Aníbal Cavaco Silva discursando durante o feriado de 5 de Outbro. Em baixo, o que eu pensei sobre o que ele disse. Foto cortesia de a Bola.
Não sei precisar o momento em que Aníbal Cavaco Silva me começou a desiludir a sério, enquanto titular do cargo de presidente da república portuguesa.
Não sei se foi quando me apercebi da sua postura esfíngica de diva política (que não é).
Nem sei se foi quando repetidamente me irritava quando, sempre que um jornalista lhe metia um microfone debaixo da boca (situação de que não gosto mas que ele é que permite – se eu fosse presidente mantia os jornalistas a dez metros de distância, tal como faz qualquer presidente dos EUA que se preze) de pontificar socraticamente sobre ele mesmo mas falando dele na terceira pessoa- e mesmo assim cripticamente ou dizendo nada.
Não que interesse. A maior parte do tempo, o que ele diz não interessa. Mas os média portugueses têm esta propensidade para o seguirem perpetuamente, à caça de uma declaração, de uma declaraçãozinha.
Nem tão pouco se foi quando me apercebi da sua penosamente óbvia incapacidade genética de falar com as pessoas através da televisão ou de estar com elas pessoalmente, sob a custódia protectiva da sua esposa-parceira política, uma professora de liceu reformada com uma pensão de (explicou ele uma vez) apenas 800 euros por mês.
Uma impreciosidade pecuniária que só mesmo um investimentozinho oportuno em acções do BPN ajudavam a colmatar.
Nem ainda, na sua teimosia em insistir que “ele” o tal presidente na terceira pessoa que é ele mas que ele sugere que não é ele, invariavelmente não se deve pronunciar sobre este, aquele ou qualquer outro assunto.
Mas que depois permite que se deixe gravar num pasto nos Açores a dizer as mais rascas banalidades sobre vacas e fruta.
Durante muito tempo, pensei que ele seguia esta postura académico-anal-retentiva porque, para além de ser mesmo assim, por debaixo dele ele tinha que lidar com o quiçá menos estável, quase hilariantemente exuberante – e perigoso – José Sócrates. O socialista-in-waiting que emergeu do chiqueiro que foi na altura o chamado escândalo da Casa Pia e que meteu os pregos finais no túmulo em que Portugal rapidamente se está a tornar (bendito povo que ainda não se apercebeu no que está metido).
Mas em Junho, supostamente, ocorreu um episódio histórico na política portuguesa (histórico com “h” pequeno, muito pequeno, atalhe-se): num espasmo momentâneo e irreflectido de alguma sanidade, certamente excessivamente tardio, alguns eleitores puseram Sócrates na rua e votaram maioritariamente para colocar o PSD, o PSD que havia, no poder.
O mesmo PSD onde Aníbal causou algum furor nos “happy crazy years” do arranque da mama europeia – e cujas regras de base ele redigiu – como ministro das finanças e depois como primeiro ministro durante dez anos seguidos.
Lembram-se desses anos?
Os dez anos de Cavaco Silva foram na altura vistos como anos de grande prosperidade, de desenvolvimento e de alguma paz a estabilidade. As empregadas domésticas deixaram de usar passes sociais e compraram Renaults Clio a prestações. Profeticamente, ele terminou essa década liberalizando o crédito…ao consumo. O mesmo que agora nos consume colectivamente.
Mas afinal esses anos não foram bem isso.
Na verdade, foi aquilo que, memoravelmente Joaquim Chissano, lá nas Áfricas, dizia acerca das suas “audiências internas” enquanto presidente executivo de Moçambique: agora se depreende que o que era preciso para andar para a frente nesses anos, era manter as ratazanas à sua volta com a barriga cheia.
E isso ele fez. Foi uma win-win situation. Tirando talvez os despachantes oficiais, acho que esses dez anos foram uma bebedeira nacional a todos os níveis. Os privados comeram o que quiseram, a máquina estatal explodiu em crescimento, as despesas públicas subiram a um patamar estratosférico, procedeu-se alegremente à desindustrialização de Portugal, sob o aliciante lema – que Cavaco Silva e só ele inventou – de que Portugal poderia ser o próximo Sillicon Valley da Europa. O que na verdade equivale a dizer que beduínos marroquinos passassem a fabricar Ipads da Apple (Rip Steve Jobs).
O resultado, anos mais tarde, foi uma absolutamente estranha parceria, em que uma empresa que ninguém sabe bem quem é ganhava dinheiro vendendo – ao governo, ou seja aos contribuintes – uns computadorzecos chamados Magalhães a meninos previamente de rua e que serão a suposta Geração Portuguesa do Futuro.
A Grande Geração da maior implosão demográfica em 900 anos de história, tirando a Gripe Espanhola de 1918 e a Grande Peste de 1348.
Aníbal Cavaco Silva foi posto na rua em 1995. Ou melhor, como ele não iria concorrer, e portanto tecnicamente não podia ser despedido, os eleitores na altura puseram o seu partido na rua, demolindo a sua máquina e abrindo o flanco a outra não mais apta agremiação de talentos, que era a então liderança do PS, personalizada na figura de António Guterres, que era uma espécie de anti-caricatura de Aníbal: tudo fazia, tudo dizia, com tudo e todos dialogava, ao som de uma passagem épica do filme O Gladiador.
Mas, feitas as apresentações e as nomeações, e agora sob diferentes condições – de que destaco a continuação da torrente de euro-donativos, a baixa substancial das taxas de juro e a relativa novidade da capacidade de ambos os sectores público e privado de se passarem a financiar (leia-se endividar) nos mercados internacionais ao preço da uva mijona – os anos de António Guterres caracterizaram-se pela continuação da política do betão, abrindo agora uma nova frente na chamada área social, sempre tão cara para os socialistas.
Era o betão com consciência social, simbolizado pelo cancelamento de uma barragem e a inauguração de um parque de imagens pré-históricas algures do Portugal Profundo.
Em 98, fez-se a Expo que fez a ponte para a bebedeira seguinte, que foi o Euro 2004. Por uns momentos, mais do que quandp ávida e pacoviamente mudavam as matrículas dos seus carros para o padrão europeu, os portugueses equivocaram-se gravemente e pensaram que eram portugueses da Europa.
Ou seja, para além do betão de Cavaco Silva, António Guterres, no que em seguida foi superado soberbabemente por José Sócrates, principiou a gastar o que todos os portugueses não tinham, em subsídios para tudo e mais alguma coisa.
Pelo meio, houve uma eleição presidencial em que Cavaco Silva não teve qualquer chance. Jorge Sampaio, um socialista mediano mas simpático que fora presidente de câmara e que tinha a particularidade de falar bem inglês e de chorar em público de quando em vez, ficou com o lugar. A única vez em que se notou foi quando limpou a poeira aos canos serrados da espingarda presidencial e ejectou o curto, infeliz governo de Santana Lopes, que ficou por aí.
O problema é que, entretanto, a economia portuguesa pura e simplesmente parou. E assim ficou, estática, durante dez anos seguidos, alheia ao que se dissesse ou se fizesse, que não era rigorosamente nada.
No sector público, acumulava-se a pressão explosiva em termos de custos e de eficácia, a quase todos os níveis. Num primeiro susto, que aliás não foi lá muito levado a sério, José Sócrates fingiu que ia fazer reformas. “Fazer reformas” para um socialista habitualmente significa “aumentar impostos”. E assim foi. Trouxeram o Paulo Macedo que mais ou menos começou a fazer com os impostos o que ninguém pelos vistos consegue fazer com a justiça, a saúde, a educação, a gestão da demais coisa pública.
Pelo meio, desta vez por alguma saturação anti-socialista, e por falta de alternativas, creio, Aníbal Cavaco Silva foi eleito presidente. Tal como no final do Século XIX, era a Alternância sem Alternativas.
De nada e para nada serviu, aquele primeiro mandato.
Que foi digamos que mudo. Lá no palácio que foi de Dom Carlos e Dona Amélia, Aníbal pregoava harmonia, ruminava subterraneamente e através da sua corte de assessores quando algo lhe desagradava, agarrou-se uma vez de uma forma inusitada à relativamente exótica questão do estatuto dos Açores. Isto enquanto José Sócrates literalmente fez o que quis e lhe apeteceu. No início de 2009, quando já tudo se começava a desmoronar, manteve um aumento de 3.9% dos salários dos funcionários públicos e disse que o que afinal era preciso era – estaria eu a alucinar? – mais e mais despesa e mais investimento público.
Era preciso dar de comer às ratazanas.
Na sua mais recente campanha, Cavaco Silva foi quase majestático: nem sequer fez campanha, para além duns cartazezitos e uns debates positivamente intragáveis na televisão. Isto já quando o mundo levara o rombo assustador da falência premonitória do banco americano Lehman Brothers e em que o que estava para vir era totalmente previsível: uma arrasadora destruição de valor nos mercados de capitais, a que se seguiria uma ainda mais demolidora secagem dos mercados de crédito. Subitamente, toda a gente descobriu a palavra “risco” e “notação de risco”.
Especialmente em Portugal.
Metodicamente, a Islândia, a Irlanda e a Grécia caíram. Os grandes tomaram severas medidas de contenção.
Quando Sócrates foi finalmente posto fora, após anunciar o seu quinto “Plano de Estabilidade e Crescimento” ou PEC, termo kafkiano-orwelliano que na quase totalidade consistia em fazer aumentar pela quinta vez sucessiva os impostos, Cavaco foi incansavelmente fleugmático.
Afinal, em Portugal, um presidente não manda.
Umas semanas depois, no início de Junho, o PSD de Pedro Passos Coelho, um ex- perpetuamente jovem apparatchik do PSD sem qualquer experiência prévia de governo e que tinha escrito um daqueles livrinhos inspiracionais que agora estão tanto na moda, tomou as rédeas do poder. Possuía as importantes vantagens de não parecer alucinar como José Sócrates e de ser elegível.
Face ao terror económico que se começava a vislumbrar poderia estar para vir, alguns portugueses acharam reconfortante ter agora uma espécie de Santíssima Trindade Laranja a governar a nação: um presidente, um governo e um parlamento laranjas.
Previsivelmente, os primeiros cem dias do novo governo laranja consistiram em fazer duas coisas: dizer que tudo estava a ir de mal a pior e a aumentar impostos. Muitos mais impostos.
O que, claro, todos aceitaram relutantemente pois estava-se a pagar o descalabro de dez anos de República Socialista. E não parecia haver alternativa.
O que não estava previsto é que não fizessem quase mais nada para além disso. Nada de cortes na despesa, nada de ideias novas, nada para além do parlapatanço habitual e típico dos políticos portugueses. Paulo Portas, que se movimentou para ter um lugar à mesa do poder, refugiou-se no recato das Necessidades, e meteu uns seus colaboradores em pastas importantes,em que ainda não se observou nada de substancial.
Neste período, Cavaco Silva, agora em segundo e terminal mandato, pouco disse, para além daquelas estranhas mas já habituais emanações sobre ele mesmo na terceira pessoa, e referindo que as coisas estavam mal e que a gente que se virasse para melhorar as coisas.
E sobre as vaquinhas nos Açores.
É portanto, neste contexto global, que a Aníbal Cavaco Silva ocorreu, ontem, de celebrar o lamentável feriado do dia em que houve um golpe de Estado (mais um, diga-se) resultante de uma conspiração em Lisboa que derrubou em 1910 a monarquia e implantou o actual regime há 101 anos, com um discurso.
A esse chamo o Discurso dos Tempos Difíceis e da Refundação da República.
Quem quiser e tiver a pachorra, pode lê-lo premindo AQUI (curiosamente o sítio do jornal desportivo A Bola).
Qual foi a essência das suas mensagens?
A meu ver, a essência do que disse é que os portugueses estão lixados, que vão passar as passinhas do seu nativo Algarve, que ou arrepiam caminho depressa ou vai tudo por água abaixo, e finalmente que se esqueçam da mama do governo que desta vez não lhes pode ajudar.
O terminar o discurso com uma esforçada mensagem de fé quase divina nas capacidades dos lusitanos, quase parece uma espécie de exercício da praxe para não ficar mal. Ainda assim usa o já desgastado exemplo dos portugueses emigrados, ignorando a perversa dualidade do que isso significa: que os portugueses lá foram são exemplares e têm sucesso tanto porque são portugueses, como porque……justamente, estão lá fora.
Ora, eu ouvi e depois li o que ele disse no seu discurso de 5 de Outubro de 2011 no contexto não de hoje mas no de uma carreira que decorre há quase trinta anos.
E acho curioso que alguém que foi responsável em boa parte pelo país que este é agora, mas que é suposto ser um contraponto à loucura socialista de dez anos, que procurou e obteve o cargo de presidente da república, que me parecia apreender de forma lúcida os tempos que se avizinhavam, que neste momento de constatação da inevitabilidade da mudança, centre o seu discurso nas temáticas de funda da Desgraça e da redescoberta da necessidade do renascimento de um novo “activismo republicano.”
Precisamos de fazer renascer um novo activismo republicano?
Um novo activismo republicano?
Qual deles? o da pulhice nojenta e malcheirosa da I república? o dos quarenta anos da república de Salazar? ou os trinta anos e tal anos de República Socialista, a República a Crédito que terminou com a maior falência nacional em 120 anos?
Nos últimos tempos de Sócrates, quando o via na televisão, eu costumava interrogar-me com frequência sobre em que planeta é que ele pensava que vivia.
Quando vi Aníbal Cavaco Silva a discursar na televisão ontem à tarde, fiz a mesmíssima pergunta.
E a resposta, cada vez mais, parece ser esta.
Que os portugueses mais uma vez estão entregues a si próprios, sem qualquer projecto nacional que não seja ir a reboque dos escombros do projecto europeu, sem o qual não há desígnio nacional, e que os actuais líderes, um pouco como os mais recentes, não estão ali para liderar nem para solucionar.
Estão apenas para cruzar os débitos com os créditos, a tentar vender a língua para agradar ao Brasil e a esperar que venha um milagre de alguma parte. Possivelmente da Europa, o que ele sugere no seu discurso, mas temente de que poderá não ser assim.
A história de Portugal já teve vários destes lamentáveis momentos. Em que se pressente que algo de terrível está para acontecer.
E que ninguém parece preparado para o que está para vir.
E parece que neste caso a história repete-se.
Se se repete, é porque, se calhar, os portugueses merecem. Pois não aprenderam a lição.
Independentemente desse detalhe, nestas circunstâncias, esta república, certamente esta III república, provavelmente, não tem salvação.
E Aníbal Cavaco Silva provou que já não é parte da solução.
É parte do problema.