THE DELAGOA BAY REVIEW

22/08/2023

MÁRIO CRESPO, ENTREVISTA EM JANEIRO DE 2010

Imagens retocadas, retiradas com vénia do magnífico arquivo de Moçambique para Todos, contendo uma entrevista conduzida por Ana Cristina Câmara e Vitor Raínho, com fotos de Raquel Wise e publicada na Revista Tabú no dia 15 de Janeiro de 2010.

Mário Crespo, que cresceu em Moçambique, foi de longe o melhor anchor que a televisão portuguesa teve até hoje. Em todo o seu percurso, e desde que saíu, em circunstâncias rocambolescas, da SIC, em 2014, tem sido gritantemente insubstituível. Para além de ter a formação, o conhecimento, a independência, a atitude e a experiência, tem-nos no sítio, o que, juntamente com uma presença e postura suave e quase fleugmática, o tornava único – diria agora que grande demais para a pequenês mental de uma elite dominante, centenária e estruturalmente corrupta, sediada em Lisboa, que, desde 1500, sobrevive de favores, discretamente emanados então do poder régio, e agora de quem controla os governos e o parlamento. Dantes eram os esquemas do Império, agora são os esquemas do erário, as adjudicações aos amigos dos recursos e dos favores e dos subsídios nacionais e europeus. Sempre uma cleptocracia bem falante, especiamente no perjúrio e a tepidez aparentemente benevolente de uma democracia falida, agora com a relativa novidade da usúria fiscal dos cidadãos em troca de migalhas.

Foi em 2010, num momento de tempestuosa evidência desta patente, corrupta falência moral e social (e económica) que o Mário, que na altura nos servia o ignóbil quotidiano em doses cuidadosamente preparadas, deu a notável entrevista que reproduzo em baixo. Foi quando, num acto de infâmia governativa, o até agora nem sequer julgado José Sócrates, com uma arrogância pesporrente sem precedentes, com o beneplácito do seu partido político, o PS (nisso coadjuvado pelo seu engenhoso sucessor, António Costa), levou Portugal à sua terceira falência desde 1974. Pelo meio, tentava controlar a imprensa, meter-se na cama com Ricardo Salgado, controlar o BCP e a CGD com o surreal Comendador Berardo e a sua Colecção. O sisudo Aníbal Cavaco Silva a tudo presidir, efectivamente assobiando para o lado e a populaça inerte e passiva a assistir. Tudo foi mau demais e a factura apresentada aos contribuintes, foi – é -gigantesca.

Mas, então, sempre tínhamos o Mário para nos dar com uns laivos de sanidade o relato desta chafurdice. Agora, temos um dócil jornalismo de Bloco Central, especialmente nas RTPês, com muita tolerância, muito relativismo, muito paleio e muito pouca parra, os jornais falidos e pouco afeitos a investigar e a apontar o dedo. Felizmente a Judiciária ainda tem uns valentes que de vez em quando se rendem às evidências e às denúncias de uns tantos cidadãos, mais motivados pela inveja que pela indignação.

No fim do dia, colectivamente,nada aprendemos, quase tudo perdoamos e tudo esquecemos, na procura permanente por mais um subsídiozinho, um favorzinho, uma vidinha um nadinha melhor. Sem qualquer sucesso, claro, pois a Elite domina sempre, independentemente dos pinos que o regime dê. Sugerimos por fim aos nossos filhos que estudem, que emigrem daqui para fora e que esqueçam esta espécie de failed state socialista, enquanto hordes de indianos e paquistaneses e brasileiros, bastando para tal falsificar uma declaração no sítio do SEF, buscam aqui uma dúbia melhoria às suas ainda mais miseráveis existências lá onde viviam. Sendo “racista” e portanto criminalizável, derivar críticas ao fenómeno migratório, justificado pela necessidade de manter a receita fiscal e balançar os que entram com os que saem.

Mário certamente explicaria isto tudo melhor do que ninguém.

A entrevista:

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28/09/2012

MÁRIO CRESPO, JORNALISTA, EM 3D

Filed under: Imprensa Portuguesa, Mário Crespo Jornalista — ABM @ 6:18 pm

Mário Crespo. Uma das suas mais memoráveis posturas é a forma magistral e suave como ele sabe dizer “fuck you very much”. Tem algumas sérias ligações com aquele outro Moçambique.

Reproduzido com vénia do JN, entrevista de Carla Bernardino e Filomena Araújo. Setembro de 2012.

 

Adora vela, feiras de velharias e uma boa polémica. Toca viola, sabe de cor os êxitos dos anos 60, é romântico e tem a língua afiada. Conheça o homem por detrás do polémico pivô da SIC Notícias que despertou a ira na RTP. Para onde quis voltar há meses.

É tudo menos um homem consensual. Os quase 40 anos de jornalismo que já leva tornaram-no um dos mais conhecidos profissionais televisivos. Mas também um dos mais polémicos. Dois anos depois de ter mostrado uma T-shirt na Assembleia da República a gozar com José Sócrates, Mário Crespo mostrou um quadro em excel no Jornal das 9. Tudo para provar a teoria com que se tem despedido dos seus espectadores: “Passou mais um dia e a RTP custou mais um milhão de euros.”

A sua cruzada contra a televisão pública não é de hoje. Já em 1995, no extinto vespertino A Capital, defendeu a privatização da empresa pública e o encerramento de um canal. Há quem lhe elogie a coerência, mas os seus antigos colegas na RTP não lhe perdoam o que dizem ser uma campanha contra uma casa que o acolheu e para onde Crespo quis voltar… ainda há oito meses.

É que em janeiro deste ano escreveu uma carta ao então presidente da RTP, assinada pelo seu próprio punho, a candidatar-se ao lugar de correspondente em Washington, nos Estados Unidos, local onde sempre desejou terminar a carreira como jornalista.

O caso provocou a ira na estação pública e o silêncio na SIC. E também o de Mário Crespo que, apesar de várias tentativas na última semana, não quis colaborar neste trabalho. Ele e muitos outros. É que entre as cinco dezenas de antigos colegas, amigos, ex-amigos e políticos contactados para este perfil, metade não quis falar em on.

Não foi o caso de Henrique Monteiro, administrador da Impresa Publisher (do mesmo grupo da SIC). O antigo diretor do Expresso declinou inicialmente falar sobre a sua relação com o jornalista de quem já foi amigo, mas acabou por fazer uma única declaração. Arrasadora, por sinal: “Não compreendo o nível de impunidade a que ele chegou, ele está para lá do nirvana, acima de qualquer crítica que se possa fazer”, disse à Notícias TV.

Mas quem é o homem por detrás do pivô do Jornal das 9? O primeiro choro de Mário Crespo ecoou nas redondezas da Rua da Sofia, uma das principais vias comerciais de Coimbra, no dia 13 de abril de 1947, filho de Eduardo Ribeiro Crespo, bancário, e de Carmen de Assunção Rodrigues de Sousa, professora.

Foi ainda em pequeno para Moçambique e os primeiros relatos que chegam vêm precisamente do repórter. “Lembro-me de ir em 2.ª [classe] e havia uma zona do barco, em 1.ª, que tinha ar condicionado. Lembro-me do impacto de sentir muito calor, sobretudo quando chegávamos a São Tomé e Príncipe, era quentíssimo, e eu com 6 ou 7 anos pensar: ‘Que fresquinho! E cheira bem!'”, relatou numa entrevista ao semanário Sol, em 2010.

A geração da Coca-cola

As primeiras memórias de Mário Crespo chegam do tempo da adolescência. “Ele era um companheiraço das festas em Lourenço Marques”, recorda a fadista Maria João Quadros, que nunca lhe conheceu “nenhum irmão”. Ligeiramente mais nova do que o pivô da SIC Notícias, lembra-se bem dele. Uma geração que, relata, ficou conhecida por ser a da Coca-Cola, por ser finalmente possível bebê-las livremente. “Tínhamos todos 15, 16, 18 anos e andávamos nas nossas brincadeiras. Para além da Escola Comercial ou do Liceu Salazar – que o Mário frequentou – havia a praia, a piscina e as festas à noite. Aos fins de semana íamos para Inhambane, para a praia do Bilene, todos juntos, eram dois dias a rir”, recorda.

Maria João não consegue enumerar um momento particular, mas lembra-se de Mário ser, à data, “um apaixonado por vela”. Na altura, desfia a fadista, “era pacato, tinha um senso de humor bestial, na sua pacatez e no seu jeito sonsinho, ele tinha sempre umas tiradas geniais.” Se era ou não namoradeiro, Maria João Quadros simplifica: “Éramos todos muito namoradeiros, éramos muito felizes. A vida era muito diferente, nós éramos cabeças ao léu, almas ao léu, bem criados, bem nascidos e a família era o pilar de tudo isto.”

Tony de Freitas, um antigo amigo de Moçambique, reparou, porém, em características bem diferentes quando se cruzou com Crespo pela primeira vez. “Ele era ainda estudante e conheci-o no âmbito de uma excursão que a escola fez em Inhaca”, numa visita de estudo à estação biológica da ilha. As datas são difíceis de precisar, mas não o olhar. “Eu tinha à volta de 30 anos e ele era um garoto. Era um rapaz de quem era fácil ser amigo, era uma pessoa que saltava logo à vista, extrovertido”, conta este investigador de zoologia que ainda hoje permanece em Durban, África do Sul.

Por essa altura, já Mário viveria apenas só com a mãe, Carmen, que entretanto se divorciara do pai. Processo judicial que terá sido, afiançam à Notícias TV, tratado por Almeida Santos. O histórico presidente do Partido Socialista não se recorda: “Foram tantos processos. Cheguei a Moçambique em 1953, cruzámo-nos lá, mas não tenho memória disso. O Mário deveria ser um jovem. Mas conheci-o melhor em Nova Iorque e gostei muito dele”, conta à nossa revista.

Lisboa- Lourenço Marques

Veio para a metrópole e ingressou depois no Instituto Superior Técnico, em Engenharia. Desistiria um ano depois. Na entrevista ao Sol, Crespo revelou como desistiu. “Disse à minha mãe: ‘Isto não é para mim’.” E não foi.

Mário regressou a Moçambique para cumprir serviço militar obrigatório (SMO), em 1970. Terá sido um ano decisivo na vida do futuro jornalista. Não só aos 22 anos se via colocado, referira na conversa com o semanário, “na primeira unidade (…) para o controlo das cargas de cimento que vinham da Beira para Cahora Bassa, o comando de cargas críticas”, como ingressava na Faculdade de Medicina, em Lourenço Marques, como terá, garantem os registos civis de Coimbra, casado com Helen de Souza em finais desse ano. Tony de Freitas foi um dos convidados para a cerimónia e recorda-se do momento. “Ela era muito bonita. Foi educada na África do Sul, mas era ao mesmo tempo muito portuguesa. Foi com bastante surpresa que eu e a minha mulher fomos ao casamento em Joanesburgo. Depois de se casar, veio viver com o Mário para Moçambique”, conta este investigador. Maria João Quadros ainda se lembra de Helen. “Ele era solteiríssimo no tempo das festas, mas depois esteve sempre muito apaixonado por ela”, diz a fadista.

Uma vez casados, ela trabalhou em investigação no Instituto de Pescas junto de Tony de Freitas. Crespo seguiu para o SMO, mas só começou a dar nas vistas por volta de 1973. Antes dessa data, é difícil “mapear” Mário no circuito das operações da Guerra Colonial.

Whiskies no Bar Bagdad, em Nampula

“Mário Crespo era alferes miliciano e esteve no gabinete do Kaúlza de Arriaga. Como falava muito bem inglês e fazia de tradutor, acompanhava as reuniões e fazia as traduções nos encontros com responsáveis da África do Sul e com a Rodésia”, relata o coronel Carlos Matos Gomes. Corria o ano de 1973.

Foi, contudo, com o major Mário Tomé que o atual pivô do Jornal das 9 viria a estreitar laços, proximidade que ainda hoje se materializa em almoços para debater ideias. “O Mário estava a cumprir o serviço militar, ele trabalhava no gabinete de Informação do comando e foi contemporâneo de Carlos Pinto Coelho”, conta o major. “Quando nos deslocávamos com o comandante-chefe Kaúlza de Arriaga, Mário fazia a ligação com os jornalistas ingleses e os órgãos de comunicação”, recorda.

Mas o melhor ficava para depois do trabalho. “Encontrávamo-nos por vezes num bar semiobscuro em Nampula, a beber um whisky depois do serviço. Era o Bar Bagdad”. Tanto em setentas como na atualidade, major Mário Tomé recorda “as conversas sempre muito íntimas”, onde não faltava “a crítica acesa à situação”. “Eram debates sobre o estado das coisas, falava-se sobre o mundo e das condições da guerra”, recorda. “Ainda hoje nos encontramos para almoçar, somos bastante amigos, mantivemos uma relação para além de algumas divergências em determinadas temáticas”, prossegue, sem especificar.

Os contos da África do Sul

Em vésperas da Revolução de Abril, Mário Crespo, que sai da tropa em fevereiro de 74, e a mulher mudaram-se para Joanesburgo. É aí que Eduarda Lacueva se cruza com Mário Crespo, no serviço de língua portuguesa no South Africa Broadcasting Coorpoation (SABC). “Eu comecei a trabalhar em fevereiro de 1974 e o Mário chegou pouco depois de mim. Curiosamente, saímos de Moçambique antes da Revolução. A função dele era receber telexes e lembro-me de que ele costumava escrever uns contos imaginados por ele na máquina de escrever que tínhamos no SABC”, recorda Eduarda Lacueva.

Sobre a veia literária de Mário Crespo, nada adianta. Mas lembra-se do “sentido de humor apurado” e do “talento para a escrita”. Mas não só: “Ele sempre foi muito polémico, sempre adorou uma bela guerra.” Mesmo tendo sido próxima do pivô, havia contudo um jornalista de quem Mário era mesmo muito chegado: “Ele andava sempre com o Ricardo Branco, até lhes chamávamos as manas”, diz Eduarda. Apesar das insistentes tentativas, não foi possível chegar à fala com este colega de longa data de Crespo.

Na SABC, relatou Mário em entrevista, conciliou a faculdade, Witwaterstrand [o meio académico frequentado por Helen] e a ascensão fulgurante na rádio. “Cheguei a chefe de redação na central da rádio, não na parte portuguesa. Digo isto com toda a arrogância, pesporrência e orgulho: fui chefe de redação da SABC e não era qualquer gajo que era”, disse ao Sol. Local onde se manteve, relata, até 1981. Nessa data, Mário faz as malas e regressa a Portugal, mas sem Helen. “Ele saiu daqui, creio, um pouco para se curar desse amor. Foi para Portugal, depois para a América e perdi o contacto”, afirma Lacueva.

Tony de Freitas soube do divórcio pela voz de Helen e teve dificuldade em refazer-se da surpresa. “Foi um desgosto muito grande para mim. Eles costumavam passar férias comigo em Durban e nada dava a entender tal coisa”, conta este investigador que ainda hoje agradece a Mário ter-lhe “salvo os filhos” por altura da revolta em novembro de 1974, em Moçambique. “Ele veio buscar a mãe a Joanesburgo e conseguiu vaga no comboio. Cheguei à plataforma com a minha mulher e os meus filhos e aquilo era a balbúrdia total. De repente, ouço alguém chamar-me e era o Mário. Pedi-lhe para levar os filhos e a minha mulher e ele ajudou-me. Foi a mão de Deus que o colocou ali.”

“Primeira notícia foi sobre África”

Chegou à RTP em 1982 e recorda-se de que a primeira notícia que escreveu “foi sobre África”, relembrou Crespo em tempos. Mário Zambujal tem outro tipo de memórias. “Costumo ver o Jornal das 9 [na SIC Notícias] e recordo-me da equipa da RTP que fazia o programa Fim de Semana. Era uma equipa forte, onde estavam também, entre outros, o Alcides Vieira, o Carlos Fino, o Joaquim Furtado, o Cesário Borga e o Jorge Simões.”

O jornalista e escritor diz à NTV que já na época em que iniciava carreira na RTP Mário Crespo era “muito sóbrio, tranquilo, mas com sentido de humor, e trabalhava impecavelmente”. Zambujal conta que “nunca houve qualquer conflito” na equipa que coordenava. “Apesar de haver pessoas de várias cores políticas, isso nunca afetou o relacionamento entre nós”, garante. O mesmo grupo trabalhou depois com Mário Zambujal no programa Semana Que Vem e a “boa relação” mantém-se até hoje. “Já me cruzei com ele na SIC umas duas ou três vezes e cumprimentamo-nos com alegria”.

João de Sousa foi convidado pelo próprio Crespo a integrar a equipa da RTP como correspondente de Moçambique. “Ele era muito exigente com os trabalhos e queria sempre que eu olhasse para a notícia não apenas de forma noticiosa, mas também pelo lado do comentário”, recorda este jornalista aposentado que chegou a receber “telexes dele a dizer que não tinha gostado deste ou daquele ponto na forma de abordagem e dava sugestões”.

Em 1986, Mário Crespo foi recrutado por indicação de Joaquim Letria para alternar com este a apresentação do Jornal das 9, na RTP2. “Curiosamente, é como se chama o jornal dele na SIC Notícias, mas já nada me espanta”, brinca o jornalista. “Comecei por apresentar o jornal sozinho, mas ao fim de algumas semanas tornou-se cansativo. Foi então que indiquei o Mário Crespo. Eu apresentava uma semana, ele outra”, recorda. Joaquim Letria acrescenta que a relação com Crespo “foi boa”, ainda que não mantenham o contacto. “Ocasionalmente, quando nos encontramos falamo-nos.”

Foi numa dessas conversas que Letria, mais tarde, ficou a saber que Crespo estava na prateleira da RTP. E arranjou-lhe trabalho na universidade onde lecionava.

Mário Fino e Carlos Crespo

Carlos Fino, que sucedeu a Crespo em Washington, não teve oportunidade de falar sobre o amigo com quem, nos anos 80, ia de férias para o Algarve com a família. Mas José Manuel Barata-Feyo lembra-se do tempo em que ambos, estando em polos opostos no mundo, não passavam um sem o outro. “Até diziam que era o Mário Fino e o Carlos Crespo”, recorda o jornalista, havendo quem se confundisse com os apelidos dos dois correspondentes, como no episódio que Barata-Feyo conta: “Eles eram muito amigos e uma vez em que coincidiram em Lisboa, viajaram até ao Algarve. A meio da viagem, foram mandados parar pela BT e foi uma confusão, porque a carta de condução do Carlos Fino era soviética e o carro do Mário Crespo tinha matricula sul-africana, além de que os polícias também não sabiam bem quem era um e outro. Já não sei se apanharam uma multa ou não”.

Amizades à parte, sucedem-se os relatos de relações difíceis na RTP. “Ele não é uma pessoa fácil”, conta à Notícias TV um funcionário da empresa pública. Este trabalhador, que pede para não ser identificado, justifica isso com “algumas cenas complicadas” protagonizadas por Crespo. “É conflituoso e tem uma relação difícil com algumas pessoas. Especialmente quando as mesmas estão abaixo dele, já que aos superiores tem respeito”. Uma outra fonte, também da RTP, recorda que Crespo “também passou por um mau bocado” quando regressou dos Estados Unidos. “Foram tempos muito complicados. Os correspondentes da RTP não são apenas isso, mas têm de gerir a delegação”.

Uma nova paixão

No plano pessoal, entretanto, Mário Crespo partilhava já a vida com a jurista Maria Leonor Alfaro, que sempre conhecera da sociedade de Lourenço Marques. “Ela tem menos dez anos do que eu. Conhecia muito bem a família dela. Frequentávamos o mesmo clube de vela de Lourenço Marques. Lembro-me de a ver no grupo”, recordou o jornalista ao Sol. Nestes anos 80, os Crespo viviam na Av. António Augusto de Aguiar, no centro de capital, e o jornalista tornava-se pai pela primeira vez de Ricardo, em abril de 1985. Hoje, Maria Leonor Alfaro e Mário Crespo vivem numa moradia, na Ajuda, mas a mulher também se escusou a prestar declarações para este trabalho.

Por essa altura, o pivô já teria um barco atracado em Belém. O jornalista Carlos Narciso conhece bem a paixão do pivô pela vela, que domina desde os 10 anos. “Velejei com ele duas ou três vezes. A vela é um escape fantástico”. Gosto que Mário tem partilhado com Garcia Pereira, seu advogado na batalha contra a RTP em finais de 90.

“A Capital” não era o seu aquário

Outubro de 1988 corria ao sabor do outono quando Mário Crespo foi pai pela segunda vez, de Eduardo, e entrou no jornal A Capital, pela mão de Francisco Pinto Balsemão, tendo dirigido o então vespertino até outubro do ano seguinte. “Quando o Balsemão comprou A Capital convidou o Mário Crespo para diretor”, recorda Áppio Sottomayor, que à época era chefe de redação, demitindo-se depois do cargo. “Ele apenas ficou um ano. A linguagem não era a mesma, já que ele era da televisão e não se sentia como peixe na água”.

Áppio Sottomayor recorda-se de Mário Crespo como “um diretor que vibrava muito com os acontecimentos e queria escrever cobras e lagartos”. A chefia de redação tinha de intervir “para pôr água na fervura”. Crespo tinha o seu gabinete, mas “passeava pela redação e tratava bem toda a gente. Ele era muito popular”. Só que ao fim de um ano, abandonou A Capital para retomar a carreira na RTP. “Não era o seu aquário e mudou de águas, regressando às lides televisivas”.

Washington: Louco por feiras de garagem

Televisão, sim. Mas fora de Portugal. Após um mês em Telavive e Jerusalém, Israel, Mário segue para a capital norte-americana. Primeiro sozinho, depois com a mulher, Leonor [tratada por Nora], a enteada Denise e os filhos Ricardo e Eduardo.

É nesses seis anos de trabalho para a RTP e conflitos com a estação pública que conhece Susan Henderson. Hoje, ela é chefe de operações da Associated Press, mas à data era responsável pelo gabinete da Eurovisão que albergava a delegação pública. “Começámos por ter algumas discussões por causa do tempo que ele dispunha para o satélite. Ele puxava sempre tudo até à última, por vezes era complicado”, recorda Susan à NTV.

Com o tempo, porém, foram acertando agulhas. “Ele sempre foi muito trabalhador, muito dedicado. Ao mesmo tempo, tinha um grande sentido de humor”, conta. Foi visita de casa em Cabin John, zona do estado de Maryland, perto do rio Potomac, e elogia Mário como um “homem muito apaixonado pela mulher e muito romântico”. Tinha, contudo, uma grande perdição: “Ele era doido pelas vendas de garagem que se faziam aos sábados, não parava de comprar tralha.”

Enquanto esteve nos Estados Unidos privou com o antigo correspondente da RTP Luís Pires – consta que “mesmo tendo revelado ser ateu”, Mário foi padrinho de batismo do filho daquele jornalista. Uma informação que o próprio Luís Pires não quis confirmar, por não ter querido falar sobre o seu antigo amigo. Luís Costa Ribas, antigo correspondente da SIC nos Estados Unidos, onde permanece agora como colaborador eventual da estação, também não quer recordar os tempos que conviveu com Crespo. “A nossa relação era profissional e estávamos aqui apenas para competir”, explica.

Susan Henderson tem saudades de Mário e lamenta a maneira como ele saiu de Washington, por altura de 1997 e a pedido da RTP. “Ele não estava seguramente preparado para ir embora, não foi uma fase fácil”, garante.

Grande desaire: não ter sido diretor na RTP

Mário nunca escondeu que foram os três piores anos da sua vida – até ir para a SIC – e ainda hoje é recorrente falar do caso. Foram anos em que lamentou não ter trabalho, ter sido isolado num local à margem da sede da RTP. Isto depois de ter apontado o dedo à estação pública de, por várias vezes, não ter exibido peças que chegara a enviar dos Estados Unidos e de ter havido confusões com dinheiros públicos.

Esta é a fase sobre a qual quem está do outro lado, na RTP, se recusa a falar. Sob anonimato, há quem descreva um Crespo que “mudou completamente depois de Washington. Assim que os chefes deixavam de lhe dar as coisas para ele fazer, ele anotava em papéis tudo o que as pessoas lhe diziam, até o bom dia'”, conta quem o acompanhou de perto.

Em 1999 chegou a ser suspenso por oito dias, sem auferir salário, por ter vindo a público denunciar gastos e relações privilegiadas entre um programa de Mário Soares e a fundação. “A administração chamava-o à atenção e ele considerava uma deslealdade”, responde uma das fontes contactadas.

Dois anos depois de ter começado a trabalhar na SIC Notícias, Mário Crespo surpreendeu tudo e todos ao declarar à TV Guia: “Adorava ter sido diretor da RTP”, considerando “uma das mágoas” não ter ocupado esse lugar. “A televisão pública prejudicou-se a si própria no processo do meu afastamento”, afirmou, reiterando que “não há perdão possível”.

Rangel deu-lhe emprego

Foi o próprio jornalista que pediu emprego a Emídio Rangel quando soube que este preparava um novo canal de notícias. Cansado de não fazer nada, Crespo pediu-lhe trabalho na SIC Notícias. Um pormenor que Emídio Rangel, diretor-geral em Carnaxide à data do caso, descarta, não minimizando o drama. “O Mário Crespo era jornalista na RTP, não tinha qualquer proximidade com ele, mas sempre me causou grande aflição ver um jornalista com bastante experiência e capacidade desempregado. Na altura, houve várias pessoas que me alertaram que ele estava a ficar doente por estar desempregado”, recorda Rangel, lembrando que não foi “nada difícil convencer a estrutura da SIC a aceitar Crespo” nas suas fileiras.

Os tempos na SIC correram de feição segundo uns, “não foi pacífica” segundo outros. Várias fontes contactadas pela Notícias TV afirmam que Mário Crespo “tem humor por vezes variável” e “ideias muito vincadas sobre o que considera ser importante”. “Mas muitas vezes basta uma conversa”, contemporiza quem o conhece, sendo muito afável com os “mais novos”.

A relação com o diretor do canal à época, Nuno Santos, era cordata. “Não se conheciam pessoalmente mas desenvolveram uma boa relação. O Nuno, que estava a criar a equipa da SIC Notícias, esteve com ele algumas vezes. Lembro-me de o Rangel ter dito ao Nuno que uma figura com o peso do Mário seria importante para uma redação tão jovem”, conta quem testemunhou.

Contactado, Nuno Santos, hoje diretor de Informação da RTP, e que nas últimas semanas não escondeu o seu desagrado pelas afirmações que Mário Crespo fez sobre a sua antiga empresa, não quer falar. Também Ricardo Costa, antigo diretor da SIC Notícias e agora no Expresso – palco de desavenças entre Crespo e Costa já durante este ano, levando à suspenção da crónica -, se reserva ao silêncio. Já o atual responsável do canal noticioso, António José Teixeira, descreve-o como “uma pessoa agradável, sempre com um sorriso”. “Ele inquieta-se com o seu tempo, procura encontrar boas razões para as coisas. É um homem exigente, culto, com ideias próprias e que também sabe ouvir.” Quanto a defeitos, “todos temos”, responde António José Teixeira, prosseguindo: “Não há um que sobressaia.”

Toca viola e canta êxitos dos anos 60

O responsável pela Informação do canal da Impresa, Alcides Vieira, também lhe elogia “o sentido de humor, uma grande bagagem cultural e grande paixão por livros e música”. Alcides é das poucas pessoas que conhecem uma das facetas do pivô da SIC. “Não gosto de falar da vida íntima das pessoas. Mas lembro–me de que fazia umas festas quando vivia na Parede, onde tocava viola e cantava”. O repertório musical do jornalista tinha por base os êxitos dos anos 60. “Lembro-me de o ouvir cantar Beach Boys, por exemplo. Toca bem viola e tem uma boa voz”, afiança.

Uma fonte da SIC que conhece bem Mário Crespo reconhece que este “deve ser o pivô mais pressionado em Portugal”. E esclarece: “O espaço dele é diferente do Telejornal e dos restantes jornais das generalistas. O Jornal das 9 é um espaço de cruzamento de opiniões, além de ter o seu cunho. Por isso é que o jornal se confunde com ele e o Crespo está sempre sob os holofotes da crítica.”

Política à mesa com Luís Marques

O diretor-geral da SIC não esconde a admiração que tem pelo pivô do Jornal das 9. “Temos uma excelente relação profissional porque ele tem qualidades que admiro numa pessoa. O Mário Crespo é um homem frontal, um bom jornalista e um jornalista com convicções. Há quem goste e quem não goste”.

Ainda assim, foi Luís Marques quem, na semana passada, falou com o pivô para que o episódio dos milhões da RTP “ficasse por aqui”.

Marques conta que a relação que tem com o pivô não se restringe à SIC. “Às vezes vamos almoçar e confesso que é alguém que me dá prazer”. Um dos temas que não falta à mesa “é a política, quer nacional quer internacional”. A relação entre o diretor-geral da estação privada e Mário Crespo começou na 5 de outubro.

“Quando fui para a RTP como administrador acabei por ser eu a resolver com o Mário Crespo e com o seu advogado o diferendo entre ele e a estação”, recorda. Agora, voltou a ser ele a “pôr água na fervura”, sobretudo depois das vozes críticas que se ouviram na RTP. Carlos Daniel e António Esteves lideraram o processo de indignação.

Para Luís Marques, as polémicas “nunca beliscaram” as relação do jornalista com a direção da estação de Carnaxide. “Umas são mais confortáveis para nós do que outras. Nunca foram uma dor de cabeça. O Mário Crespo é uma mais-valia para a SIC”, diz o responsável, apesar de, à boca cheia, pelos corredores de Carnaxide, haver quem comente os frequentes atritos entre Mário Crespo e outros jornalistas seniores. Confrontado pela Notícias TV com esses episódios, Rodrigo Guedes de Carvalho, subdiretor de Informação e pivô do Jornal da Noite, remete-se ao silêncio lapidar. “Sobre o Mário Crespo não falo”.

 

 

17/11/2011

RTP ÜBER ALLES*

O programa continua dentro de momentos.

*A RTP acima de tudo – em germanês.

“Não há dinheiro. Qual destas três palavras é que o Senhor Deputado não entendeu?” Foi assim que, em termos que considerei refrescantes, um dos actuais ministros, quando discutindo as difíceis opções em termos do que fazer perante a calamidade que se aproxima das costas portuguesas, se dirigiu a um dos parlamentares da oposição.

Na longa tabela do deve e haver das despesas que os sucessivos governos portugueses acharam por bem fazer, a RTP ocupa um lugar de destaque, apesar de, agora se sabe, estarem a aparecer outras entidades públicas ou publicamente detidas, com dívidas monstras nos seus balanços, cuja utilidade e desempenho são menos questionáveis.

A RTP ocupa um lugar de destaque porque sempre foi demasiadamente cara para o que serve, porque tem sido politicamente instrumentalizada para efeitos da manipulação da opinião pública e – principalmente – porque sendo hoje o negócio da informação e do entretenimento isso mesmo – um negócio – simplesmente não entendo porque é que um país falido, sem perspectivas, onera os seus contribuintes com o custo de manter uma loja de bijuteria comunicacional como é o mundo da RTP.

E, este ano, a verba aproxima-se dos quinhentos milhões de euros. Deixe-me o exmo. Leitor colocar a verba em numérico que tem mais piada: são 500.000.000 de euros. Num ano. Para manter a RTP.

Volto a esta questão por três razões.

A primeira razão, é que, supostamente, o governo português actual, por razões da falência próxima do Estado, tem que cortar em muito. Não há dinheiro. Tem que cortar muito e quanto mais depressa melhor. A RTP é um excelente lugar para fazer isso pois é desnecessária, supérflua e contribui zero para o PIB nacional. Ou melhor, contribui negativamente pois extrai dos bolsos dos contribuintes, anos após ano, centenas de milhões de euros.

A segunda razão é ideológica. Pensava eu que o papel de um Estado deixara de ser, desde o advento da era da internet, dos satélites e da comunicação em massas a um custo relativamente baixo, em que o acesso dos cidadãos à informação (seja esta noticiosa ou cultural e de entretenimento) está praticamente garantido, o de assegurar esse acesso a um custo fantasmaglórico, através de uma estrutura que é recorrentemente instrumentalizada para fins políticos menos claros. Pensava eu, também, que os senhores deste governo subscreviam essa tese.

A terceira razão é o que aconteceu quando ontem foi anunciada a conclusão de um estudo, liderado pelo conhecido professor universitário Luis Duque, sobre o que fazer com a RTP.

Do pouco que tomei conhecimento das conclusões desse estudo (estilo bullet points), essas conclusões apontam para uma reformulação de alguns dos serviços, tais como o fecho de algumas estações de cabo, as RTPs regionais, a fusão da RTP Internacional com a RTP África (descobriram a pólvora, aqui) e mais uns embelezamentos diversos. Ou seja, não fecha mas corta umas coisas menores. Por minha parte, nada contra, apesar de eu continuar a achar que aquilo devia ser simplesmente quase tudo fechado e os arquivos mandados para a Torre do Tombo.

Pois não há dinheiro e a gente não precisa de nada daquilo para nada.

Mas eis que surge o inédito, quando nada menos que o Miguel Relvas, o actual ministro dos Assuntos Parlamentares, uma das figuras indómitas da ideologia praguejada pelo actual executivo, surge nas televisões a desdizer as acções recomendadas pelo estudo anunciado. Que não, que não iam fazer nada daquilo, que ele até gostava muito da RTP, que a RTP fazia mais pela cultura que o Instituto Camões (olhem só o exemplo que ele foi buscar), que ele gostava muito da RTP desde os tempos de miúdo, quando ele via os bonecos animados importados a baixo custo da RDA para entreter os meninos do pós-25 de Abril e a Visita da Cornélia.

Fiquei de boca aberta.

Entretanto, todos os meses, tirando as dívidas monstruosas da RTP que vieram não sei bem de onde, quando pago a conta da electricidade (veja-se em baixo) pago uns 5% adicionais dessa conta para a RTP, incidindo sobre esse valor 6% de Imposto de Valor Acrescentado, a menor das tr~es taxas do IVA, que deve ser para dar um toque final de sacanice refinada.

E encontro esses canais perdidos algures na grelha de 130 canais que a Vodafone, agora com o seu novo sistema de cabo de fibra de última geração, canaliza para casa.

Assim, procurarei algum consolo em saber que, pelo menos, quando o país se afundar, fá-lo-á com a RTP.  Vai ser como o naufrágio do Titanic em 1912.

Só que desta vez pagaremos – com IVA a 6% – para podermos ver o naufrágio nacional ao vivo, em televisão estatal, apresentado pelo tal conhecido jornalista nascido em Moçambique, que nos vai piscar o olho direito sorrateiramente uma última vez, antes do pau da bandeira submergir, sob as águas geladas do esquecimento colectivo.

Isto é a parte das contas da minha conta eléctrica de Novembro de 2011. Veja o exmo. Leitor a parte em baixo, respeitante a "contribuição áudio-visual". Pois. Adoro quando chamam "contribuição" aos impostos.

06/12/2010

A IMPRENSA PARA AS MASSAS EM 2010

Filed under: Globalização, Imprensa Moçambique, Imprensa Portuguesa — ABM @ 3:46 pm

por ABM (6 de Dezembro de 2010)

Noé Nhantumbo resmungou elegantemente e em detalhe esta manhã no Canalmoz sobre o que ele considera alguma manipulação da agenda noticiosa nos mídia moçambicanos, sobriamente e sem nomear nomes. Ou porque não se quer chatear, ou porque (dizem-me que sim) toda a gente que ler a sua crónica sabe perfeitamente de quem e do que é que ele está a falar.

De certa forma, o que ele refere deixa-me algo perplexo, não tanto pela realidade que ele retrata, mas pela realidade que ele retrata e que é tão comum em quase todo o mundo.

Sim, em quase todo o mundo.

O que é surpreendente. É que, para quem tem algum dinheiro, alguma educação e especialmente um computador e acesso à internet, nunca foi o acesso imediato a tanta informação (incluindo este blogue) garantido e a tão baixo preço – por enquanto.

Mas a manipulação da informação global joga-se a dois níveis. Provavelmente a manipulação (ou, para ser mais simpático, “o estabelecimento de critérios editoriais para a sua disseminação”) a que Nhamtumbo se refere é a informação “de massas”: a televisão, a rádio (especialmente em África) e aos grandes jornais, concentrados nos principais aglomerados urbanos. Que se confecciona e é dirigida a um vasto grupo que provavelmente não tem interesse, não tem recursos ou não tem digamos a capacidade educacional-cultural de ir buscar outra coisa. Aí a tentação, especialmente por parte dos conglomerados económicos e e a elites políticas, em afectar de alguma forma o que sai pelos variados canais de distribuição, é quase absolutamente irresistível, independentemente de se esses meios sejam pública ou privadamente detidos.

Ou deverá dizer-se que a tentação para essa afectação é incontornável, já que esse comportamento faz parte da sua maneira de estar na sociedade?

Por uma razão ou outra, parece ser esse o caso, com as consequências previsíveis. Um interessante artigo escrito pelo académico português Francisco Rui Cádima sobre o tema e divulgado na “nova” revista Janus, agora generosamente acessível pela internet, com o título Televisões globais, história única, vai ao encontro do que Noé Nhamtumbo lamenta, mas a uma escala muito mais vasta, que inclui por exemplo, a referência à CNN e a uma das minhas estações favoritas (para análise apenas, isto é), o conglomerado de mídia português sustentado pelos contribuintes portugueses a um custo médio de um milhão de euros diários, chamado RTP.

Ou seja, com o tempo, tanto parece que mudou, e tão pouco parece que mudou, no apuramento da verdade e no aferimento da realidade.

Que, pese todo o investimento e toda a tecnologia, continua a ser uma arte, para quem produz, e para quem consome a informação.

22/10/2010

A LIBERDADE DE IMPRENSA EM 2010

por ABM (23 de Outubro de 2010)

A organização internacional Repórteres sem Fronteiras publicou um dos produtos por que é conhecida, o seu Índice da Liberdade da Imprensa 2010, que pode ser consultado aqui, bem como o texto do seu resumo, que faz leitura interessante e algo preocupante, especialmente no que concerne….a Europa.

Mas o que queria mesmo é ver como ficaram os países lusofónicos.

A hierarquia é compilada com base num questionário com cinquenta perguntas relacionadas com coisas como a censura à imprensa, o assassinato de jornalistas, maus tratos, aprisionamento de jornalistas, etc.

E, de entre os 178 países analisados, a classificação para este ano é, por ordem do mais para o menos livre (incluindo ainda a sua classificação para 2009):

Cabo Verde – 26º (44º em 2009) – subiu 18 lugares
Portugal – 40º (30º em 2009) desceu 10 lugares
Brasil – 58º (71º em 2009) – subiu 13 lugares
Guiné Bissau – 67º (92º em 2009) – subiu 24 lugares
Timor-Leste – 94º (72º em 2009) – desceu 22 lugares
Moçambique – 98º (82º em 2009) – desceu 18 lugares
Angola – 104º (119º em 2009) – subiu 15 lugares

(São Tomé e Príncipe não participou nas classificações)

Notas:

1. Cabo Verde ficou à frente de países como a França, a Itália e a Espanha

2. O país africano com a mais elevada classificação é a Namibia, que ficou em 22º lugar (seguido por Cabo Verde)

3. Classificações dos vizinhos de Moçambique em 2010:

África do Sul – 38º
Malawi – 79º
Zâmbia – 82º
Lesotho – 90º
(Moçambique – 98º)
Madagáscar (grande filme) – 116º
Zimbabué – 123º
Suazilândia – 155º

4. Classificações de países interessantes de saber:

Alemanha – 17º
EUA – 20º
Grécia – 73º
Índia – 122º
Rússia – 140º
Cuba – 166º
China – 171º

20/10/2010

UMA VISÃO GERACIONAL SOBRE MOÇAMBIQUE

Filed under: Imprensa Portuguesa, Portugal-Moçambique — ABM @ 11:42 pm

O símbolo corporativo da portuguesa Televisão Independente

por ABM (20 de Outubro de 2010)

Para os exmos. Leitores que não viram e que têm internet mais ou menos a sério, em baixo uma reportagem de 35 minutos feita há umas semanas sobre algo em Moçambique, a que alguém escolheu dar o nome (que é o da reportagem) de Geração de Viragem.

Confesso que, para além do alegórico das imagens habituais e do abundante cut and paste e acompanhamento musical exótico-africano, não percebi bem qual era o fio da meada nem a relação entre o que vi e o título.

Mas se calhar é só coisa minha.

Lá mais uma vez comparece em farta abundância o incontornável, o indomável, o insaciável, o inevitável Embaixador de Moçambique at large, o eminente escritor e biólogo (ou é biólogo e escritor?) Mia Couto. Que, mais uma vez, nos mata a todos com amor.

E aquele fim, aquele fim tão prenho de imagens de emoção silenciosa e pingante do António Peres Metello (que de outro modo é cinco estrelas), que parece que paga do seu bolso a educação duma jovem moçambicana…. fiquei quase, quase, rendido.

Foi, simplesmente….embevecedor.

É isso. Fiquei embevecido.

E para o exmo Leitor ver se se embevedece também, prima AQUI, depois com o rato prima a seta no vídeo e veja o documentário.

Esta peça foi para o ar na passada segunda-feira na TVI em Portugal continental, logo a seguir ao noticiário deles.

17/08/2010

HABEMUS PETROLEUM ?

Uma torre de petróleo no Texas dos bons velhos tempos

por ABM (17 de Agosto de 2010)

Durante todo o dia de hoje, fui electronicamente bombardeado com “notícia” da confirmação da descoberta de petróleo na região de Pemba.

Algumas agências noticiosas citavam como fonte a empresa texana Anadarko (que, de acordo com um recente comunicado de imprensa, is the operator with an approximate 43-percent paying interest in the well. Co-owners in the well are BPRL Ventures Mozambique B.V. (11.75 percent), Cove Energy Mozambique Rovuma Offshore, Ltd. (10 percent), Mitsui E&P Mozambique Area 1, Limited (23.5 percent) and Videocon Mozambique Rovuma 1 Limited (11.75 percent). Empresa Nacional de Hidrocarbonetos, ep’s 15-percent interest was carried through the exploration phase).

Mas outras notas de imprensa indicavam a fonte da informação como a actual ministra dos Recursos Minerais, Esperança Bias. Outras ainda indicavam que a Anadarko fez o anúncio e que a ministra confirmou.

Tendo ir ver o sítio das notas de empresa da Anadarko, confirmei que na realidade a Anadarko nada publicou desde o dia 9 de Agosto, dia em que comunicou o preço para uma emissão de papel comercial de 2 mil milhões de dólares.

De facto,o último comunicado da Anadarko relativo a Moçambique data de 18 de Fevereiro deste ano e diz mais ou menos o que agora terá sido “anunciado” ainda não sei bem por quem.

O ponto da questão desta minha nota era aferir em que consistia realmente esta “descoberta” de petróleo no mar ao largo de Pemba (na realidade, o furo Windjammer dista a 50 kms da costa moçambicana e o furo tem uns 3.5 kms de fundo, feito a uma profundidade de cerca de 1400 metros. Não fica exactamente na esquina ali ao lado).

Que há mais do que traços da presença de petróleo na região já se sabe há muito tempo. A questão é saber se as prospecções apontam para uma quantidade comercialmente apetecível face ao gigantesco investimento, ou não (e quanto a isso, fiquei na mesma).

Mas, em vez disso, a “história” para mim passou a ser esta confusão toda e este mistério de quem disse o quê e o que foi dito. Surpreendente, dada a gravidade do assunto e o elevado perfil das entidades envolvidas, e ainda a quantidade de agências noticiosas metidas.

Parece-me que este é um caso para chamar os senhores da Ferro & Ferro para tomarem conta da ocorrência.

06/08/2010

JOSÉ PEDRO CASTANHEIRA

Filed under: Imprensa Portuguesa — ABM @ 5:06 am

Edward R Murrow, um ícone do jornalismo norte-americano

por ABM (6 de Agosto de 2010)

A morte de Mário Bettencourt Resendes veio salientar a minha constatação quanto à crescente precariedade e preciosidade, no actual jornalismo português, daquela mistura de qualidade, experiência, perspectiva, objectividade, independência e honestidade frontal que faz desta actividade profissional uma das mais nobres e quiçá importantes da vida social e política modernas. Mário Crespo também está lá. E também uma jornalista da SIC que tem enorme potencial (não sei o nome dela).

Mas pouco mais. Pelo menos mais um.

A entrevista que deu na estação por cabo TVI24 na madrugada de 6 de Agosto (programa Livraria Ideal, excelentemente apresentado por João Paulo Sacadura), veio recordar-me que esses elevados padrões de jornalismo existem e estão de saúde na pessoa de José Pedro Castanheira (JPC).

Para quem tem o azar de não saber, JPC faz jornalismo há uns 40 anos e há 20 que é jornalista (sob a designação de “repórter principal”, que espero queira dizer que receba mais umas massas no fim do mês) no semanário Expresso, de Lisboa, sendo a meu ver uma das suas maiores valias, ainda que algo sub-aproveitado, pois se JPC fosse americano ele hoje já estaria na equipa do 60 Minutes e teria uma bruta equipa e orçamento para fazer aquilo que eu acho que seria um serviço crítico a Portugal, seguindo os passos do grande Edward R Murrow (o senhor que está lá em cima a ler uma revista e que é um ícone do jornalismo norte americano e uma inspiração para mim e mais algumas pessoas, espero).

Na breve entrevista, José Pedro Castanheira explicou o problema da sua área de especialidade, que é simples.

Sobre isso, falo mais abaixo.

A sua presença no programa foi a propósito de um estudo que fez e agora publicou, sobre um tal José Aires de Azevedo, sob o título Um cientista português no coração da Alemanha Nazi, que à partida parece ser uma versão portuguesa do Dr. Mengele e que fez pesquisa clínica sobre “higiene” racial, a pureza da raça e essas coisas exóticas, muito na moda nos círculos de Hitler e em muitas partes da Europa nos anos 30 do século passado, onde se buscavam bases científicas para justificar porque é que as pessoas de raça branca estavam, e deviam estar, no topo da cadeia alimentar humana. Em 1943 Azevedo regressa a Portugal e basicamente é ostracizado e desaparece do mapa, queixando-se JPC que a família dele, que ainda anda por aí, fugiu dele (de JPC) aceleradamente, sabe-se lá porquê, deixando a história mais ou menos a meio (se calhar não acham lá muita piada ao que o seu antepassado andou a fazer, pois o tema estes dias é políticamente incorrecto).

JPC referiu ainda um assunto, uma outra história quase inacreditável, que tem vindo a analisar, sobre Annie, que, revela, foi a única filha do conhecido major Fernando Silva Pais, o número um da Pide nos últimos tempos da II República (aka “Estado Novo”) que às tantas casou-se com um diplomata suíço, que entretanto foi transferido para Cuba em 1959 e que, só para chatear, apaixona-se assolapadamente pelo liricismo da revolução comunista ocorrida então naquela ilha, e ficou lá a viver, participando alegremente nos seus rituais, desde andar em comícios fardada de verde à Fidel, a, de rabo para o ar, apanhar cana de açúcar de catana na mão na altura das colheitas, para ajudar la Révolución. Entretanto Silva Pais estava em Lisboa em cima da Pide a proteger a ditadura liderada sucessivamente pelos dois professores e a dar porrada em tudo o que estivesse à esquerda da direita, que, a acreditar no que se lê, era o país inteiro. Ela só vem a Portugal em 1974, depois do 25 de Abril. Foi ver o pai na prisão de Peniche, onde ocorreu um reencontro emocional. Ela aparentemente adorava o pai mas não a mãe.

Para saber mais, o exmo leitor vai ter que se comprar o livrinho de JPC.

Mas a parte da curta entrevista que me fez pousar a chávena de chá (o João Paulo Sacadura bem tentou mas com meia hora para incendiar e deitar os foguetes fez o que pôde, eu podia ficar a ouvi-los mais três horas) foi quando JPC falou da sua actividade profissional e proferiu uma frase quase murrowiana: referindo-se ao jornalismo actual em Portugal, disse qualquer coisa como “o estado da imprensa é o melhor termómetro do estado da democracia” – sugerindo em seguida que algo anda mal em Portugal.

E referiu fenómenos e tendências que infelizmente são facilmente constatáveis aqui do lado de quem consume o seu produto; a rápida tabloidização da grande imprensa portuguesa, o reforço do jornalismo sensacionalista e popular(ucho) – que ainda por cima tem a vantagem de ser muito mais barato e, pelo sensacionalismo (rasca) que lhe está associado, tem mais impacto. Diz ainda que o tempo presente é um desafio para o jornalismo de investigação, que é muito mais caro, e requer um tipo de abordagem que exige muito mais dos seus profissionais, pois não permite abordar os temas apenas pela rama, abordagem que estes dias é o pai nosso de cada dia.

Na televisão então é uma praga.

O que ele não disse, mas que para mim decorre, é que o negócio do jornalismo português, sendo cada vez mais corporativo e empresarial (já lá vão os tempos em que os jornais e as estações de televisão tinham um patrão e dono, que, bem ou mal, decidiam os seus alinhamentos) procura originar o produto o mais barato possível e que gere a maior receita possível (custo do programa a dividir por share de audiência mais receita publicitária agregada igual a lucro) sendo que, como membro da comunidade empresarial, terá assim a tendência de mais facilmente procurar consensos com a restante comunidade empresarial e os governos da casa. Os resultados directos são a prostituição da actividade, o debilitar do debate público e o enfraquecimento da vivência democrática.

Nos últimos quinze meses tem-se assistido a claros indícios desta tendência.

No caso da TVI, tudo indica que foi uma negociata: o negociar da conveniência editorial à conveniência política, com umas trocas de participações pelo meio e o expelir do casal Moura Guedes/Moniz de uma organização.

E não só aqui. Na mitológica CPLP (Brasil e Cabo Verde excluídos), onde imperam regimes que um estudo publicado a semana passada no Economist classificava como (em inglês, sorry) authoritarian ou flawed democracies, com poucas excepções, a tendência é ainda mais acentuada para se praticar um jornalismo mais cor de rosa, positivista, desenvolvimentalista, situacionista. Quantas Prisas e TVI’s há por lá.

Mas isto é apenas um pensamento.

Apesar de apenas ter tido tempo de referir apenas alguns tópicos, o que JPC abordou esta noite merece séria reflexão.

Por exemplo, imagine o exmo Leitor Edward R Murrow a investigar o chamado Caso Freeport.

Seria uma festa.

E para variar, por uma vez, credível.

02/08/2010

MÁRIO BETTENCOURT RESENDES

Filed under: Imprensa Portuguesa — ABM @ 5:14 pm

por ABM (2 de Agosto de 2010)

Triste muito fiquei de conhecer hoje a morte de Mário Resendes. Em parte porque tive a sorte de o conhecer e de com ele privar uns breves, iluminados, quiçá alegres, momentos. Em parte, pela sua incontornável obra como jornalista e como comentador, primeiro no Diário de Notícias de Lisboa, depois um pouco por toda a parte, notavelmente como comentador televisivo, com a sua voz meio rouca, sempre analítica e informada, com um certo distanciamento, talvez até sorrateiro, piscando o olho a quem o ouvia, convidando a pensar e a mastigar a realidade que hoje nos entra pela casa dentro, com os múltiplos filtros com que terceiros a impregnam.

Num toque mais pessoal, vislumbrava a sua açorianidade, aquela maneira de estar tão visível e tão intangível ao mesmo tempo, para quem não a conhece como eu aprendi a conhecer, esta transplantada para a urbanidade metropolitana de Lisboa.

Mário Resendes fez a ajudou a fazer o jornalismo português mais solto e equilibrado no pós-25 de Abril, difícil numa era que não foi de menos extremos do que a que a precedeu. No jornal que dirigiu após Mário Mesquita, recorde-se, houve o episódio de José Saramago, hoje celebrado, mas então empenhado nas suas lutas ideológicas, raivoso e virulento como sempre, mas então sem a idade, sem a perspectiva, e sem Pilar. Foi o exibir do talento e do génio ao serviço do mal. O bom jornalismo não era isso, e levou anos antes que outros valores, trazidos por pessoas como Mário Resendes, lentamente, começassem a ser praticados, sempre tenuamente, sempre sob ameaça, como agora.

Vou sentir a falta da sua presença. Já a sinto.

28/02/2010

O NUNO, O ZÉ, A CNN E O GOOGLE

por ABM(28 de Fevereiro de 2010)

Isto é apenas uma memória domingueira.

Quando em 1990 vim viver temporariamente para Portugal (mais uma vez), mas desta vez dos Estados Unidos, em termos comunicacionais Portugal ainda estava, comparativamente falando, na idade média.

Já nessa altura, em Cambridge, uma cidadezinha vizinha de Boston, eu tinha em casa televisão por cabo com acesso a uns cem canais, incluindo a CNN. A internet ainda era ficção científica para a quase totalidade da humanidade e o melhor que havia para enviar informações era um aparelho de fax, que eu de facto tinha em casa desde 1988 (pago a peso de ouro) para enviar semanalmente as crónicas que eu escrevia para um pequeno jornal local, que preparava num computador Apple e imprimia numa impressora laser (dantes, escrevia numa máquina de dactilografar e mandava os textos pelos correios).

Em Portugal nessa altura quase ninguém tinha aparelhos de fax em casa, quando muito surripiavam uns aos amigos às escondidas, no emprego. Quase ninguém tinha um computador em casa e mesmo no emprego ainda era uma coisa muito rara. Impressoras laser, nem pensar. Não havia televisão por cabo e as notícias eram aquilo que a RTP decidia que eram notícias e o que os jornais publicavam, com imagens a preto e branco, consoante o partido ou a tendência ideológica dos seus patocinadores.

Meia dúzia de privilegiados (eu incluído, num decrépito apartamento na baixa de Lisboa) possuiam um gigantesco prato no telhado, de onde, com considerável dificuldade técnica, sintonizavam meia dúzia de canais por satélite, entre as quais a CNN. Apesar das minhas explicações, as minhas vizinhas octagenárias com bigode receavam ser afectadas pelos raios de micro-ondas emitidos pela antena e discutiam se eu obtivera uma autorização do governo para meter aquilo ali.

Na televisão portuguesa, o José Rodrigues dos Santos iniciava com alguma dificuldade a sua carreira como jornalista televisivo, depois de uns tempos como correspondente da BBC e fazendo uns biscates para a RTP e a CNN.

Na altura, em média, a população portuguesa via a RTP, ouvia a Rádio Renascença e lia o Diário de Notícias. Tudo num vago manto de cinzentismo em que se destacavam a erudição arrogante do Expresso e o espalhafato gozão do Independente. Aníbal Cavaco Silva há poucos anos surgira do nada e em breve terminava o seu segundo mandato como primeiro ministro e com uma maioria absoluta.

Em Portugal nessa altura choviam diariamente milhões de contos (na altura eram contos) da CEE e uns dias antes da segunda eleição parlamentar no fim de 1991, Portugal inaugurava aquilo que eu chamaria – citando a legendária frase de Alan Greenspan, então chairman do Federal Reserve Board norte-americano – a sua fase inenarrável de irrational exuberance – preparando a fase seguinte do desastre socialista e da longa estagnação da economia portuguesa. Pouco depois houve o orgasmo celebratório nacional prematuro chamado Expo 98, em que os portugueses decidiram que finalmente valia a pena mesmo ser-se português.

As ratazanas do regime refastelavam-se e enchiam as barrigas e as contas offshore.

E logo a seguir começou a lenta, penosa, dolorosa travessia do deserto moral, social, fiscal e económico. Na verdade, na altura ninguém deu por nada, pois estava-se a entrar na Era dourada do Euro, das taxas baixas, das casas compradas com um telefonema ao amigo no banco, dos carros bons ao preço da uva mijona, da gasolina a metade do preço da Coca-Cola . Inflamado com o sucesso da nova auto-estrada A1 (wow, Lisboa ao Porto em duas horas em vez de seis horas num caminho de cabras) e com a novidade do acesso aos mercados de capitais estrangeiros, o governo decidira que a coisa decente a fazer a seguir era construir mais auto-estradas para tudo quanto é de sítio, de Bragança para Beja, de Viseu para Aveiro. E mais um aeroporto. E mais pontes, e mais, e mais.

Tudo concessionado, tudo em parcerias público-privadas, tudo em regime de gasta-agora-paga-depois.

Tudo e todos, governos, pessoas, empresas, recorrendo alegremente ao crédito, desta vez o estrangeiro. Foi o novo Brasil, a nova África. Passou a ser normal o até o braquicéfalo do vizinho atrasado mental brogesso que não pagava o condomínio ir fazer férias na neve em Março e apanhar banhos em Cuba em Maio. Passou a ser normal falar-se em projectos de milhões como se fosse a coisa mais natural do mundo. A propaganda socialista, alternada com a complacência da oposição, declamava a chegada da nova era de prosperidade e justiça social. Bairros da lata inteiros eram demolidos e nas televisões via-se a senhora cigana ressabiada a receber as chaves para o seu apartamento novinho em folha, pago pela generosa partilha da prosperidade apercebida dos contribuintes. Sócrates até inventou mais tarde regras para dar aos pobres dinheiro dos nossos impostos só por o serem.

Pois afinal nós éramos ricos. Não?

Foi uma festa.

Só que ninguém estava a pagar a conta.

Em Moçambique, a Renamo e o que restava da Frelimo ainda se tentavam decapitar, apesar dos ventos de 1989 soprarem fortemente. Num subúrbio de Roma, em breve, sem ninguém reparar, a liderança da Frelimo, muito mais bem preparada e conectada, negociaria a sua vitória.

A modernidade comunicacional portuguesa começou na madrugada de 16 de Janeiro de 1991, quando, a propósito da decisão do ditador iraquiano Saddam Hussein de invadir a obscura e medieval ex-colónia do Kuwait uns meses antes, os Estados Unidos decidem ripostar com uma formidável “Coligação dos Justos” e um ataque directo ao Iraque, antes que este invadisse a Arábia Saudita e nos tivesse a todos bem agarrados pelos petrolíferos tomates.

Os locais comentaristas da treta, futuros quadros dos blocos da esquerda, acusavam isto de ser uma nova manifestação do neo-imperialismo americano. Estúpidos, declamavam sem saber: “nós portugueses não precisamos do petróleo para ter democracia e prosperidade”. Nessa noite a RTP interrompe a sua emissão regular e começa a passar dez horas seguidas de imagens do bombardeamento aéreo dos Estados Unidos a Bagdad feita pela CNN.

Para a CNN, do meu colega de faculdade Ted Turner, a cobertura da guerra do Iraque foi a coroação da sua estratégia de globalização. Fundada em meados de 1980 a partir de uma obscura e medíocre “super-estação” meio pirosa do estado norte-americano da Geórgia, a WTBS, que era do pai e que fora a primeira estação a emitir por satélite para todos os Estados Unidos, através das crescentes redes de satélites e de cabo que proliferavam pelos EUA, a CNN inaugurava a era das notícias internacionais por televisão, 24 horas por dia.

Em Portugal, cujos hábitos noticiosos televisivos eram mais do que questionáveis, duma formalidade doentia e de conteúdos quase estritamente governamentalizados, geridos por profissionais feitos a pulso (ainda não ocorrera a explosão de cursos de “comunicação social”) o súbito surgimento do novo formato foi um choque.

Claramente, as pessoas reagiram ao imediatismo fulgurante das bombas a caírem no terreno do Senhor Saddam ao vivo nas suas salas de visita e colavam-se horas a fio a tentar perceber o que é que o senhor da CNN dizia, no que o jovem jornalista José Rodrigues dos Santos assistia, traduzindo isto e aquilo.

Mas rapidamente, e face ao feed constante das imagens e das informações vindas de todas as capitais relevantes do mundo, tornou-se necessário haver algum debate e contextualização feitos em casa e em língua portuguesa. E é aí que surge do nada um novo herói da televisão portuguesa: Nuno Rogeiro.

Em 1991, Nuno Rogeiro era, por falta de melhor definição, uma espécie de equivalente televisivo da máquina de pesquisa Google. De fato e gravata e com uma trunfa característica, o então professor, cronista e comentador (não haviam então sites, nem blogues nem redes sociais nem jornais online) surgia sempre oportunamente nas câmaras da RTP (a SIC e a TVI ainda estavam na fase de planeamento e não havia Zon TV Cabo nem telemóveis populares nem nada disso) e cobria a ignorância mentacapta de quase todos os jornalistas a soldo da estação, discorrendo longa e livremente sobre tudo: onde ficava o Iraque, quem era Saddam, o que dizia Bush pai, porque é que os americanos atacavam pelo Sul e não pelo Norte, quantos aviões estavam envolvidos nos raids aéreos, o que é que a Turquia iria fazer. Tornou-se inesquecível nessa altura quando, a propósito de ter dado a Saddam para atirar uns mísseis de médio alcance chamados Scud para dentro do território de Israel, faz na televisão descrições detalhadas do que eram os Scud, para que serviam os Scud, quais eram as suas atribuições técnicas e alcance, que tipo de carga podiam levar.

Isto hoje é tudo pré-história. Rogeiro evoluiu, cortou o cabelo e tem um programa de entrevistas muito interessante na SIC e escreve umas coisas na Sábado. Toda gente em Portugal hoje tem telefones móveis, televisão por cabo em casa, computadores, internet e canais de notícias nacionais e estrangeiros à distância de um toque no aparelhinho de controlo remoto. José Rodrigues dos Santos consagrou-se e continua a ler as notícias enquanto vende livros sobre mega-conspirações. Como Santana Lopes, a CNN ainda anda por aí.

Nós temos o Maschamba.

Desses tempos, só fica a asfixia da vasta dívida acumulada, da quase falência do governo, das decisões que vão ter que ser tomadas e agora o poder executivo nas mãos periclitantes do governante mais mediático-dependente de toda a história de Portugal.

Para acompanhar os próximos episódios e o desfecho desta saga, agora podemos, a partir do sofá em casa e no computador, ver tudo a cores e ao vivo, e ler as opiniões e aferir os factos.

Só nos falta fazer isso com uma boa dose de desassombro, e de bom senso. Para o futuro que se avizinha, estes serão atributos para os quais não há tecnologias e nem riqueza que valham.

Um bom domingo a todos.

12/02/2010

MANIFESTO PELA LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Filed under: Imprensa Portuguesa, Politica Portuguesa — ABM @ 1:56 am

Aspecto de uma das t-shirts exibidas na manifestação em frente à Assembleia da República

por ABM no texto e MVF nas fotos (São Bento, Lisboa, 11 de Fevereiro de 2010)

Pelo menos cinco Maschambeiros compareceram ao princípio da tarde para participar na manifestação, para que foram convocados os signatários de um grupo onde já pontificam cerca de vinte mil nomes, em sinal de preocupação com as alegadas esforços de violação ao direito à liberdade de expressão.

ABM, Pedro S, Jaime S, Marta R e Miguel VF aproveitaram o lindo sol (o astro, não o jornal) que se fazia sentir à hora de almoço para se juntarem aos cerca de cem manifestantes e um número considerável de profissionais da comunicação social, para criarem o que foi um evento algo mediático, dado não só o tópico, mas a tensão daquele momento, sendo que por essa hora já se sabia de uma decisão de um tribunal local de procurar impedir o Sol (o jornal, não o astro) de amanhã publicar uma segunda série de revelações relacionadas com supostos esforços do actual executivo de influenciar o que sai nas notícias em Portugal.

A decisão do tribunal foi solicitada por um administrador do Grupo PT com ligações ao PS, com vista a proteger o sigilo do conteúdo das conversas havidas em torno dos esforços do executivo de Sócrates de afectar o tratamento das notícias na estação de televisão da TVI. Recorde-se (já mencionado neste blogue) que desses esforços resultou a saída de José Eduardo Moniz e a extinção de um programa de notícias da responsabilidade da jornalista Manuela Moura Guedes, ambos ostensivamente hostis ao governo do dia e em particular ao PM.

O esforço, primariamente dos organizadores do grupo de apoiantes de Mário Crespo do Facebook, resultou, na medida em que os media reproduziram as preocupações expressas pelos presentes com a liberdade de expressão.

Houve algumas desinteligências na missão Maschambiana. Miguel VF não conhecia ninguém, que não o conhecia a ele (a nossa prezada initimidade é prezada mas é recente), Marta R veio sem avisar e estava do outro lado da manifestação, ABM, Pedro e Jaime enganaram nas horas e chegaram cedo uma hora, pelo que decidiram passar essa hora a comer rissóis e sandes de peixe espada com Coca Cola numa tasca boa e baratinha mais acima na rua de São Bento,  mesmo em frente à casa onde viveu Amália Rodrigues, e depois ficaram sentados mais ou menos à frente da Fundação Mário Soares, a banharem-se no sol (o astro) enquanto os manifestantes se iam congregando.

O aparato de carros-satélite de televisão e de polícia e de barreiras era quase caricato para um grupo eminentemente pacífico e erudito. A manifestação acabou por ser uma pacata conversa entre jornalistas, os líderes da pandilha e o ocasional político ou activista que produziu meia dúzia de sound e video bytes para as cadeias.

Por volta das 14 horas todos arrumaram as botas e foram para casa ou de volta para o trabalho.

Entretanto é meia-noite e o Sol está nas bancas com mais revelações.

As fotos:

A manifestante número 1 (foi a primeira a chegar)

A peitção do grupo em defesa da liberdade de expressão

Aspecto dos manifestantes em frente à Assembleia da República

Mais um aspecto da manifestação

Dentro da AR, o parlamento debatia e aprovava o orçamento de Estado para 2010, que foi aprovado e o tal que é suposto "baixar" o défice para 8.5%

As carrinhas das estações de televisão em frente ao edifício parlamentar (foto ABM)

As carrinhas das estações de televisão estavam em peso em frente à AR

ABM bebe água do Luso e posa em frente à Fundação Mário Soares, em frente à AR (foto JS)

Adenda de jpt: quem quiser ver a “nossa” Marta na manifestação é espiar aqui.

03/02/2010

SOBRE MÁRIO CRESPO

por ABM (Alcoentre, aos 3 de Fevereiro de 2010)

Mário Crespo, o único anchor a sério de uma cadeia de televisão que existe em Portugal em 2010 (made in Moçambique, ao contrário do outro, que é bom mas nada que se compare) escreveu um artigo de opinião muito sério que um jornal da cidade do Porto se recusou a publicar, pelo que ele saiu num obscuríssimo canto duma obscura fundação por obscura razão. Parece-me que o  jornal do Porto perdeu um furo dos antigos. Vá-se lá entender.

O que ele escreveu:

Terça-feira dia 26 de Janeiro. Dia de Orçamento. O Primeiro-ministro José Sócrates, o Ministro de Estado Pedro Silva Pereira, o Ministro de Assuntos Parlamentares, Jorge Lacão e um executivo de televisão encontraram-se à hora do almoço no restaurante de um hotel em Lisboa. Fui o epicentro da parte mais colérica de uma conversa claramente ouvida nas mesas em redor. Sem fazerem recato, fui publicamente referenciado como sendo mentalmente débil (“um louco”) a necessitar de (“ir para o manicómio”). Fui descrito como “um profissional impreparado”. Que injustiça. Eu, que dei aulas na Independente. A defunta alma mater de tanto saber em Portugal. Definiram-me como “um problema” que teria que ter “solução”. Houve, no restaurante, quem ficasse incomodado com a conversa e me tivesse feito chegar um registo. É fidedigno. Confirmei-o. Uma das minhas fontes para o aval da legitimidade do episódio comentou (por escrito): “(…) o PM tem qualidades e defeitos, entre os quais se inclui uma certa dificuldade para conviver com o jornalismo livre (…)”. É banal um jornalista cair no desagrado do poder. Há um grau de adversariedade que é essencial para fazer funcionar o sistema de colheita, retrato e análise da informação que circula num Estado. Sem essa dialéctica só há monólogos. Sem esse confronto só há Yes-Men cabeceando em redor de líderes do momento dizendo yes-coisas, seja qual for o absurdo que sejam chamados a validar. Sem contraditório os líderes ficam sem saber quem são, no meio das realidades construídas pelos bajuladores pagos. Isto é mau para qualquer sociedade. Em sociedades saudáveis os contraditórios são tidos em conta. Executivos saudáveis procuram-nos e distanciam-se dos executores acríticos venerandos e obrigados. Nas comunidades insalubres e nas lideranças decadentes os contraditórios são considerados ofensas, ultrajes e produtos de demência. Os críticos passam a ser “um problema” que exige “solução”. Portugal, com José Sócrates, Pedro Silva Pereira, Jorge Lacão e com o executivo de TV que os ouviu sem contraditar, tornou-se numa sociedade insalubre. Em 2010 o Primeiro-ministro já não tem tantos “problemas” nos media como tinha em 2009. O “problema” Manuela Moura Guedes desapareceu. O problema José Eduardo Moniz foi “solucionado”. O Jornal de Sexta da TVI passou a ser um jornal à sexta-feira e deixou de ser “um problema”. Foi-se o “problema” que era o Director do Público. Agora, que o “problema” Marcelo Rebelo de Sousa começou a ser resolvido na RTP, o Primeiro Ministro de Portugal, o Ministro de Estado e o Ministro dos Assuntos Parlamentares que tem a tutela da comunicação social abordam com um experiente executivo de TV, em dia de Orçamento, mais “um problema que tem que ser solucionado”. Eu. Que pervertido sentido de Estado. Que perigosa palhaçada.

O que eu acho que Mário Crespo na verdade queria dizer em vez do que escreveu em cima (ou complementarmente):


http://www.youtube.com/v/QQs316I1awE&hl=en_GB&fs=1&


Eu sei como é.

10/01/2010

THE BEST OF ISABELA FIGUEIREDO

o horizonte nos contempla

por ABM (Alcoentre, 9 de Janeiro de 2010)

Fernanda Câncio, a putativa (segundo certa imprensa) namorada do actual primeiro-ministro português, José Sócrates, e fogosa escriba num Diário de Notícias infelizmente cada vez menos de referência, escreveu um curioso texto – que saiu na sua edição de hoje – sobre uma sra chamada Isabela, que, depreendo da leitura, como muitos de nós saiu um pouco a pontapé do Moçambique pós- independente e revolucionário aos 12 anos de idade, e sobre um livrinho que ela escreveu e que acabou de ser publicado, que dá pelo nome algo enigmático de Caderno de Memórias Coloniais.

Que não li.

Mas li o comentário de Câncio, que sempre vale alguma coisa e que me deixou algo mistificado.

Vamos por partes.

Deixou-me algo mistificado porque a Fernanda que, como já vi outras pessoas dizer noutras ocasiões, deve perceber tanto da realidade colonial como eu de física nuclear, começa por colocar legiões de “retornados” num vasto manicómio virtual, todos mentirosos e todos vivendo numa ilusão colectivamente induzida com o fito de não enfrentar uma inconfessável série de “crimes contra a Humanidade”, que, lá vai o argumento, só pode ser o que (no meu caso) os nossos pais e avós andaram todos lá pelas Áfricas durante séculos a cometer contra os nativos. Voluntária e até empenhadamente e, no caso do pai da Isabela, com requintes de malvadez.

Isso a acrescentar àquela outra Grande Ilusão Colectiva dos brancos e portugueses da África portuguesa (nunca os de cá, coitados) claro, a de que aquilo era “nosso”. Que se sabia perfeitamente que não era, especialmente a posteriori.

Bem, todos – especifique-se – menos a sua amiga Isabela.

No seu caso, Fernanda diz que a Isabela baseou os Cadernos nos seus escritos, alguns dos quais foi colocando num blogue de que nunca ouvi falar antes na minha vida, que alimenta regularmente e que se chama – algo deceptivamente – Mundo Perfeito. Bem, não pode ser assim tão perfeito como isso, se a imagem de cabeçalho que a Isabela escolheu para a porta do seu blogue é um corpo de mulher de cuecas e com cabeça de cão, sentada numa estufa com flores. É uma invocação que diz muito. Para mim uma alegoria de um mundo perfeito ( aquilo a que Sir Thomas More chamou em tempos de Utopia )podia ser a fotografia acima – mais ou menos. E ainda tem à porta da estufa retinintes e polidos avisos sobre os seus direitos de autora, que, na minha experiência na internet, são ah tão simpáticos como não valem um caracol furado. Neste meio a ofensa não se combate com avisos, combate-se com unhas e dentes.

Ou ignora-se.

Ora eis algo que não me ocorrera antes, isto de ter um blogue na internet, onde vou escrevinhando umas coisinhas e um belo dia, imagino que para aqueles que não têm internet, arranjo uma editora e escarrapacho tudo outra vez numa publicação, à laia de The Best of The Delagoa Bay Review. Bem, sempre tira a impressão fungível e a desconfortável sensação de estar sózinho num submarino e que as palavras que aqui escrevemos em suporte incompreensivelmente electrónico, pareçam um pouco menos aquilo que os americanos chamam pissing in the wind (no nosso vernacular, fazer chichi ao vento). Tenho que falar com o nosso Senador e a Sra Baronesa em reunião de Conselho de Machamba, mas receio que, numa futura edição do Caderno de Memórias Delagoabaianas, eu seja sumariamente relegado para uma recôndita nota de rodapé.

E lá se iria a etérea sensação da imortalidade literária.

Mas podia oferecer cópias dos livrinhos pelo Natal, o que com um blogue, admita-se, não se pode fazer.

A mistificação do comentário publicado no Diário de Notícias sobre a Isabela tem que ver com a evocação de um passado moçambicano que mais parece uma longa e pesada sessão de terapia duma branca com sentimentos negativos sobre a sua experiência africana e, quiçá, sobre o seu estatuto de retornada num Portugal revolucionário e recém-exorcizado da sua experiência colonial-bélica. Pelo meio, vagueiam ideias da injustiça daquilo tudo, o trauma do (presumo) rescaldo do 7 de Setembro de 1974 e ainda o fantasma do pai, que, recita, chamava coisas feias aos colonizados com pele mais escura e que, num contexto em que – creio – ninguém tinha “direitos”, tinham ainda menos que os colonizados mais clarinhos. A Fernanda, cuja experiência africana (e muito menos moçambicana) repito, desconheço por completo, arremata, no que presumo possa apenas ser uma infeliz exaltação literária, dizendo que vivia-se (em Moçambique) num país onde se podia atropelar um negro e não ir para a prisão. Pois. E esqueceu-se de referir que comíamos meninos pretos pequeninos para o matabicho.

Decorre que com a independência tudo isso acabou. E que com os assassínios de brancos por representantes armados da maioria negra nos arredores de Lourenço Marques em 1974 fez-se, apenas, justiça. Ai sim Fernanda? hum, sorte, então eu ter sobrevivido aquela pouca vergonha toda, e não graças à sua boa vontade.

Há aqui dois aspectos que me induzem a pensar que talvez este tipo de intro-retrospecção tenha que ser trabalhado um bocadinho mais.

O primeiro aspecto é que, segundo a Fernanda, cuja retórica para estes efeitos, aceite-se, é mais ou menos irrelevante, a Isabela saíu de Lourenço Marques em 1975 com 12 anos de idade. Se calhar viajámos os dois no mesmo avião da TAP em alturas diferentes, só que eu tinha 15 anos de idade, diferença que importa para efeitos desta discussão. Pelo menos eu já não era virgem, naquele e em muitos outros aspectos da vida.

Ora, para alguém que saíu de Lourenço Marques em 1975 com 12 anos de idade, a análise global da situação que a Fernanda diz que a Isabela faz, a crer-se biográfica e despida de preconceitos e análises que só possam ter sido posteriormente adquiridos, devem ser deveras de assombrar, vindos de uma miúda. A minha irmã mais nova, que tinha a mesma idade e teve o mesmíssimo percurso que a Isabela, mal sabia jogar ao berlinde. E lá em casa ainda estamos à espera dos seus cadernos.

Mas admita-se que pode ser que seja a nua verdade no seu caso pessoal, em que a forma como pinta o pai assusta mais que o papão colonial-racista. O que refere dava para horas e horas (e horas e horas) de sessões de psicoterapia.

Mas não logra por um segundo pintar uma realidade maior.

O segundo aspecto é que, por minha parte – e já o tentei explicar uma vez ao JPT e sob pena de me repetir – ao contrário de alguns eu vivi lá e, no meu microcosmo, o pai BM e a quase totalidade das pessoas com quem contactava, não chamava nomes a ninguém, branco ou preto, eu não era inibido de me dar com ninguém com base na cor da pele e, se não disputo (mas não desta maneira) a sustentabilidade do tal “ídilio colonial” de Lourenço Marques que a Fernanda diz que não existia (existia, sim, que chatice), pintar essa era e todas as vastas e complexíssimas relações pessoais, económicas, sociais e raciais de Moçambique no fim da era colonial em Lourenço Marques com um simples rótulo de “racismo” e “abuso” é totalmente descabido. É falso. É absurdo. É ridículo. É uma fraude moral, intelectual e histórica. É projectar os seus preconceitos actuais, ignorar as suas causas e tentar justificar moralmente os seus efeitos e a pulhice que veio a seguir, e em que de longe as maiores vítimas – surpresa – foram sempre, e quase só, milhões de moçambicanos, que de uma ditadura fascista e colonial passaram directamente para outra, não muito diferente.

Especialmente, destaco, se se estiver a falar no começo dos anos 70, em Lourenço Marques.

Claro que lá havia racismo. Montes. Claro que havia injustiça, incluindo a racial. Claro que tinha que acabar. Que tinha que mudar. Claro que havia gente como o pai da Isabela. Se calhar até bem pior. Claro que aquilo era uma ditadura, com tentáculos em Portugal, um anacromismo total num mundo já quase sem impérios coloniais e em que os países comunistas activamente armavam e patrocinavam os que combatiam o que sobrava de colonialismo no mundo. Ser colonial a partir de 1950 tinha o seu custo em lágrimas, suor e sangue. Salazar estava disposto a pagá-lo, outros não. Em 1974, venceram estes.

Mas cuidado ao pintar tudo de negro. O pior racismo que vi na minha vida não foi em Moçambique. Foi nos Estados Unidos quando para lá fui viver em 1977. Portugal hoje não é muito melhor. Quotidianamente vejo as maiores injustiças serem cometidas em Portugal hoje que não se distinguem assim tanto das injustiças que haviam em Lourenço Marques e que há em toda a parte. As injustiças económicas que se observavam há quarenta anos em Moçambique, aliás, ainda se mantêm em larga parte. Pois não é de um dia para o outro que se capacitam milhões de pessoas pobres, rurais e analfabetas que vivem de subsistência no mato e se lhes proporciona, e aos seus filhos, condições para ascensão social e económica.

O crime, se é que se pode dizer assim, não era do que a Isabela diz que vislumbrou aos dez anos de idade e muito menos dos tiques racistas do seu partido pai, que não conheci e pelos vistos ainda bem. É de um país que estava na mão de um ditador que escolheu manter um statu quo décadas depois da altura em que deveria ter iniciado medidas para atempadamente preparar e entregar o poder político e a gestão da nação moçambicana aos seus filhos, descomplexadamente e de cabeça erguida.

Provavelmente quer eu quer a Isabela teríamos lá ficado, a viver em paz e sossego e estaríamos a ajudar a construir esse então novo país, em vez de andarmos à esmola de familiares hostis e dependentes de amizades que se calhar nunca o foram, olhando no espelho à noite e inventando na mente o delírio de que aqui pertencíamos.

E a ter que tentar engolir de terceiros a tese de conspiração de que o que ali porventura encontrámos de bom e belo – e que hoje é apenas uma memória, só isso – não foi, não podia ser, que estamos a mentir aos outros e, pior, a nós próprios.

Vão à merda.

Dito isto tudo, acho que um dia destes lá vou ter que ir procurar o tal de livro para ver mesmo do que é que a Isabela está a falar.

Ou talvez não.

Quanto ao blogue, para já fico à porta.

23/12/2009

José António Saraiva, os Jovens e o Pai

sapatilhas da moda nb kiks

por ABM (Cascais, 23 de Dezembro de 2009)

A propósito dos meus queixumes cinematográficos sobre os jovens, refiro a crónica de José António Saraiva, que dá a sua visão sobre o assunto. Claro que peca pela abrangência. Mas em média está correcto e aponta o dedo aos filhos da classe média (bem, da média-baixa para cima).

Li esta coluna não porque comprei o semanário lisboeta Sol, de que JAS é director, mas porque estava um monte de jornais para oferta à saída do cinema a semana passada e eu peguei numa cópia.

Gosto muito de ler JAS desde os idos tempos em que comprava, numa mercearia portuguesa na zona de Fox Point, em Providence, Rhode Island (EUA) inexplicavelmente espessas cópias do Expresso. Não era todas as semanas pois a mercearia só recebia algumas cópias e se eu chegasse tarde não havia nada para ninguém.

JAS era para mim o prato forte e leitura obrigatória do Expresso e nunca entendi muito bem a decisão dele sair de lá para fundar o Sol. Do pouco que sei, este jornal, não sendo editorialmente mau, não vale muito sem ele e parece-me que tenta ser o antigo Expresso sem o ser. O problema é que nem o actual Expresso se parece com o antigo Expresso.

Pode ser que seja eu que tenha mudado. Mas não acho.

Acresce que o jornal tem tido problemas financeiros aparentemente sérios e tem seguido uma estratégia muito peculiar de insistir em ser vendido nos países africanos onde se fala português, o que não entendo pois o mercado lá para as notícias e análise que o jornal faz cá não é grande. Não só não é grande como não se compadece com as pressões culturais, diplomáticas e políticas que caracterizam o tortuoso eixo que liga Lisboa às capitais dos países onde se fala português – especialmente Angola e Moçambique (que conheço melhor) onde há bons jornais e bons escribas.

E, do que fui informado, uma parte do capital do Sol está nas mãos de interesses angolanos. Qual a lógica, não sei.

Mas JAS continua em forma, mais velhinho e sábio como alguns de nós. O estilo e a substância não alteraram muito com os anos.

E, meritoriamente, sai no feitio ao pai, o grande António José Saraiva, que tive o prazer de ver quando visitou a Universidade Brown e em que falámos de um livro que ele então havia publicado recentemente, A Inquisição e os Cristãos Novos, que eu acabara de ler e tinha feito um (ridículo) trabalho para uma cadeira creio que do prof. Onésimo Teotónio Almeida.

Para mais sobre a Inquisição e os Cristãs Novos, leia-se esta entrevista de Francisco Bettencourt, que em tempos leccionou na Brown e em que fala da obra do pai Saraiva (chamando-lhe uma “tese marxista” – hum).

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