição, roubo ou vadiagem. Pois.

Era o legalismo revolucionário, conferido e legitimado pelo Povo.

Na altura da Indepedência eu não soube de nada destas tricas da Frelimo com a Rua Araújo nem do terror dirigido aos “colonos” (ou será que era payback time?), pois estava mais ou menos tranquilamente a estudar a oito mil quilómetros de distância, em Coimbra, onde o mais que havia de aguerrido eram os desenhos dos gigantescos seios das caricaturas do José Vilhena. Um pouco como em Moçambique, a pornografia via-se era na vida política, todos os dias, nos noticiários politizados da Érretêpê.

Dez anos depois de eu ter deixado de residir em Maputo e nove anos depois da Independência, em plena era do Repolho e do Carapau, visitei a cidade, que me pareceu deserta, abandonada e parada no tempo, as pessoas com terror sequer de pensar alto, com medo de lhes ser apontado o dedo por alguém ligado à Nomenclatura. Mas não se sentia qualquer fervor revolucionário. Apenas cansaço, conformidade e um perpétuo esforço de meter alguma coisa no prato. Pois não havia quase nada. Mas ainda assim foi-me discretamente servida uma lista das Grandes Mudanças (para além da de praticamente toda a gente que eu conhecia não estar lá, claro). E o desmantelamento da Rua Araújo estava nos top dez, o que eu achava curioso, até estranho, pois apercebi-me que isso indiciava o simbolismo, na cabeça de muita gente, que aquilo acarretava, antes e depois da Independência.

Se bem que antes da Independência aquilo não era de forma alguma “a” referência nem tinha o relevo que se possa querer dar-lhe. Era apenas mais um dos locais exóticos, quiçá um pouco mais sórdido, da cidade. Eu hoje tenho 50 anos de idade, e nos passeios a pé higiénicos da família BM aos sábados à noite depois do ocasional jantar chinês no Restaurante Hong Kong, lá pelos fins dos anos 60, princípios dos anos 70, devia eu ter uns dez anos de idade, lembro-me muito vagamente do que aquilo parecia, pelo menos a parte da Rua Araújo para quem vem da Praça onde fica a estação dos Caminhos de Ferro: que tinha muitos bares porta sim porta sim, muita gente, muita música aos berros, montanhas de luzes e coloridos anúncios de néon a acender e a apagar, à porta de uns bares e dancings umas fotografias dumas meninas de coro (brancas) muito pintadas com umas coisinhas penduradas nas pontas das maminhas expostas e um ambiente mais ou menos aguerrido.

Nos dias que correm, isto é troco para bebés.

A Rua Araújo nos anos 60, de dia. À noite parecia Las Vegas junto do Índico.

Uns anos depois, a primeira referência que eu vi sobre a antiga Rua Araújo foi na forma de umas fotografias que o saudoso e agora exaltado Ricardo Rangel (que se dava muito bem com o meu pai) publicou e que tirou nessa altura, e que correspondem vagamente ao que eu vira e mais ou menos imaginava ser a Rua Araújo, claro que sem aquela carga ideológica-sociológica-pós-colonial que se sente agora, e que, despida de contexto, dava uma aura quase lunática àquele fenómeno da velha Lourenço Marques.

Casal fotografado por Rangel na Rua Araújo - o sórdido passou a ser arte

Uns anos mais tarde, já no fim dos anos 90, quando a Nomenclatura freliminana  relaxou involuntariamente os costumes públicos e, sem qualquer veio condutor, a capital moçambicana descambou quase completamente para um free for all em termos dos seus hábitos mais prúridos. Alguns decerto se lembram das legiões de jovens serpentes nas esquinas do Polana e da Sommerschield (a baixa era uma cidade fantasma à noite) depois da hora do jantar e todos os passeios em redor da discoteca do Sheik completamente tomada pelos possantes 4×4 da nova classe de “empresários de sucesso” e suas sumptuosas, esculturais acompanhantes.

(Elas eram chamadas serpentes porque quando a gente passava por elas no carro elas faziam assim: “pssssssssssst, psssssssst”)

Houve então muito boa gente na cidade que pensou, e disse, que se calhar fazia mais sentido trazer de volta a velha Rua Araújo e meter isso tudo ali. Mas as coisas não são assim tão fáceis de fazer. Hoje em dia, não estou lá muito dentro dos detalhes do negócio do prazer e do entretenimento maputiano, mas acredito que ainda há muito, muito por fazer.

A verdade sobre a Rua Araújo é muito mais profunda.

E, na minha opinião, se calhar não há rua que mais e melhor espelhe a História desta cidade que hoje é Maputo.

De facto, houve uma lógica muito clara no aparecimento do negócio por que a Rua Araújo se tornou quase mítica. Para a entender, tem que se recuar até ao fim do século XIX e entender o que se passava na região.

Se o exmo Leitor tiver a paciência, acompanhe-me nesta aventura.

A CIDADE APARECE

Apesar da apetência britânica pela baía defronte de Maputo, sucessivamente combatida pelos portugueses com a ajuda do Duque de Magenta (hoje mais conhecido como 2M), o flanco sul da então frágil, precária, indefinida colónia portuguesa, estava praticamente abandonado aos seus habitantes, que faziam mais ou menos o que sempre fizeram, os portugueses tendo o ocasional problema com os ingleses, que se alternavam com os Boers a tomar conta do que é hoje a Suazilândia, e os boers do Transvaal, que também gostariam de ficar com a parte Sul do actual Moçambique.

O momento verdadeiramente fundacional para a cidade – e de tal forma que em meros vinte anos o epicentro de todo o Moçambique se deslocou dois mil quilómetros do eixo Ilha de Moçambique-Nampula para a Baía de Lourenço Marques, ao ponto de a elegante e centenária capital ter sido descartada para os pântanos em redor da Ponta Vermelha – foi o conhecimento pelo mundo da descoberta de ouro no Rand, uns campos situados a Norte da pacatíssima capital boer do Transvaal (nome formal: República Meridional Sul-Africana), Pretória.

Tirando as negociatas do Albasini, pouco fluía entre o interior e a costa.

A "cidade" original não era uma cidade: era uma ilha. A uma distância regulamentar do Presídio, fez-se um aldeamento precário. Na parte baixa desse aldeamento vê-se a Rua dos Mercadores - a original rua de Maputo - mais tarde a Rua Araújo

Assim, quase subitamente, em 1874, na pequena língua de terra situada a Poente de onde Joaquim Araújo se lembrou de mandar edificar o lastimável Presídio de Lourenço Marques, centenas de pesquisadores e aventureiros americanos e australianos ali desembarcaram ao mesmo tempo para se dirigirem para o interior, enquanto que, do Transvaal, centenas de boers faziam a caminhada no sentido contrário, para vir buscar mercadorias e mantimentos aos navios. Nesse ambiente de “fronteira” completamente desregulado, de negócios, bebida e prazer, logo se esboçou um – o primeiro- o primeiro de todos – arruamento onde essas actividades se desenvolveram:

A Rua Araújo.

Que na altura, à boa antiga portuguesa, não tinha nome de gente, mas um nome que traduzia a sua utilidade: o de Rua dos Mercadores. Era um assentamento precário, com casas feitas de madeira, suficientemente sólidas para se poder lá dentro guardar, comprar e vender tudo e em que o português era provavelmente a terceira ou quarta língua mais falada.

Um ano depois, ao fim da tarde do dia 12 de Setembro de 1875, um violento incêndio consumiu tudo o que havia entre a actual estação dos caminhos de ferro e a sede o Banco de Moçambique (dantes o BNU). Para evitar situações semelhantes,o então governador português, um tal de Augusto Castilho, mandou que as casas passassem a ser feitas com materiais mais duráveis: argamassa, tijolo, adobo, telha, zinco. E logo a seguir veio o Major Joaquim José Machado e a sua equipa, que esboçou o plano director do actual centro da cidade. São essas as casas que os postais mais antigos de Lourenço Marques hoje mostram.

A Travessa da Palmeira (hoje fica entre a sede do BIM e a Nova Mesquita). Após o incêndio de 1875, as casas passaram a ser feitas de alvernaria, tijolo e telha.

Com as notícias da descoberta de ouro em Magaliesberg e em Barbeton, a pressão de ligar a Baía ao interior sul-africano britânico e boer foi quase insustentável. Logo se abriu a que ficou conhecida como a Estrada de Lindenbugo (que começava no fim da actual Av. 24 de Julho, a seguir a um enorme quartel que acho que ainda lá está). Lindenburgo (se é que ainda tem esse nome) fica situada a meio caminho entre Maputo e Pretória. Naquela altura Nelspruit (Mmmmmbombélááá!) basicamente não existia e seria assim até o comboio passar por lá anos mais tarde.

As coisas encaminhavam-se, perante o ar atónito dos Rongas, que ali viviam em redor, e que assistiam certamente preocupados com o reboliço enquanto que por sua vez iam fazendo as suas negociatas e de vez em quando umas razias para saquear.

A Rua Araújo, quando em Lourenço Marques se vivia um ambiente de fronteira

Mais um aspecto da Rua Araújo no fim do séc. XIX

Os momentos-chave seguintes foram a inauguração da linha de caminho de ferro para Pretória (1895), logo a seguir a abertura do porto marítimo da cidade, culminando com o desencadear da Guerra Anglo-Boer (1899-1902), um complicado imbróglio militar e político, que trouxeram muita, muita gente à cidade e montanhas de negócio. Nessa altura, Lourenço Marques (ou a sua designação inglesa, Delagoa Bay) estava nas primeiras páginas dos grandes jornais de todo o mundo, a Baía bloqueada pela poderosa marinha britânica (foi ali usado pela primeira vez no mundo o telégrafo sem fios para a coordenação de operações militares-navais. Enfim, vale o que vale).

A linha de caminho de ferro abriu em 1895. O edifício da estação chegou mais do que dez anos depois. Directamente em frente, ficava a Rua Araújo, e à direita o porto marítimo.

E o que é que, fisicamente, estava precisamente no meio disto tudo?

A Rua Araújo.

De facto, a Era de Ouro da Rua Araújo não foi nos anos 50, 60 e até 1975.

Pelo contrário, foi nas quatro décadas anteriores.

OS DIAS DE OURO

Capa dum folheto publicitário em inglês, sobre Lourenço Marques, anos 20.

Estabilizada a guerra e colonizado o Transvaal pela Grã-Bretanha (cujo consulado em LM, desde que abriu sempre esteve no mesmo local onde hoje se encontra a actual embaixada em Maputo), o negócio aumentou sempre e cada vez mais, tendo Lourenço Marques, que entretanto foi praticamente comprada e desenvolvida com capitais ingleses, sul-africanos e boers através de companhias, lá a partir dos anos 20, criado e desenvolvido um negócio novo, complementar, e extremamente rentável, para além do import/export e do álcóol: o negócio do lazer e do prazer para os brancos sul-africanos.

Dia de "São Navio" em Lourenço Marques. A cidade toda acorria ao Cais para assistir ao espectáculo, e cuscar quem chegava e quem partia. Era um evento. Depois ia tudo beber um copo para a Praça 7 de Março.

De facto, a cidade tinha várias valências nesse sentido. Para além de ser organizada, limpa, e bonita, tinha um clima aprazível, ficava junto ao mar, tinha acessibilidades (barco, comboio, estrada, telégrafo para o mundo exterior), boas instalações, boa comida, instalações desportivas e tinha o exotismo informal cultural luso-africano que nem se sonhava existir na África do Sul.

O antigo campo de golfe da Polana. Situava-se imeditamente a seguir ao actual Hotel Polana e estendia-se até à actual embaixada americana e entrava um pouco para dentro da actual Sommerschield.

A entrada do Pavilhão de Chá, junto à antiga praia da Polana e a 150 metros a Norte do actual Clube Naval de Maputo

O bar da Estação de caminho de ferro de Lourenço Marques estava ao nível do que de melhor havia no mundo na altura

Lourenço Marques, com as suas praias, o Pavilhão de Chá, os seus vários hóteis, quiosques, clubs e restaurantes, alegremente acolhia esse negócio, nos anos 20, 30 e princípios dos anos 40.

O cais da estação de caminho de ferro de Lourenço Marques

Nessa altura, para além dos navios, que traziam centenas de marujos, passageiros e homens de negócios à cidade, vinham diariamente comboios de Joanesburgo e de Pretória, cheios de carga e gente, na busca de repouso ou de prazer, ou para apanhar um barco para a Europa, ou regressar à África do Sul.

E, para além de bowling, golfe, a caça, a pesca e o ténis, Lourenço Marques tinha bebidas à descrição, jogo e prostituição, práticas estas proibidas e reprimidas pelos estóicos britânicos e ainda mais pelos puritanos boers. Em Lourenço Marques, para além de vinho, whisky, camarões e cerveja à descrição (incluindo aos domingos e feriados religiosos) até fados e touradas havia,  perante o espanto dos visitantes. E cinema, e excelente ópera italiana, esta no resplandecente Varietá, que ficava do outro extremo da Rua Araújo, junto à Praça Sete de Março (hoje 25 de Junho, o dia da Independência em 1975), a sala de estar da cidade – com chás e delicados bolos de pastelaria servidos às cinco horas da tarde, enquanto música tocada no seu coreto por bandas contratadas, quase todos os dias.

Antes do Polana abrir, o Carlton era o hotel de escolha em Lourenço Marques. Ficava situado a meio da Rua Araújo. Mesmo depois de abrir, durante muito tempo o Polana era considerado fora do caminho.

Cedo a cidade se tornou ponto de visita obrigatório para os milionários e as classes mais abastadas de Joanesburgo e de Pretória, que para ali se dirigiam em conforto exuberante no Blue Train, um comboio de luxo que parava semanalmente na estação de Lourenço Marques.

Que ficava a cem metros da Rua Araújo.

Para além dos navios de passageiros que atracavam todas as semanas no porto, mesmo ao lado.

As touradas e as pegadas de touros eram uma atracção turística única em África.

A meio da Rua Araújo, do lado direito, cedo abriu o Casino Belo, mais exclusivo, e mais abaixo o Casino Costa, os únicos casinos no Sul de África. O Casino Belo (no edifício mais tarde funcionou o conhecido Dancing Aquário, para quem se lembra) era uma luxuosa máquina de fazer dinheiro. Estava aberto toda a noite, sete dias por semana. Tinha uma grande orquestra (o chefe de orquestra do Casino Belo durante dez anos chamava-se Jorge Vara e era o pai da D. Suzette, por isso é que eu sei isto tudo) tocava diariamente, sete dias por semana, das 9 da noite até às 4 da manhã, com um intervalo de meia-hora.

Aspecto da sala de jogo do Casino Belo na Rua Araújo, em Lourenço Marques. Lá dentro, era obrigatório o uso de fato ou smoking e vestido comprido para as senhoras.

Ali encontravam-se as famosas e as originais Taxi Girls de Lourenço Marques(não são as que mais tarde se chamavam pelo mesmo nome, e que basicamente eram prostitutas). Estas eram jovens sul-africanas desesperadamente belas, vestidas de rigor com vestidos compridos, todas as noites, e como referi não eram prostitutas (o que não significa que não dessem uma volta com quem lhes apetecesse). O que elas faziam era que à noite conversavam com os clientes, entretiam-nos e bebiam um copito ou outro. E qualquer homem podia comprar uma “fita” de bilhetes por dois e quinhentos cada bilhete, e por cada bilhete a menina dançaria com ele uma música. No fim quase todas elas acabaram por casar com portugueses de sucesso na cidade e hoje fazem parte do DNA dos descendentes de quem lá viveu (imagino que estrategicamente omitindo os detalhes da sua procedência).

Curiosamente, naquela altura as crianças podiam entrar no Casino, que tinha também umas limousines com motoristas fardados para levarem os clientes e seus convidados para os hotéis ou de volta para o Blue Train.

O Varietá, na altura creio que a segunda Casa de Ópera em toda a África excepto o Cairo, situado na Rua Araújo, no local onde hoje se situam o Cinema Matchedge e o Estúdio 222.

Nesses tempos, ganharam-se e perderam-se verdadeiras fortunas nos casinos da Rua Araújo. Após uns dias de loucura na roleta e no bacharat, muitos dos visitantes mal tinham dinheiro para pagar o bilhete de comboio de volta para Joanesburgo e Pretória e houve um número considerável de suicídios, cometidos por gente que perdeu tudo o que tinha nas mesas de jogo.

Na Rua Araújo, o negócio da noite não era só para os ricos. Era socialmente vertical. Os bares, cabarets e salas de jogo da Rua anualmente atendiam milhares e milhares de marinheiros, viajantes, homens de negócios, etc, trazidos pelo movimento louco no porto e no caminho de ferro.

Curiosamente, quase todo o negócio era entre brancos – incluindo, malgré as suspeitas da Frelimo, a prostituição. Mas do lado esquerdo da Rua Araújo, houve mais tarde uma casa amarela, o Bar Pinguim, que era o único sítio na Rua Araújo onde havia, para além de prostitutas brancas, prostitutas negras e mulatas e cujo ambiente era puro caos estilo filmes do Texas. Nos anos 50 era um hangout favorito de, entre outros, o poeta Reinaldo Ferreira.

Durante esses anos, a autoridade policial, especializada e presente, mantinha a ordem, num misto de negligência latina e pauladas vigorosas. Alguns se recordarão dum agente de polícia alto e encorpado que vigiava a Rua Araújo, e que era legendário por resolver problemas de rua com uma saraivada de cacetadas, o que supostamente funcionava bem junto dos marujos e dos tropas mais alcoolizados.

Convenientemente situadas perto da Rua Araújo, havia grandes casas de prostituição, negócios legais, de porta aberta. As prostitutas eram praticamente todas brancas, a maioria francesas e sul-africanas. Refiro por exemplo uma luxuosa mansão que existia na rua a seguir à antiga Paiva Manso (não faço ideia qual é o nome da rua hoje) e que era a maior e considerada a melhor, gerida por uma senhora que era conhecida na cidade pela sua generosidade e que tinha vários filhos que se formaram todos na África do Sul.

Belo, proprietário do principal casino, era uma figura conhecida na cidade, riquíssimo, generoso, respeitado. O primeiro frigorífico eléctrico doméstico que houve em Moçambique foi ele que o instalou em sua casa. Teve três filhos, um deles o Ernesto, outro que foi gerente da Casa Coimbra (aquele prédio mesmo ao lado esquerdo do Banco de Moçambique na 25 de Setembro em Maputo) e um terceiro sobre o qual nada sei.

O FIM DE UMA ERA

O fim desta Era Dourada da Rua Araújo começou quando, lá muito longe, do outro lado do mundo, em Lisboa, o ditador Oliveira Salazar, tentando perpetuamente fintar os jogos de cadeira locais com as diferentes facções sociais (são sempre as mesmas: radicais vs católicos vs maçónicos vs monárquicos, a treta do costume), com a intervenção do seu antigo amigo e antigo colega de carteira, Manuel Gonçalves Cerejeira, então Cardeal de Lisboa e representante da Igreja Católica Apostólica Romana em Portugal, celebrou em 1940 (ano em que se celebrou também o tricentenário da reaquisição da independência portuguesa das mãos dos Hespanholes) um entendimento formal entre o Estado português e o Vaticano, a que se chamou Concordata.

Através desse documento, para todos os efeitos, a Igreja Católica encerrou um trágico capítulo aberto com o advento da I república e assumiu uma parceria com o Estado português que teve assinaláveis ramificações por todo o Império.

Em Lisboa, os três amigos: o Cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira, o Presidente do Conselho, Oliveira Salazar, e o seu Presidente, Óscar Carmona. Dos três, só Salazar nunca meteu os pés em Moçambique.

Talvez não seja coincidência que nessa altura, se começou a construir a actual Catedral de Maputo, que foi concluída em 1944, recorrendo os poderes locais para a sua construção essencialmente a trabalho escravo nativo, o que enfim, é mais uma pequena vergonha e uma expressão do tal colonialismo no seu pior (alguém devia meter lá uma placa na parede para que se soubesse e se lembrasse essa vergonha).

A expressão da Trilogia do Poder Imperial no centro de Lourenço Marques: o Estado (a Câmara Municipal), a Igreja (a Catedral) e o vulto de Mousinho. Em 75, Samora despachou Mousinho para um canto da "fortaleza" antes de rebaptizar o local de Praça Mousinho de Albuquerque para Praça da Independência. E de meter uma gigantesca fotografia sua na fachada. Mousinho out, Samora in.

Em Agosto de 1944, já a II Guerra Mundial estava a começar a chegar ao seu término, num navio Serpa Pinto obscenamente artilhado para acolher Sua Católica Eminência, o Cardeal Patriarca de Lisboa, Manuel Gonçalves Cerejeira, viaja para Moçambique e desembarca em Lourenço Marques para inaugurar com imperial pompa a nova catedral, que ficou situada mesmo ao lado do também novo e imponente edifício da Câmara Municipal de Lourenço Marques, talvez para simbolizar a nova parceria entre o Estado e a Igreja – algo que acontecia pela primeira vez em Moçambique, cujo pluralismo religioso era palpável.

O quarto de cama de Gonçalves Cerejeira no Serpa Pinto

A sala de jantar do Cardeal Cerejeira no Serpa Pinto

O Serpa Pinto até tinha uma espécie de "sala do trono" para o Cardeal Cerejeira. Isto hoje dava um filme.

Pouco depois, a prostituição e os jogos de casino foram ilegalizados e desmantelados em Lourenço Marques.

Na Rua Araújo, ficaram os bares, os dancings e o ocasional jogo ilegal. A prostituição passou para a clandestinidade.

O RESSURGIMENTO

Mas a Rua Araújo não morreu.

Pouco depois, no início dos anos 60, com a instauração do apartheid do Sr. Verwoerd na África do Sul e a preparação e o início do que veio a ser a guerra pela Independência, Lourenço Marques conheceu um período de enorme movimento de pessoas, de investimento e de crescimento. Muitos portugueses vieram viver e trabalhar para a cidade, o número de visitantes da África do Sul, que agora viajavam em carros particulares, cresceu significativamente, e os navios começaram a chegar da Metrópole cheios de jovens militares sózinhos, muitos desejosos de fazer uma escalada na Rua Araújo para beber uns copitos e talvez experimentar o deslumbre de uma experiênciazinha sexual, para depois se ocuparem da defesa do território. E o movimento de navios, aviões e comboios cresceu quase exponencialmente. A cidade fervilhava.

O mito das LM Prawns: acima, o Restaurante da Costa do Sol, nas mãos da família luso-greco-moçambicana Petrakakis desde 1938.

Os usos e os costumes entretanto liberalizaram-se, muito mais em Moçambique do que era a norma quer na Metrópole portuguesa, quer no ambiente severo de Calvinismo puritano imposto na África do Sul – apesar de, nas praias e nos cafés de Lourenço Marques, serem as bifas que deixavam os locais de boca aberta, as meninas locais manietadas pelos velhos costumes dos seus pais portugueses.

Ainda que com a Pide a mordiscar, o Regime nervoso e a guerra dois mil quilómetros ao Norte a desenvolver-se, o ambiente na cidade tornou-se muito mais sofisticado e multiracial, começaram a aparecer galerias de arte, surge toda uma geração de pintores e escultores portugueses e moçambicanos, brancos e negros e com temas africanos, lojas de moda, a Sociedade de Estudos, a Casa Amarela, os bikinis, a mini-saia, veio a revolução musical com o rock, vomitado 24 horas por dia, sete dias por semana pela LM Radio, a Estação 2 do Rádio Clube que era de longe a mais popular em todo o Sul de África. Do Rádio Clube veio também a  marrabenta e inaugurou-se também a primeira estação de FM stereo, com jazz e música clássica, em todo o território português.

Em termos de desporto, tudo havia e tudo se fazia tudo na cidade. Campos de futebol de básquet, piscinas, golfe, mini-golfe, hóquei, equitação, aviação, tiro, regatas, pesca, pesca submarina. Era uma obsessão. Em entre 50 e 60 surgem estrelas como Coluna, Velasco, Matateu, Eusébio, Lage, Mário Albuquerque, Fernando Adrião, Dulce Gouveia, Mussá Tembe e tantos outros. A lista não acaba.

Nos anos 60, o pai BM, à esquerda, treinava equipas de futebol em Lourenço Marques.

Por sua parte, a Rua Araújo acompanhava todo este ambiente à sua maneira, com mulheres, marijuana, misturada com cerveja, vinho, shows de striptease (alguém se lembra da famosa travesti Belinda?) e com verdadeiras sessões de pancadaria que inevitavelmente envolviam comandos, fuzileiros e a polícia de choque a correr atrás deles com cacetetes. Segundo o Eduardo Pitta, até havia um discreto underground gay e lésbico na Rua Araújo que a Maluda vagamente confirma. O Carlos Gil esteve lá nos seus tempos de teenager e no seu livro Xicuembo deu uns lamirés da fauna louca que aquilo era.

Como em toda a parte, dizem-me que havia prostituição para todas as cores, todos os gostos e todas as bolsas. Mas se calhar a Rua Araújo não era o ponto principal dessa actividade. quando muito era um ponto de começo.

O Hotel Central e o Dancing Aquário, um conhecido empório da Rua Araújo e ponto de paragem de Vítor Crespo.

Foi esta Rua Araújo que Ricardo Rangel conheceu e retratou nos anos 60. E que, em meados dos anos 70, ajudou a destruir na sua revista.

De certa maneira, para a velha rua, esse foi apenas mais um momento da sua vida.

Uma nova metamorfose do que fora.

Viva a futura amizade entre os povos da CPLP !

E com o tempo, essa imagem do que fora nos anos 60 e 70, congelou-se e tornou-se num cliché, e pior, no todo, excluindo os quase cem anos que o precederam. Até Licínio de Azevedo recorreu agora a ele para o seu recente filme “Margarida”.

O tal símbolismo que eu acho que, isoladamente, não teve.

EPÍLOGO

Hoje, a Rua Araújo – a Rua do Bagamoyo – sobrevive precariamente, um dinossauro da história da Cidade, o seu berço irreconhecido, maltratado, desrespeitado, ignorado pelos cidadãos da Cidade, aguardando por melhores dias, quando eventualmente haja outro ressurgimento da Baixa da Cidade e uma outra apreciação do seu rico passado.

Que forma terá esse ressurgimento, ninguém sabe.

Uf. Depois disto, vou jantar ao chinês ali na esquina.

Bom fim de semana.

07/10/2010

SOBRE A FORTALEZA DE MAPUTO

Postal turístico da Fortaleza de Maputo, anos 60

por ABM (7 de Outubro de 2010)

No dia 4 de Abril de 2009, o nosso Grande Senador escreveu neste repositório de informação totalmente grátis que é o Maschamba, uma nota intitulada Vasco da Gama, em que, tendo estado na cidade de Inhambane, basicamente resmungava por ver uma estátua meio pirosa mas perfeitamente utilizável do conhecido navegador português que veio por ali abaixo e subiu por ali acima a caminho das Índias, espetada na parte de trás de um edifício municipal local. Na sua histórica viagem, em 1497 Gama parou para uma aguada e uns petiscos em Inhambane, onde terá sido bem tratado, e seguiu caminho para Norte, à procura dos tão falados negócios da Índia.

No dia 10 desse mês, às páginas tantas, eu, que ainda não tinha o nobre estatuto de estar deste lado da paliçada, depois de ler o texto Senatorial e de resmungar qualquer coisa sobre isso dos monumentos históricos portugueses (que agora, quer se goste ou não, são moçambicanos, pois estão no local e fazem parte da sua história), a propósito do tema, escrevi o seguinte:

O que queria realçar é o seguinte: a que hoje chamam Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição em Maputo é basicamente uma fraude, uma espécie de castelo da Disneylândia feita durante a II Guerra Mundial pelos então patrões da cidade para os turistas sul-africanos que vinham a LM fazer uns negócios e dar umas voltas no Casino Belo (que ficava na Praça Mac Mahon (ou lá como se chama hoje) em frente à estação dos CFM e ir à praia.

O local corresponde mais ou menos ao sítio onde houve de facto uma miseranda paliçada de paus e barro na ponta da língua de terra onde estava a “fortaleza”. Não é bem o mesmo que as fortificações de Moçambique, Sofala, Tete, etc, que sim, foram feitas nos tempos das rotas da Índia (de que LM nunca fez parte). Mas, pronto, tem um ar “vintage” colonial e, mais importante, tinha um átrio porreiro para se pôr o cavalo do Mousinho a olhar para a cara do António Enes.

Estes tiques das elites no poder são perfeitamente entendíveis. No tempo dos faróes egípcios, quando havia um que tinha sido por alguma razão percepcionado como um grandessíssimo cabrão, o que vinha a seguir mandava apagar das inscrições de pedra a sua cara, o seu nome e descrições dos seus feitos. Supostamente, era como se não tivesse existido nunca. Quatro mil anos depois, estes “black holes” eram perfeitamente identificados e reconstruídos. É uma chatice, esta mania de uns quererem os factos, e outros quererem os factos que querem, uma espécie de história feita por encomenda.

Felizmente, daqui a duzentos anos ninguém em Moçambique se vai lembrar deste episodiozito e antecipo que, sem dor nem remorso, os moçambicanos de então recordarão com a indiferença que o tempo causa, e aproveitarão o tal património que resta (sendo o único que se me afigura como inapagável a velha Lourenço Marques) para atrair turistas e contar estórias coloridas. Para suprema irritação de alguns dos presentes, na velha língua dos portugueses.

O nosso Senador, como é costume e usando da sua poderosa e abundante verve sociológica, discordou logo e despachou-me socraticamente: “discordo que [a fortaleza de Maputo]seja uma “fraude” no sentido de dar uma autenticidade genética aos monumentos.”

Hã?

Dado que ontem tive que andar a correr nos meus ficheiros à procura dos postais da velha câmara Municipal de Lourenço Marques para outro texto, por acaso cruzei-me com umas fotografias da “fortaleza” e um magnífico texto creio que da pena do Sr. Pedro Nunes, num blogue chamado Moçambique Multimédia, (que copio desavergonhadamente e com vénia até ao chão)  e que creio que passam da opinião meramente verbal para algo um pouco mais condicente com o que eu referi há um ano e meio atrás.

Mas antes do que se segue um brevíssimo comentário: Moçambique tem uma grande história e da melhor e mais esplêndida arquitectura militar portuguesa em quase todo o mundo. Menciono aqui a da Ilha de Moçambique, e há mais algumas espalhadas por aí. Tudo do mais genuíno que há.

Bom para o turismo.

Então vamos lá. Refere o Sr. Pedro Nunes:

Em diagonal à velha Casa Amarela é a Fortaleza Nova do Presídio, reconstruída em 1940 sobre o alicerce da primitiva. Que aliás nunca existiu, capaz e completa em qualquer tempo.Entra-se, e é um pequeno museu de sugestivas antiguidades históricas.Artilharia velha na parada, armas e peças no quartel da entrada á direita, epígrafos e pedras de armas arrancadas ás fortalezas do Norte e postas nas paredes do quartel da esquerda, com restos dum arco e pilastras de Sofala (1506), relíquias de arte sacra noutra ala em que se guarda a primitiva imagem de Nossa Senhora da capela do Presídio ( que data de 1819), retratos, bustos, espadas e recordações de grandes figuras históricas noutra sala e na caserna em frente os restos da vida quotidiana de outros tempos.

Fora plantas, desenhos e fotografias de sítios e coisas antigas.Conjunto eloquênte, acima de tudo simbólico, a principiar na Fortaleza reconstruída no alicerce primitivo, com imaginação e estilo, e poderosamente sugestiva. A falta mais sensível será,além de não ser verdadeira, não ter agora o flanco sul metido ao rio, com água pelo rodapé da muralha enterrada funda na praia, mas isso é culpa antiga dos aterros do começo do século XX e das grandes obras que já haviam modificado e acrescentado a Fortaleza para a fazer Quartel de Caçadores, e depois Capitania dos Portos, com casas à frente e alcândoradas nos baluartes e nas cortinas. Qualquer semelhança que possa haver entre a fortaleza atual, bonita como um brinquedo, e a realidade histórica, é, pois, pura imaginação.Durantes décadas seguidas o problema máximo da terra foi sempre acabar-se a fortaleza, isto é, transformarem-se em alvenarias as barracas, as palhotas e a estacada, fazer-se ao menos de pedra vermelha barrada a cal, em amarelo ou branco, o segundo baluarte, com pequenas ameias abertas no murinho estreito.

Sede de todos os embrionários serviços públicos da povoação, a fortaleza velha, á medida que perdeu o valor militar por ter passado a defesa para a orla do Presídio, foi-se rodeando de “acrescentos” encostados ás muralhas aproveitadas para paredes, e, transformadas as casernas em quartos com alpendres, ninhadas de crianças a brincar pela extinta parada, arames de roupa estendida ao sol em toda a parte, parecia a irreconhecível fortaleza uma típica Ilha do Porto, a quem nem sequer faltava o ambiente castiço dos marítimos da capitania a gozar a folga, exibindo-se nas preguiçosas cadeiras de lona em calças velhas e camisola interior.A restituição foi ao menos um ato de justiça elementar, com as conjecturas possíveis.

Mas os portugueses ficaram, embora fossem morrendo, uns atrás dos outros, governadores, oficiais e soldados.Adaptava-se cada um como podia com os velhos instintos da “Lusotropicalidade”. A verdade é que a “Feitoria da Sociedade dos negociantes da Baía de Lourenço Marques”crescia em Delagoa – designação internacional que a terra tinha.E foi assim que a cidade principiou, com dezesseis pessoas apenas.Construiu-se o Armazém Real,com a cal conduzida, provavelmente, da barreira de conchas que existe na margem do Rio Matola..Eram negros, além do pedreiro, o carpinteiro que fez as portas assim como o ferreiro de Inhambane que fabricou as ferragens,e o calafate que consertava a lancha do Estado.

A iluminação dos quartéis era com azeite de baleia, fabricado nas praias da baía pelos baleeiros Ingleses e Americanos.Quem tratava dos doentes era um curandeiro Landim, que, por cada soldado que curava recebia de pagamento uma capulana. De vez em quando entrava um navio estrangeiro que trocava qualquer coisa por marfim, pois o barco de viagem só chegava de ano a ano, e ás vezes naufragava.
Assim ia a vida em Lourenço Marques no começo do século XIX, ao principiar o estabelecimento miserável que é hoje a cidade encantadora, fascinante e requintada.

Antes das fotografias, há ainda mais uma coisa que acho piada mas que é essencialmente um segundo e delicioso barrete e que é…..(ta-raaam)

O ENFORCAMENTO DO GOVERNADOR RIBEIRO DIONÍSIO NA ÁRVORE

Dionísio António Ribeiro foi um governador de Lourenço Marques. “Governador de Presídio”, isto é, o que significava que governava principalmente a si próprio, pois então não havia nada de nada no local a não ser uma palhotas.

Isto até ter perturbado os poderes locais, que o prenderam e o executaram. Ponho o cargo dele acima entre aspas porque, se se ler a pouca literatura que existe sobre o assunto, o homem era mais um habilidoso pulha vigarista malcheiroso negociante de banha da cobra que basicamente fazia uns biscates para o governo português, o que era pouco ou nada (leia-se o Lobato e o Fernandes).

Ribeiro, que, ao que se entende dos relatos, naquela altura era o que hoje se pode chamar em Maputo um “empresário local de sucesso”, tentou forçar a sua sorte nos negócios usando o seu então recente e dúbio título de “Governador de Presídio” (a edificação em si era uma inegavelmente nojenta e destituta espelunca) e as poucas munições de que dispunha, para tentar extorquir concessões das tribos locais, de que se menciona os Maxaquenes.

Ora, uns dissidentes do Sr. Shaka Zulu (nada menos) liderados pelo Sr. Manicusse (ou Soshangane, nunca acerto nestes nomes) que por acaso passaram por lá enquanto fugiam dos homens do Sr. Shaka Zulu, deram-lhe cabo do canastro, derrubaram mais uma vez o “presídio” e foram para mais ao Norte, arrasando e conquistando tudo e todos pelo caminho (menos os Chopes, não me perguntem porquê) para fundar o mais tarde chamado Império de Gaza.

O Manicusse lá em cima, foi o que foi pai de Muzila, que foi pai de Gungunhana. Também havia monarquia cá.

Conto este episódio porque se os exmos Leitores forem ver na internet hoje em dia menções sobre a Fortaleza de Maputo, quase todas vêm com uma colorida chachada sobre uma “lenda” em que refere que Dionísio Ribeiro (após supostamente ter sido arrastado da “fortaleza” pela porta…) foi enforcado pelos funcionários do Sr. Manicusse numa velha árvore hoje situada mesmo em frente à entrada Poente da actual “fortaleza”. Isto tudo em 1883.

E que a “fortaleza foi atacada e a guarnição dizimada”.

Ai sim?

Bem, de facto, há aqui uns pequenos problemas.

O primeiro problema é que o episódio de Dionísio Ribeiro ocorreu cinquenta anos antes, ou seja em 1833, não em 1883, mais ou menos na altura em que os Suázis e os Zulus andaram pelo que é hoje o Sul de Moçambique a matar e a arrasar tudo e mais alguma coisa.

Há quem diga que deve ter sido em parte resultado do aquecimento global versão século XIX: para além do Sr Shaka Zulu, claro, que não era para brincadeiras, naquela altura uma grande parte de Moçambique atravessou uma das piores secas de sempre, quase dez anos seguidos, o que causou todo o tipo de problemas entre as populações, de entre os quais o colonialismo era provavelmente o menos importante. Muita gente morreu de fome e houve muito milando porque as populações tiveram que ir à procura de água e de comida.

Ribeiro terá sido morto mais precisamente, no dia 13 Outubro de 1833.

Eu sei que isto da data pode parecer uma gralha, mas pelos vistos a gralha já se espalhou de tal maneira que a ficção tornou-se a realidade. E agora até já temos o neto de Soshangane a matar o Dionísio, cinquenta anos depois de ele ter sido morto pelo avô.

Segundo, antes que se invente uma heróica investida na “fortaleza”, na verdade Dionísio Ribeiro foi capturado quando estava a tentar fugir numa barcaça da Ilha Xefina (pois que a “fortaleza” não aguentava com três homens a atirar pedras, nem tinha uma “guarnição” por assim dizer).

Terceiro, antes que se faça disto mais um daqueles episódios de resistência proto-nacionalista moçambicana contra os tugas de então (pois pelos vistos só havia dois em LM, e ainda por cima odiavam-se) os registos indicam que todo o episódio não passava, na realidade, de uma teia de tricas entre ele, um outros tugas rivais dele chamados Vicente e Nobre, e o Governador provincial, que estava no conforto do seu palácio lá na Ilha de Moçambique*.

Tiveram foi azar, pois Soshangane também não era para brincadeiras.

Finalmente, e não menos importante: em 1833 a veneranda árvore não existia no local para se poder lá pendurar o desgraçado do Ribeiro.

Não estava lá.

Ok.

Vamos então às fotografias, cortesia da Casa.

Não se esqueça: para ver melhor prima nas fotos para ampliar.

A "fortaleza", fim do séc. XIX. Sim, é "aquilo" à direita. Se o exmo. Leitor ampliar a foto verá os canhões a apontar para a baía. Aquilo à esquerda da "fortaleza" é um pontão de terra.

A "fortaleza" vista de poente no mesmo dia. É o que está directamente em frente ao exmo. Leitor, incluindo a cabana à direita. Pode-se ver o mastro meio dançante, onde creio estar uma bandeira

Uma nota de rodapé: entre a foto em cima e a que se segue, houve extensíssimos trabalhos de aterramento na cidade, em que se puxaram as areias das barreiras (que caiam abruptamente sobre a baía, tal como ainda se vê hoje na Catembe) e se aterrou a baía para o local em que se encontram hoje.

Uma consequência desses trabalhos é que a esquina da “fortaleza” que havia até há uns 110 anos no que é hoje a baixa de Maputo, e que nas duas primeiras fotos está directamente em cima da baía, agora está a uns cem metros da água.

Veja-se:

Nesta fotografia já se nota muito da actual Maputo. Mas se o exmo Leitor olhar atentamente, nesta precisa foto a "fortaleza" ainda está no seu estado original, tal como se vê nas fotos em cima, mas dentro de terra uns cem metros e atrás do então edifício da Capitania Buildings, que o ofuscava

Nesta foto, tirada já depois da II Guerra Mundial, a "fortaleza" foi "reconstruída" em pedra da Ponta Vermelha, fachada que basicamente nunca na vida teve, e com aquelas ameias óptimas para os miúdos brincarem, canhões, placas centenárias na parede, etc. Tudo ficção.

Aquilo no fundo foi um pouco como o que parece que os Aga Khans fizeram ao Hotel Polana agora. Oops: Polana Serena Hotel Maputo.

Após o derrube (criminoso) dos Capitania Buildings e uns trabalhos de jardinagem, a "fortaleza" assume o seu esplendor, aqui cerca de 1973. Boa para enganar os boers que vinham passear até à cidade

Portanto, exmo. Leitor, goze a Fortaleza de Maputo e lembre-se: se quiser, com um bocado de dinheiro, pode sempre construir o seu próprio passado.

O Vasco da Gama empedrado entretanto deve continuar esquecido lá no quintal do Conselho Municipal de Inhambane.

* ver Alexandre Lobato, “A Invasão Vátua de Lourenço Marques em 1833”, em Quatro Estudos e Uma Evocação para a História de Lourenço Marques (Estudos Moçambicanos, Junta de Investigações do Ultramar, 1961) pp. 119-140.

03/09/2010

A CIDADE IDEAL

por ABM (3 de Setembro de 2010)

A propósito de algumas reverberações mentais no que concerne aquilo a que os anglos chamam urban politics, aplicado agora à realidade maputiana, será se calhar apropriado reproduzir um interessante comentário duns tais Srs. F. Floris e D. Moschetti, (grato ao meu amigo V) intitulado despudoradamente Bairros da Lata: Vulcões prestes a Explodir e que apareceu em Novembro de 2008 no misterioso sítio dos Irmãos Combonianos, que se reproduz com vénia (mas que pode ser lido na fonte).

Pensando bem, é de facto um elegantíssimo exercício de delicadeza verbal lusofónica (ou um fenómeno cultural por si só?) chamar-se “cidade do caniço” aos crescentes bairros da lata em redor da Maputo de cimento. Onde permanecem por esclarecer as regras de avanço de uma e de recuo da outra.

Não subscrevo tudo o que aqui vai, mas creio que no conjunto é um sóbrio convite à reflexão.

Então cá vai:

O êxodo rural, as calamidades naturais e a crise económica global estão a fazer aumentar assustadoramente a população urbana pobre, sobretudo nos países a sul do mundo. Com habitantes a viverem na incerteza e na precariedade, sem oportunidades reais, os bairros-de-lata configuram-se como vulcões prontos a explodir a qualquer momento e pretexto.

Em África a população das grandes cidades aumentou 10 a 12 vezes entre 1960 e 2005. Este incremento não esteve associado a um desenvolvimento económico correspondente. Pelo contrário: o produto interno bruto (PIB) diminuiu 0,66 por cento ao ano. Contudo, as cidades em África jogam um papel crucial no crescimento económico nacional. Hoje, em geral, a taxa anual média de crescimento da população africana anda à volta de 4 por cento, enquanto o das grandes cidades atinge 8 por cento, e não são casos excepcionais os de cidades que crescem 10 por cento ou mais, especialmente em regiões onde o êxodo rural se acentua devido a calamidades naturais ou fenómenos ligados ao desenvolvimento desigual do território.

Miragem

Além disso, a taxa de crescimento populacional em instalações urbanas precárias e marginais é por vezes superior a 25 por cento ao ano. Anualmente, mais de 5 milhões de africanos procuram uma nova residência nas periferias das cidades. A grande maioria da nova população urbana parece destinada a sobreviver na total incerteza, na precariedade, na procura, destituída de oportunidades reais, de uma melhoria das suas condições de vida, à margem da «grande miragem» representada pela cidade moderna. Escreve Peter C. W. Gutkind, autoridade de renome mundial no campo da antropologia urbana, falecido em 2001: «As cidades da África são, na maioria, novas. O seu nascimento é fruto da colonização que modelou a estrutura urbana com base em modelos não africanos, que favorecem um modo de vida completamente diferente e alheio à realidade local.» O resto fê-lo a incúria para com as zonas rurais – falta de investimentos e de apoio à economia familiar e de políticas tendentes à protecção dos solos – e a ausência de investimentos na construção civil popular nas cidades.

O primeiro factor, isto é, a falta de projectos tendentes a proteger as áreas rurais, provoca a fuga das aldeias e determina a decisão de procurar algures um lugar onde satisfazer as necessidades que a vida nas aldeias não satisfaz. Esta procura concentra-se na única alternativa possível: a cidade. Assim, a presença de um sistema urbano inarticulado implica e favorece a concentração de populações em pouquíssimos centros, que têm de acolher fluxos relevantes de gente.

Bairros-de-lata

É um «crescimento urbano sem cidade» que dá origem aos famigerados «slums», os bairros-de-lata: espaços autoconstruídos em terrenos do Estado, sem que haja um único tijolo, uma única viga de ferro e um único metro quadrado de vidro. «Nos países em vias de desenvolvimento», recorda-nos o professor Claudio Stroppa, «a dissolução da estrutura agrária agrava o êxodo dos camponeses sem terra; os bairros-de-lata acolhem-nos e desempenham um papel de mediação entre cidade e campo. Os bairros-de-lata muitas vezes consolidam-se e oferecem aos seus habitantes um “sucedâneo” da vida urbana, porventura miserável, mas muito intensa.»

Os efeitos destas contradições são evidentes na expansão das cidades. Trata-se de espaços complexos, onde estão presentes muitos dos contrastes que caracterizam a vida do planeta. Trata-se de cidades divididas por numerosas fronteiras, cujo simples atravessamento produz o sentido de passagem de uma fronteira a outra. Mas são fronteiras não simplesmente físicas: para entrar nos slums passa-se pela «fronteira do medo», enquanto para aceder aos bairros ricos se atravessa a «fronteira do bem-estar».

As cidades assim fragmentadas, em vez de serem lugares de encontro e de integração entre grupos sociais diferentes pelo nível económico, cultura e proveniência, transformam-se numa espécie de arquipélago constituído por muitas ilhas, marcadas pela qualidade das suas construções, pela presença (ou ausência) de infra-estruturas e serviços, pelas maiores ou menores condições de segurança.
Obviamente, as ilhas comunicam, os seus habitantes entrelaçam relações, e uma chave de entrada de uma ilha a outra é a conveniência económica, capaz de instituir relações e níveis de comunicação. Os ricos precisam de mão-de-obra barata e os pobres precisam de trabalhar. Nascem, assim, os intercâmbios, as subempreitadas, o fornecimento de serviços, o comércio nos slums de produtos industriais. Protagonista deste fluxo é o sector informal da economia, capaz de gerar postos de trabalho, riqueza e capacidade de poupança para a maioria dos habitantes das residências informais.

Confrontações

As ilhas vivem lado a lado e, no dia-a-dia, por vezes confrontam-se. Mas apresentam aspectos fortemente contrastantes: há island cities, «cidades-ilhas» ricas, do Primeiro Mundo, e outras pobres, do Terceiro Mundo. De um ponto de vista estético, o moderno arranha-céus e a barraca são os símbolos de cidades-arquipélagos, como Nairobi, Joanesburgo e Rio de Janeiro.

As island cities vivem em dois níveis. Uma parte «está no alto», ligada economicamente com o resto do mundo, porque a tecnologia que sustenta a rede global permite trabalhar e comunicar via éter. Esta parte do arquipélago está acima da outra e, muitas vezes, comunica mais em sentido horizontal, com as distantes cidades do mesmo nível, do que verticalmente, com o resto da própria cidade. A parte pobre do arquipélago, pelo contrário, está fortemente ligada à terra, porque luta diariamente para pertencer a essa terra, quer ocupando as estradas com os trabalhos informais, quer construindo a sua casa, geralmente pequena, pelo menos ao início, para poder ser edificada no menor espaço de tempo possível.

Na África Subsariana, na América Latina, no Médio Oriente e em algumas regiões da Ásia, a urbanização sem crescimento é também o resultado de uma conjuntura mundial específica – a crise da dívida do fim dos anos 70 e a reestruturação das economias em vias de desenvolvimento sob a égide do Fundo Monetário Internacional (FMI) nos anos 80 – e não tanto do êxito sabe-se lá de que lei coerciva do progresso tecnológico.

Explosão

A explosão dos bairros-de-lata foi analisada pelo relatório das Nações Unidas de 2003, The Challenge of Slums, «O desafio dos bairros-de-lata». O texto, o primeiro autêntico estudo a nível mundial sobre a pobreza urbana, compreende inteligentemente diversas sondagens locais, de Abidjão a Sydney, e estatísticas globais que incluem, pela primeira vez, a China e os países do antigo bloco soviético. O relatório lança uma advertência sobre a ameaça planetária da pobreza urbana. Os autores definem os bairros-de-lata como espaços caracterizados por sobrepovoamento, habitação precária ou informal, reduzido acesso à água corrente e aos serviços de saneamento, vaga definição dos direitos de propriedade.

Trata-se de uma definição pluridimensional e, em parte, restritiva, na base da qual se calcula, contudo, que a população dos bairros-de-lata atingia em 2001 pelo menos a 921 milhões de pessoas. Hoje os habitantes destes aglomerados representam 78,2 por cento da população urbana dos países menos desenvolvidos e um sexto dos cidadãos do planeta. Considerando a estrutura demográfica da maior parte das cidades do Terceiro Mundo, pelo menos metade desta população tem uma idade inferior a 20 anos.

A taxa mais elevada de habitantes de bairros-de-lata regista-se na Etiópia e no Chade, com 99,4 por cento da população urbana. Seguem-se o Afeganistão, com 98,5 por cento, e o Nepal, com 92 por cento. Todavia, as populações urbanas que mais se encontram na miséria são certamente as de Maputo (Moçambique) e Kinshasa (R. D. Congo), onde o rendimento de dois terços dos habitantes é inferior ao mínimo vital diário. Em Nova Deli, os urbanistas deploram a existência de «bairros-de-lata dentro de bairros-de-lata»: nos espaços periféricos, à histórica classe pobre da cidade expulsa em meados dos anos 70 acrescentam-se recém-chegados, que colonizam os últimos espaços livres. No Cairo, Egipto, os que chegam agora ocupam e arrendam partes de habitações sobre os tectos, gerando novos bairros-de-lata «suspensos no ar».

População subestimada

A população dos bairros-de-lata é muitas vezes subestimada, por vezes em grandes proporções. No final dos anos 80, por exemplo, Banguecoque, a capital da Tailândia, tinha uma taxa oficial de pobreza só de 5 por cento, mas alguns estudos demonstravam que um quarto da população, o equivalente a 1,10 milhões de pessoas, vivia nos bairros-de-lata e em habitações de risco.

Existem mais de 250 mil bairros-de-lata no mundo. As cinco grandes metrópoles da Ásia do Sul (Carachi, Bombaim, Deli, Calcutá e Dacca) albergam quase 15 mil zonas urbanas tipo do bairros-de-lata, para uma população total de mais de 20 milhões de pessoas. Os habitantes dos bairros-de-lata são ainda mais numerosos nas costas da África Ocidental, enquanto imensas urbanizações de pobreza se estendem até à Anatólia e aos planaltos de Etiópia, envolvem as zonas aos pés dos Andes e dos Himalaias, proliferam à sombra dos arranha-céus da Cidade do México, Joanesburgo (África do Sul), Manila (Filipinas), São Paulo (Brasil) e colonizam as margens do rio Amazonas, do Congo, do Níger, do Nilo, do Tigre, do Ganges, do Irrawaddy e do Mekong.

Os nomes do «planeta-bairros-de-lata» são todos intercambiáveis e, ao mesmo tempo, únicos no seu género: bustees em Calcutá, chawl e zopadpatti em Bombaim, katchi abadi em Carachi, kampung em Jacarta, iskwater em Manila, shammasa em Cartum, umjodolo em Burban, intra-muros em Rabat, bidonville em Abidjão, baladi no Cairo, gecekondou em Ancara, conventillos em Quito, favelas no Brasil, villas miséria em Buenos Aires e colónias populares na Cidade do México.

Um estudo recente, publicado pela «Harvard Law Review», calcula que 85 por cento dos habitantes das cidades do Terceiro Mundo não possui nenhum título de propriedade legal. Está em acto uma contradição estridente, porque o terreno onde crescem os slums é de propriedade dos governos, enquanto as casas construídas são de propriedade de poucos que impõem rendas puxadas aos pobres urbanos, os quais não possuem sequer a barraca em que vivem.

Dependência

As formas de instalação dos bairros-de-lata são muito variáveis: desde as invasões colectivas da Cidade do México e Lima aos complexos e muitas vezes ilegais sistemas de arrendamento dos terrenos na periferia de Pequim, Carachi e Nairobi. Em algumas cidades, por exemplo em Nairobi, o Estado é formalmente proprietário da periferia urbana, mas a especulação fundiária permite ao sector privado realizar enormes proventos à custa dos mais pobres. Os aparelhos políticos, nacionais e regionais, contribuem para este mercado informal – e para a especulação fundiária ilegal – e conseguem inclusive controlar as vassalagens políticas dos habitantes e explorar um fluxo regular de rendas e luvas. Destituídos de títulos de propriedade legais, os habitantes dos bairros-de-lata são obrigados a uma dependência quase feudal com relação aos políticos e burocratas locais. A mínima infracção à legalidade clientelar resolve-se com a expulsão.

A oferta de infra-estruturas, pelo contrário, está longe dos ritmos de urbanização, e os bairros-de-lata muitas vezes não têm qualquer acesso ao saneamento e aos serviços do sector público. E todavia, apesar de serem locais que se definem em termos de ausência – aquilo que não têm diz o que são –, os slums atingirão os 2 mil milhões de habitações em 2030, porque representam a única solução habitacional para a humanidade em excesso do século XXI.

Os bairros-de-lata poderão transformar-se em vulcões prestes a explodir? E os habitantes poderão transformar-se em sujeitos políticos capazes de «fazer história»? Muito dependerá da capacidade de desenvolver uma cultura de organização colectiva, mesmo se, como explicava Kapushinski, «os pobres, normalmente, estão calados. A miséria não chora, não tem voz. A miséria sofre, mas sofre em silêncio. A miséria não se revolta. De facto, os pobres só se insurgem quando pensam poder mudar alguma coisa». Saberemos ser parte desta mudança?

Amontoados nas cidades

Durante este ano de 2008, a população urbana terá superado a população rural. O processo de urbanização do planeta desenvolveu-se mais rapidamente do que o previsto pelo Clube de Roma no famoso estudo «Os limites do crescimento» publicado em 1972. Em 1950 existiam no mundo 86 aglomerados urbanos com mais de um milhão de habitantes. Hoje são 400. E calcula-se que, no ano 2015, serão 550. Desde 1950, os centros urbanos absorveram dois terços da explosão demográfica do mundo. Hoje os números da população urbana (3200 milhões de pessoas) ultrapassam os do conjunto da população mundial em 1960.

As previsões indicam que 95 por cento do crescimento da humanidade terá lugar nas zonas urbanas dos países emergentes. A população destes países deverá duplicar no curso da próxima geração. Este crescimento será liderado por países como a China, a Índia e o Brasil. A característica mais espectacular desta evolução será o multiplicar-se das cidades com mais de oito milhões de habitantes e o impacto das megacidades com mais de 20 milhões de habitantes. Na Ásia, por exemplo, em 1995 só Tóquio tinha atingido estes níveis de urbanização. Mas calcula-se que em 2025 só na Ásia haverá mais de 10 aglomerados urbanos destas dimensões, entre eles: Jacarta, na Indonésia, que terá uma população estimada em 24,9 milhões de habitantes; Dacca, no Bangladesh, que terá uma população de 25 milhões; Carachi no Paquistão com 26,5 milhões de habitantes; Xangai, na China, com 27 milhões; Bombaim, na Índia, com 33 milhões.

Mas a urbanização não dirá respeito só às megacidades. O crescimento urbano acentuar-se-á sobretudo nas cidades pequenas e médias, zonas urbanas secundárias, muitas vezes a acrescer sem planificação e serviços adequados. A China é o exemplo desta urbanização: o número das cidades passou de 196 em 1978 para 640 em 2008. Também na África, o crescimento explosivo de grandes cidades como Lagos, na Nigéria (que passou de 300 mil habitantes em 1950 para os 10 milhões de hoje) foi acompanhado pelo crescimento de pequenos aglomerados urbanos, como Ouagadougou no Burkina Faso, Douala nos Camarões, Antananarivo no Madagáscar. Na América Latina, enquanto antes o crescimento urbano foi monopolizado pelas grandes urbes, hoje são as cidades pequenas a crescer mais, como Tijuana no México, Curitiba, Salvador e Belém, no Brasil, Temuco no Chile. Na China, o êxodo da população rural para as cidades é determinado por uma revolução industrial e um processo de transformação social em acto. Mas em muitos dos países do Sul o processo de urbanização é alimentado por outras causas e não é acompanhado pela industrialização nem por qualquer outra forma de desenvolvimento e de promoção social.

30/06/2010

PANCHO GUEDES ALGARVIO

Filed under: Pancho Miranda Guedes — ABM @ 10:01 pm

por ABM (Quarta.feira, 30 de Junho de 2010)

Para os Maschambistas e aficionados de Pancho Guedes nos Algarves, noticia o Barlavento Online de hoje o seguinte:

Um encontro entre a obra do arquiteto, pintor e escultor Pancho Guedes e de um conjunto de jovens artistas portugueses nascidos nos anos 70 e 80 é a proposta da exposição “A Linha Curva, Deambulações em torno de desenhos de Pancho Guedes”, que abre no dia 2 de Julho (sexta-feira), no Posto 1 de Vilamoura.

Um dia depois, o artista volta a estar em foco com “A Voz do Mar”, uma intervenção no Promontório de Sagres, que contempla uma instalação de caráter temporário, colocada à volta de uma cavidade natural existente no terreno.

As duas exposições integram o programa “Allgarve’10”, sendo consideradas um dos momentos mais significativos do cartaz de arte contemporânea a decorrer até Novembro.

“O trabalho do Pancho Guedes está a ser redescoberto com grande intensidade por uma geração mais nova, que começou a questionar o nosso destino enquanto país, a nossa aventura ultramarina”, afirma Nuno Faria, programador de arte contemporânea do “Allgarve’10” e curador da exposição “A Linha Curva”, juntamente com Pedro Ressano Garcia.

Sobre o título da exposição, refere que “a obra do Pancho tem muito a ver com a linha curva, esta espécie de utopia arquitetónica, que estabelece uma relação com a utopia modernista de Vilamoura”.

Filipa César, Mariana Silva, Pedro N. Marques, Hugo Canoilas, Manuel Santos Maia, Miguel Rondon, Otelo Fabião, Francisco Sousa Lobo, Manuel Santos Maia foram os artistas convidados para participar na mostra, patente até 30 de Setembro.

Na exposição “A Voz do Mar”, o projeto acústico de Pancho Guedes dá a conhecer um lugar onde o mar é sentido literalmente debaixo dos pés, através da presença ritmada do som produzido pelas marés e as paredes que sobem em altura desenham um percurso até à descoberta do local.

Arquiteto, escultor, pintor e professor, Amâncio d’Alpoim Miranda Guedes, conhecido como Pancho Guedes, nasceu em Portugal em 1925 e estudou em S. Tomé e Príncipe, Guiné, Lisboa, Lourenço Marques, Joanesburgo, Porto.

Foi professor e diretor do departamento de arquitetura na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo.

O seu período mais criativo passou-o em Moçambique, nas décadas de 50 e 60, onde fez mais de 500 projetos para edifícios, muitos deles tendo sido construídos em Moçambique e alguns em Angola, África do Sul e Portugal.

Os seus edifícios e projetos exuberantes, ecléticos, complexos e pensativos, estando muito longe dos edifícios americanos do pós-guerra, foram reconhecidos pela sua qualidade e originalidade.

A sua obra absorve muitas influências, desde a arte de África ao surrealismo, e sintetiza-as num estilo que é reconhecivelmente seu, embora os resultados possam parecer diferentes à primeira vista.

A atividade como pintor surgiu quando estava a acabar o curso de arquitetura em Joanesburgo e participava em exposições com os artistas mais progressistas da época.

Em 1961, esteve presente na Bienal de S. Paulo, Brasil e, em 1975, na Bienal de Veneza.

É comendador da Ordem de Santiago e Espada e recebeu a Medalha de Ouro para a Arquitetura do Instituto dos Arquitetos Sul-africanos, havendo sido doutorado honoris causa pelas universidades de Pretória e Wits, na África do sul.

INFORMAÇÕES

A Linha Curva, Deambulações em torno de desenhos de Pancho Guedes
Curadoria de Nuno Faria e Pedro Ressano Garcia.
Em parceria com a Lusort, Inframoura e Câmara Municipal de Loulé.
Posto 1 – Vilamoura (Loulé) – 2 de Julho a 30 de Setembro

A Voz do Mar
Curadoria de Pedro Ressano Garcia.
Em parceria com a Direcção Regional de Cultura do Algarve.
Fortaleza de Sagres – 3 de Julho a 30 de Novembro

Hum, Pedro Ressano Garcia na “curadoria”. Será que este Ressano Garcia tem ligação com o Ressano Garcia de Ressano Garcia?

11/05/2010

A NORTE DO NORTE

O Norte do Norte: o Rovuma, junto à Tanzania

por ABM (11 de Maio de 2010)

Não se pode deixar passar despercebida nesta casa a inauguração, durante o dia de amanhã, da ponte que atravessa o rio Rovuma e que passará doravante a ligar o lado moçambicano da fronteira com o lado tanzaniano, por via rodoviária.

Como nunca lá meti os pés nem pelos vistos há fotografias da tal dita cuja ponte (“Ponte da Unidade”), fiz o que se pode fazer hoje em dia: percorri toda a extensão do rio Rovuma no Google Maps, até encontrar o que me parece ser (à data de 2007) o local da ponte. É a foto que se vê em cima. Tirando a ponte, não parece haver rigorosamente nada de cada lado da fronteira. Mas a esta hora os terrenos já estão todos com dono e já há balcão do BIM por perto.

Esta ponte, segundo reza a imprensa, faz parte de um velho desejo expresso por Samora e Nyerere lá para 1975. Como supostamente só custou 30 milhões de dólares (e da melhor construção chinesa), temo só de pensar quanto é que vai custar a unidade entre os povos quando alguém tiver que passar para o lado de lá e vice-versa.

Aliás, para já interrogo-me qual será o uso da ponte, tirando os traficantes de droga, os candongueiros e os batedores de carros de Gauteng, que subitamente passaram a ter um novo mercado (se a PRM não lhes pregar uma entretanto). Aliás, não sei se, nestes termos, a abertura deste novo acesso ao território moçambicano não vai trazer tantos problemas como benefícios. Acredito que haverá bastante trânsito de transbordo da África do Sul para os países a Norte. Mas, e de lá?

A ver vamos. Para já, aguardam-se os discursos solenes, os desfraldares de bandeiras, o reiterar da amizade tanzaniano-moçambicana e o brindar do champanhe.

E removido este obstáculo dos equilíbrios regionais e das promessas por cumprir, talvez agora se possa descomplexadamente fazer a única ponte que falta para ligar o país de Norte ao Sul, o Sul que falta para completar e preparar rapidamente a expansão da capital moçambicana (que já se faz tarde), o tal Sul que deu mais dores de cabeça em tempos aos diplomatas portugueses dos tempos do Império que quase todo o resto da então projectada colónia.

E a ponte até é curtinha. Por detrás (espero que bem por detrás) da velha estação dos CFM até à Catembe é quase, apenas, um salto.

A Norte, Maputo. A Sul, A Ka Tembe, e o Sul de Moçambique

15/02/2010

A POLANA E O HOTEL POLANA

Construções na praia da Polana há cem anos. Ao fundo a colina da Ponta Vermelha. Note-se que a actual marginal foi roubada às colinas e que naquela altura não era possível vir da baixa para a praia da Polana a não ser a pé pela praia ou, mais tarde, pela Estrada do Caracol e pelo eléctrico que descia uma rampa atrás do Clube Naval que hoje creio que está fechada.

por ABM (Cascais, 15 de Fevereiro de 2010)

Na noite em que o Senador JPT nos brindou com a periclitâncias do termo machimbombo, eu coloquei uma outra questão: e de onde veio o nome “Polana”?

Sendo que eu nasci, cresci e vivi na Polana (bem, no dia em que nasci meus pais estavam acampados no aquartelamento de Boane, onde o pai BM era um tenente miliciano. Mas a mãe BM tinha vindo à cidade ver o filme Casablanca com uma amiga e já não foi para o cinema, foi directa para o Hospital Miguel Bombarda onde nasci às 20 horas de 30 de Janeiro de 1960).

Primeiro, um ponto de ordem. Antes da independência, aquilo a que se chamava Polana era uma área geográfica muito específica da cidade, circunscrita (e escrevo isto de cabeça) a Norte pelo Hotel Polana e pela chamada Carreira de Tiro (ainda hoje há uma farmácia com esse nome, é para aí), a nascente pelas barreiras e a Rua Friedrich Engels (acho antigamente se chamava a Rua dos Duques de Connaught mas não tenho a certeza, é aquela onde fica o Miradouro), a Sul pela Ponta Vermelha (que era literalmente uma língua de terra, do Palácio até às barreiras) e a Poente pela Maxaquene, que era mais ou menos na rua onde fica a Pastelaria Princesa.

Hoje não percebo nada. Fala-se em Polana Cimento, em Polana Caniço, não entendo muito bem a razão para o realinhamento dos bairros mas também não interessa.

O importante é que o nome está lá há muitios anos.

Mas então, de onde vem?

“Polana” não é um termo ou um nome português. Nem é referenciado em parte nenhuma na história dos portugueses.

Uma consulta na internet indica que em polaco, “polana” é o nome dado a uma clareira numa floresta – sendo que “polanski” é o nome de alguém que vive nessa clareira. Em grego, supostamente, deriva de Apollina, nome feminino do nome de (por exemplo) o deus grego Apollo, significando “sol”.

Mas poderá ser um nome africano? mais precisamente, houve um régulo chamado Polana? Numa peça publicada pelo inolvidável João Craveirinha sobre Maputo (na qual conclui que a capital de Moçambique devia ser mudada para o centro do país), o sobrinho do Sr. José Craveirinha a certa altura escreveu o seguinte:

O mesmo Lobato fazia alusão às invasões vindas do norte, dos grandes Lagos, foz do rio Nilo Branco, de que nos falaria outro grande historiador de Moçambique, Caetano Montez quando referia que: “(…) a gente do Tembe foi invasora como também o foi a de Mpfumo (…) Maputo é um ramo da dinastia do Tembe: Matola é um ramo da dinastia de Mpfumo (…)” Caetano Montez, ainda na sua obra “Os Indígenas de Moçambique”, diz (…) A casa da Matola (Matsolo) provinha de In-lha-rúti (Mpfumo), o invasor das terras da margem norte da baía, vindo com a sua gente de Psatine (Suazilândia). Seus filhos Mpfumo, Polana, Massinga e nuá-Intiuane repartiram as terras como vassalos do pai. Nuá-Intiuane (deu Tivane) ficou com as que denominariam Matola.

Segundo estas indicações, é então plausível que os terrenos onde dantes se situava a “velha” Polana, poderão ter pertencido ao tal Polana, filho do tal invasor que que veio da Suazilândia não se sabe bem quando. Mas então, cadê do Sr. Polana? Haverá registos de transacções imobiliárias dessa altura?

Na sua dissertação para o grau de Doutora pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1979, Maria Clara Mendes a certa altura refere a compra, em 1914, pelo Estado, dos terrenos compreendidos entre “a Rua de Nevala, a praia da Polana e a Rua Bérrio, que compreendem actualmente a Polana e a Sommerschield”.

Num detalhado relato sobre a construção, concluída em 1922, do Hotel Polana, a que tive acesso, é de facto referida a aquisição dos terrenos onde o hotel hoje se situa ao Estado pela Delagoa Bay Lands Syndicate, a empresa que ganhou o contrato para a sua construção.

Só que, que eu saiba, o nome Polana não é nada comum nos grupos étnicos que entravam e saiam da região da Baía – nem me parece ser particularmente “suázi”. Mas apelo aos exmos leitores que saibam alguma coisa que ajudem a fechar este puzzle.

O HOTEL POLANA

Hotel Polana, imagem de um postal da época

Sobre este tema, não vou inventar a roda, pois, enterrado algures na Geocities há um excelente artigo de José Maria Mesquitela que, com profunda vénia, cujo texto transcrevo em baixo. De notar que este texto deve datar cerca dos anos 90, antes da concessão do Hotel Polana ter sido cedida à organização Aga Khan e o seu nome ter sido alterado para Polana Serena Hotel (e lamentávelmente, o edifício pela primeira vez ter sido pintado de creme em vez do habitual branco).

O texto:

“A construção de um grande e luxuoso hotel para servir o turismo rico foi ideia que nasceu cerca de 1917 em Lourenço Marques.Como todas as iniciativas audaciosas, teve defensores e detractores. Havia altos interesses em jogo.

Longa fora a jornada, primeiro que a ideia se concretizasse e ao fazer a história do empreendimento de forma alguma se pode esquecer o nome do coronel Alexandre Lopes Galvão que por ela se bateu. Ele próprio se referiria mais tarde, a esses tempos difíceis, em carta de 26 de dezembro de 1950, que escreveu a um amigo de Lourenço Marques :

…” Chego a Lourenço Marques em 1917, verifiquei que não havia ainda um hotel para receber ´pessoas de categoria, que nos visitavam. Passei a fazer parte do Conselho de turismo, onde pontificava o comandante Augusto Cardoso, dono do Cardoso Hotel.

De variadíssimas inssistências para que o Conselho tratasse de arranjar para Lourenço Marques um hotel decente, cheguei à conclusão que o assunto não interessava ao Conselho.

Apareceu-me nessa altura Adriano Maia, que me disse que os seus amigos do Transvaal estavam dispostos a fazer um grande hotel em Lourenço Marques, em determinadas condições. Ouvi-o, ouvi as condições, que me pareceram aceitáveis e levei o caso ao conhecimento do Massano de Amorim. Este achou bem e autorizou-me a negociar.

O Comandante Cardoso, ouvindo falar do caso, foi para o Conselho de Turismo, e diz: Ouvi dizer que há negociações para se fazer um hotel. E, olhando para mim, acrescentou: Alguém sabe dizer alguma coisa do que se passa? Resposta minha: Eu sei, mas não estou autorizado a dizê-lo. Mas como o Conselho despacha directamente com o Governador-Geral, é-lhe fácil saber o que há.

Na noite desse dia recebo no Hotel Cardoso uma carta do Comandante Cardoso dizendo cobras e Lagartos ! e cortando as relações comigo.

Mostrei a carta ao Mariano Machado e este pediu-me autorização para ir falar no assunto ao Comandante. E foi. Vem com a resposta de que jamais reataria relações comigo.

Levadas as negociações a bom termo, os capitalistas foram a Lourenço Marques e o Inspector Góis Pinto foi autorizado a lavrar o contrato.

O Comandante Cardoso perde a cabeça e faz um manifesto patriótico ap povo de Lourenço Marques, assinado por ele e pelo arrendatário Luís Boschian, Italiano.

O Massano, nessa altura, foi para o Norte da Colónia e ao chegar a Inhambane recebe um telegrama assinado pelo comandante Cardoso e creio que pelo Boscgian, protestando contra a construção do hotel. O Chefe de gabinete foi quem lhe deu conhecimento e o Massano de Amorim disse-lhe: “responda-lhe dizendo que vá ver da…”

Em resumo: se Lourenço Marques passou a ter um belo hotel, inaugurado em Março de 1922, a mim o deve.

Ficou a representar os capitalistas o velho Leão Cohen. Eu estava na África do Sul, nessa ocasião, onde tinha ido com Freire de andrade na Missão Diplomática que havia de negociar uma nova convenção. Pois ninguém se lembrou de me convidar para a inauguração, que se fez com um certo aparato. E nem ao menos o meu nome foi lembrado nos discursos laudatórios, então pronunciados.”

Alexandre Lopes Galvão

Em outubro de 1918, foi aberto um concurso pela Delagoa Bay Lands Syndicate , apresentado pelos Senhores A.W.Reid & Delbridge, arquitectos de Johannesburg e Cidade do Cabo, para a construção do Hotel Polana, ao qual concorreram sete firmas construtoras, das quais, apenas uma era Portuguesa, conforme abaixo:

– Hill Mictchelson, de Johannesburg, classificado em segundo lugar.

– Ferreira da Costa, de Lourenço Marques

– Philip Treeby, de Johannesburg

– Herbert Baker & amp; Fleming, de Johannesburg

– H.W.Spicer, de Johannesburg

– R.L.McCowat, de Johannesburg

Os planos foram postos em exposição no Conselho de Turismo, e aprovada pelo Governo a construção do novo Hotel na Polana pela Delagoa Bay Lands Syndicate, por ser a proposta mais barata apresentada. Ficou o compromisso que o Hotel seria construido em 19 meses. Os proprietários do hotel instalarão uma planta para fornecimento de luz elétrica e um frigorífico.Com isto, com mobília, ascensor para a Polana, e direitos, etc, o custo total do Hotel ficou estimado em 200 000 Libras.

O Governo garantiu ao Sindicato 6% anuais sobre o capital empregado durante dez anos, assim como garante algumas concessões.

Projecto de um arquitecto famoso

O projecto desse hotel em estilo “Palace” foi de autoria de um não menos famoso arquitecto inglês, Sir Herbert Baker, autor do projecto do majestoso edificio da “Union Buildings”, em Pretória. A sua construção foi dirigida pelo engenheiro Hugh Le May.

Inauguração

Iniciada a sua construção, devido à iniciativa do Coronel Lopes Galvão, que foi sem dúvida alguma a alma deste notável empreendimento turístico e que no governador-geral, general Massano de Amorim, encontrara sólido apoio, o Hotel Polana inaugurou-se no dia 1 de Julho de 1922.

Foi um acontecimento de grande relevo na vida da cidade. A assinalar a data, a Delagoa Bay Lands Syndicate, que se fez representar por Leão Cohen, ofereceu nesse dia um almoço solene.

Na mesa em U armada na elegante sala de jantar do Hotel Polana, sentaram-se 131 convidados. Na presidência, à cabeceira da mesa, Leão Cohen, dava a direita ao Alto Comissário, Dr. Brito Camacho, ao cônsul de Sua Majestade Britânica, Hall , e ao secretário-geral, Dr Mário Malheiros. À sua esquerda sentavam-se o inspector das Obras públicas, Eng. Monteiro de Macedo, o cônsul da França, G.Savoye, o chefe do Estado-Maior, coronel Santana Cabrita e o cônsul dos Estados Unidos, Hazeltine.

A construção acabou beirando o valor de 300.000 Libras, mas foi considerado na época uma das construções mais perfeitas e modernas e sem rival nos portos do Sul, havendo muito poucos hotéis na Europa semelhantes.

Ele tinha vida própria para a sua laboração: máquinas geradoras de electricidade e aquecimento, Frigorífico, Lavandaria eléctica, Fábrica de sodas, Telefones e água quente em todos os quartos, e para tudo ser completo, estava programado para questão de dias um serviço permanente de correios e telégrafos, permitindo assim aos seus visitantes expedir cartas, telegramas, radiogramas e até encomendas postais para todas as terras e navegação.

A inauguração do Hotel, também mexeu significativamente no movimento da cidade, pois um mês e meio depois da inauguração, os carros elétricos começaram a transitar até ao bairro da polana, com uma paragem obrigatória no Hotel.

Na área externa do hotel, tinha um lindo campo de golfe , quadras de ténis e jardim que o embelezavam.

Assumiu a gerência do hotel, o Sr. Kershaw, auxiliado por sua esposa.

O hotel deu ênfase ainda ao turismo na cidade de Lourenço Marques, que assim passava a contar com um ponto de super luxo, e delegações de vários paises, tais como a própria África do sul e países vizinhos, ou de Italianos e até Brasileiros que começaram a ser trabalhadas as excursões a Moçambique.

O Hotel muda de mãos

Em junho de 1936 o hotel mudou de mãos pela primeira vez. Tendo a Delagoa Bay Lands Syndicate posto o imóvel à venda, a oportunidade foi aproveitada pelo milionário I.W.Schlesinger, que o adquiriu pela importância de 400.000 Libras. Pouco depois a empresa foi registada sob a designação de “Polana Hotel, Lda”, sociedade com o capital de um milhão de libras.

Tempos passados, a African Consolidated Investments Corporation, uma das muitas organizações de Schlesinger, passou a ser a maior accionista da empresa exploradora do hotel, que pouco depois passou para a African Caterers, também importante organização do grupo de companhias Schlesinger.

No periodo que precedeu a II Guerra Mundial conheceu anos de prosperidade, projectanto-se internacionalmente nos mapas turísticos como um dos mais importantes de toda a Àfrica, depois de Cairo e do Carlton, de Johannesburg.

Nos seus salões se realizou o banquete de gala que as Forças Vivas de Moçambique ofereceram em honra do presidente da República Portuguesa, Marechal António Óscar de Fragoso Carmona, o primeiro Chefe de Estado que visitou oficialmente Moçambique, em 1939.

Durante a II Guerra

Quando a 1 de setembro de 1939, com a invasão da Polónia pelo exercito alemão, rebentou a II Grande Guerra, ao Hotel Polana, pela sua privilegiada situação de hotel de luxo e ponto de reunião da nata da sociedade lourenço-marquina, coube desempenhar, pela força das circunstâncias, outro curioso papel: o de centro elegante de espionagem e de intriga Internacional.

Durante a II Guerra, o Hotel Polana gozou de reputação internacional porque, tendo Portugal proclamado a neutralidade, os agentes secretos tanto dos Aliados como das potências do Eixo (Alemanha e Itália) Puderam ali dedicar-se com certo à-vontade a práticas de espionagem e de contra-espionagem. Os espiões dos dois lados, passaram naturalmente a servir-se desse luxuoso hotel de uma cidade portuária para campo de sua acção.

Assim, agentes secretos Sul-Africanos, Ingleses, Americanos, alemães e Italianos, cumprimentavam-se cerimoniosamente quando se cruzavam nos seus longos corredores, nos seus salões ou no “Bar”.

Um dos agentes mais notáveis que por ali passou foi o tenente-coronel J. Stevenson-Hamilton, então fiscal de caça do Kruger Park. Em suas memórias, descreve a missão mais agradável, quando teve que se infiltrar em Lourenço Marques, instalado no Hotel Polana, quando descobriu que, em principio de Junho de 1940, quando correu um boato que os Alemães haviam invadido e tomado Lourenço Marques e se preparavam para invadir a África do Sul via Komatipoort, que se tratava de um boato propositadamente implantado por agentes alemães que operavam em Lourenço Marques, numa rede de espionagem bastante eficiente. possuiam emissoras clandestinas que mantinham os submarinos nazis que operavam no Canal de Moçambique bem informados dos movimentos dos navios aliados no porto de Lourenço Marques.

O chefe dos espiões era um importante membro da Gestapo. O “Quartel-General “era o Hotel Polana.

O Hotel na mão dos Portugueses

Em 1963, John Schlesinger, filho e herdeiro do milionário que havia adquirido em 1936 o famoso estabelecimento hoteleiro, vendeu-o a uma empresa onde os capitais Portugueses eram solidamente presentes, entre eles um dos dos acionistas era o Eng. Manuel Arouzo, que foi o braço forte do Hotel durante anos, até que um problema com o seu procurador o fez sair da sociedade.

Nesta fase entre 1963 e 1975, o edifício foi ampliado e reconstruída a sua piscina tão tradicional e ainda edificado um novo e amplo anexo a Nascente, o Polana-Mar, que assim atendia à demanda que cada vez mais se avolumava.

O Hotel manteve o seu glamour, sempre foi frequentado pela nata da Sociedade Lourenço-Marquina, assim como por todos os turistas de peso que visitavam constantemente Lourenço Marques.

O Hotel Polana confundia sua Imagem com a da Capital de Moçambique.

O Hotel e a Independência

Com a Independência de Moçambique, após 1975, o Hotel entrou em declínio, por falta de clientes e pela degradação pela óbvia falta de pessoal e respectiva manutenção, permanecendo durante 20 anos praticamente abandonado.

Em 1994, um grupo Sul-Africano adquiriu o Hotel, remontando às suas origens de fundação, e com as melhoras que já sinalizava Moçambique, deu continuidade ao seu estatuto de um dos melhores hotéis de cinco estrelas do continente africano. Desde o hall, revestido a mármore, aos jardins generosos em estrelícias e coqueiros, nada é deixado ao acaso neste escaninho luxuoso, que se prepara para nova reestruturação. Curiosamente, não é apenas procurado por viajantes exigentes, mas também pelos próprios maputenses, devido à cozinha requintada e à pastelaria – o chá com scones e o cozido ao domingo são dois clássicos –, à piscina – a mais cobiçada de Maputo – e até ao ginásio. É ainda um dos lugares da cidade que são frequentados para ver e ser visto.

A IPE -Investimentos e Participações Empresariais está, em parceria com o Grupo Pestana, a negociar a compra do Hotel Polana. O grupo que detém a maioria do capital do prestigiado Hotel Moçambicano encontra-se com sérias dificuldades financeiras e pretende vender a sua participação. Caso o negócio se concretize, o Grupo Hoteleiro Português, que tem já vários empreendimentos turísticos em Moçambique, será responsável pela gestão e o controlo do Hotel Polana.

A holding do Estado português tem cerca de 1,6 milhões de contos investidos em Moçambique, nomeadamente nos sectores agro-industrial, ambiente, financeiro e em infra-estruturas industriais. Caso a co-aquisição do Polana venha a concretizar-se, o investimento do IPE deverá subir para cerca de 2,4 milhões de contos.”

E aqui está mais uma “maschambada”.

27/11/2009

Gabriel Teixeira, Francisco e Nuno Craveiro Lopes e Moçambique

1956 Craveiro Lopes e Gabriel Teixeira(Na foto acima, Francisco Craveiro Lopes, então Presidente da República Portuguesa, de farda branca e óculos. De fato e chapéu à civil à direita na foto está Gabriel Teixeira, então Governador Geral de Moçambique. Numa visita ao Parque Nacional da Gorongosa, integrada numa visita de Estado à Província e à União Sul Africana, Julho e Agosto de 1956)

por ABM (Cascais, 26 de Novembro de 2009)

Parte da beleza de escrever num meio destes é que há pessoas de boa vontade que lêem alguns escritos e não só comentam e discutem, o que é interessante, mas nalguns casos dão outros contributos.

Numa crónica que preparei ontem sobre Gabriel Teixeira, um dos problemas que tive foi que, apesar de uma longa pesquisa na internet, não consegui encontrar uma -uma só que fosse – fotografia do distinto oficial e governante de Moçambique português. Felizmente, lá longe por detrás dos coqueiros e dos leões e búfalos da Serra da Gorongosa, o meu muito caro Dr. Vasco Galante  teve a iniciativa de enviar a foto acima, onde se pode ver o então governador Gabriel Teixeira. Muito grato e obrigado. Ajudou a compor a história de mais maneiras do que pensa. Continue a ler e vai ver como.

A “aparição” de Craveiro Lopes na fotografia acima apresentada motiva-me a mencionar algumas peças de trívia moçambicana que o tempo quase que apagou e que fazem parte do fabrico do Moçambique actual.

Francisco Craveiro Lopes foi presidente de Portugal entre Carmona e Américo Tomás. A sua presidência foi no mínimo penosa, por várias razões. São legendárias as suas ambivalências em relação a Salazar e aos destinos por que o seu país navegava. No fim, Salazar mandou-lhe uma simples nota indicando que a União Nacional (que era ele) seleccionara o mais dócil e ultra Américo Tomás para “concorrer” para a eleição de 1958 – a famosa eleição em que concorreu o General Humberto Delgado.

Tudo indica que Craveiro Lopes era um homem bom e decente, com um distinto currículo. O seu pai fora um general e governador da Índia e formou-se no Colégio Militar. Antes dele houve mais. Mais importante, foi um homem que se apercebeu, por mais suavemente que fosse, que algo corria mal na sua república, o que era mais do que se pode dizer de muito boa gente na altura. Foi o único presidente que activamente conspirou contra o regime que Salazar impora aos portugueses. Foi por isso alvo das maiores infâmias por parte dos correlegionários do regime. A ligação acima dá alguns detalhes e testemunhos sobre o que isso foi.

O que pouca gente sabe é que a primeira vez que Craveiro Lopes apareceu no cenário nacional foi pelo que fez em Moçambique, quando, em plena I Guerra Mundial, esteve na fronteira entre o Norte de Moçambique e o então Tanganica alemão, na qualidade de Aspirante de Cavalaria e distinguiu-se no combate aos alemães em 1915 e 1916, nomeadamente em Newala e Quionga. Após voltar à Europa em 1917 para se casar e tirar um curso de aviador, voltou a Moçambique em 1918 por algum tempo.

Craveiro Lopes teve quatro filhos, tudo boa gente mas aqui mencionarei apenas o seu filho Nuno, que viveu durante muitos anos em Moçambique e que, para além de opositor ao regime, foi um arquitecto que deixou obra interessante quer em Portugal quer em Moçambique, para onde veio viver em 1952 e trabalhar como responsável pelo Gabinete de Urbanização e Obras Públicas. A igreja de Santo António da Polana e a Igreja do Sagrado Coração de Jesus no Chibuto são de sua autoria.

Igreja sto ant Polana

Aliás há uma história interessante sobre Nuno Craveiro Lopes e a Igreja de Santo António da Polana. No seu projecto original, aquela horrível casa onde viviam (vivem?) os padres, e que foi erguida mesmo ao lado do ainda hoje arrojado edifício, ficava muito mais longe. Mas os senhores padres não se viam a andar a pé para entrar no templo e mandaram “encostar” a casa à igreja e fazer um túnel de acesso entre os dois edifícios para não molharem a batina, o que enfureceu o arquitecto (ele deve ter desmaiado quando fizeram o ainda mais arrepiante “salão de festas” por detrás, um armazém, basicamente, onde fui inúmeras vezes ao cinema – por cinco escudos via o filme e ainda comia uma bola de Berlim e bebia uma Coca-Cola).

Outro incidente igualmente grave foi que, no projecto original da igreja em si, tal como concebido por Craveiro Lopes, o altar-mor ficava não onde está hoje mas no centro da igreja, directamente debaixo da cúpula do espremedor de limão, onde o efeito da luz ao meio dia era mágico. E o chão da igreja era para ser feito em mármore branco. Ou seja, nas cerimónias os crentes ficariam sentados todos em círculo à volta do altar-mor, iluminado pelos vitrais coloridos de cima, o que é conceptualmente muito mais belo e dinâmico que a chachada que acabou por ser imposta no fim.

LM Igreja S A da Polana

Mas os srs. padres no fim mais uma vez deram a volta. Até hoje, aquilo ficou organizado em estilo teatro, o altar-mor encostado à parede e o povão crente sentado de frente.

Altar mor da Igreja st ant Polana

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