Uma mulher de Lourenço Marques, presumivelmente nobre. Foto de Manuel Romão Pereira, fim do século XIX, dos arquivos do IICT em Lisboa, restaurada por mim. Entretanto passaram-se cem anos. Ou não?
Deve ter sido por causa da atenção do público em relação ao mau tempo que assolou o Sul de Moçambique na passada semana, que, salvo o meritório protesto de um conjunto de organizações e de alguns cidadãos preocupados, publicado num sítio na internet, quase terá passado despercebido em Maputo um artigo de opinião, enviado de Pemba (para os dos antigamentes, é Porto Amélia) da mão de Pedro Nacuo, um conhecido e até agora reputado jornalista, cronista, autor e professor.
O texto de Nacuo debruça-se sobre um episódio infame, no mínimo um caso de polícia, que, inacreditavelmente, parece ter até este momento escapado à atenção das autoridades e da Lei, se bem que haja indicações de que os factos são do seu conhecimento.
Eis o artigo de opinião que o Notícias de Maputo publicou no sábado, dia 14 de Janeiro de 2012 e que reproduzo na íntegra do magnífico Macua Blogs – incluindo o inacreditável título:
Dizer Por Dizer: Leis que colidem com a tradição!
E há muitas! M’mera ou M’vera (acampamento) é o local especialmente escolhido para acomodar (?) os jovens que vão aos ritos de iniciação masculinos, a mais credível forma de educação na tradição de quase todas as províncias do Norte de Moçambique, portanto de todas as etnias aqui existentes.
O local é sagrado, mistificado, de tal ordem que os jovens (nos últimos tempos, crianças) ficam lá, submetidos às diferentes disciplinas do currículo educativo tradicional, em muitos casos de forma viril, qual se faz com os recrutas na instrução para o serviço militar. Quem de lá sai, considera-se graduado e preparado para os desafios que a vida lhe reserva pela frente. Portanto, para lá da circuncisão, que é algo secundário, o objectivo principal é a educação dos jovens.
Os jovens ficam ao cuidado de gente aparentemente estranha, preparada para num mês mudar comportamentos que corriam o risco de serem perenes, corrigir condutas que poderiam minar o futuro das crianças, para se lhes admoestar uma maneira de estar na sociedade, conforme a tradição dos seus ancestrais.
E muitos dos comportamentos a corrigir normalmente são do tipo ocidental, que a civilização nos trouxe, a negação à igualdade em reconhecimento àqueles que são velhos ou foram entronizados em representação de quem era autoridade moral.
Quem por lá não passou, na verdade, não merece o respeito devido na sociedade tradicional a que se encontra inserido, chama-se Lúku. É uma qualidade muito humilhante, leva a contradições que nunca acabam.
Quem por lá passou considera-se crescido por ter ido aonde só se vai uma vez e se deixam muitos comportamentos erróneos, para adquirir outros ou solidificar os considerados saudáveis.
Tudo o que lá acontece, não diz, não se leva para casa, não se conta a quem nunca foi. Tudo termina no dia em que o M’mera ou M’vera, fica destruído, normalmente por meio do fogo posto e ninguém mais olha para trás, sinal de que é caso encerrado. Isso é de tal modo mitológico que nem há reportagens jornalísticas que falam do que se passa naquele lugar.
Não há jornalista, desde que não seja Lúku, capaz de tentar reportar para o público o que acontece num M’mera ou M’vera. Marca para sempre a vida dos homens, conquanto possam trilhar depois caminhos díspares. Ainda que depois possam ser muitas vezes doutor, outras vezes dirigente político ou ministro, a saudade que fica, justifica-se pelo respeito que se tem dos ritos de iniciação. Da tradição!
O acampamento é, na verdade, um lugar sagrado, envolto de mitos que acompanham a vida das crianças durante cerca de um mês ou mais, sem a convivência com os seus pais, mas dirigidos por pessoas aparentemente desconhecidas, asseguradas por um líder espiritual, que é o responsável, ao fim e ao cabo, da vida dos petizes.
Há um raio determinado, depois do qual está-se na zona proibida e quem ousa violar os limites tem imediatamente uma valente punição, principalmente se não for quem alguma vez passou por aquilo. Pior se for uma mulher! É nesse limite onde se recebem as comidas vindas das casas dos miúdos, trazidas pelos pais ou seus enviados, sem a certeza de que chegam ou não aos seus destinatários…
Não é que em finais de Dezembro passado uma mulher, aqui em Pemba, violou os limites em relação ao raio proibidíssimo, diz-se, por mais de uma vez? Concluiu-se que o fazia deliberadamente, sobretudo porque sendo da terra, sabe o quanto é interdito.
Caiu nas malhas de homens do acampamento e foi dolorosa e copiosamente violada, por 17 homens, vindo parar no hospital onde ficou internada. A cena saiu para o consumo público, este público que, tendo passado pelos ritos de iniciação, não tem que perguntar quase nada e ela dirá muito pouco do que aconteceu.
Ficou, infelizmente, a história de rir: no hospital, os enfermeiros não sendo Lúkus, só puseram-se a tratá-la, como o fariam a uma pessoa que deliberadamente se meteu debaixo de um carro para que fosse pisada. A polícia prendeu os supostos autores materiais do crime, mas a corporação é composta por homens, alguns deles que bem sabem de que se trata e o líder espiritual mandou recados para quem ousasse mexer nos seus “soldados”.
Ficou um segredo, como é segredo tudo o que lá acontece. Ninguém moral e tradicionalmente condenou a punição aplicada à senhora, ainda que severa, porque as instituições são compostas por pessoas que sabem de que se trata. Aqui a Lei colidiu frontalmente com a tradição. Eu, se não estivesse a dizer por dizer, nem devia dizer isto!
(fim)
A reacção, algo tardia, veio na forma de um comunicado conjunto de organizações cívicas que actuam em Moçambique. Intitulado “Os Talibans de Moçambique”, o texto, divulgado no domingo, dia 22 de Janeiro no sítio da WLSA, uma das organizações que o subscrevem e dirigido à administração do jornal Notícias, diz o seguinte:
No jornal Notícias, a 14 de Janeiro de 2012, o jornalista Pedro Nacuo escreveu uma coluna de opinião sobre um crime ocorrido em Pemba, Cabo Delgado: uma mulher que entrou num espaço reservado aos ritos de iniciação de rapazes, foi “punida” por ordem do responsável pela cerimónia, que ordenou uma violação colectiva.
Ela foi sexualmente violada por 17 homens.
A polícia inicialmente tentou intervir, chegando a deter os violadores, mas foi avisada para não se imiscuir no assunto.
Não se conhece o desfecho final do caso.
No artigo, Pedro Nacuo defende como merecida a “punição” decretada pelo “líder espiritual” e concretizada pelos seus “soldados”: “Ninguém moral e tradicionalmente condenou a punição aplicada à senhora, ainda que severa, porque as instituições são compostas por pessoas que sabem de que se trata”.
Este caso lembra a violação colectiva de uma jovem ordenada por um conselho tribal numa zona rural do Paquistão, em 2002. Só que o desfecho no Paquistão foi o opróbrio nacional e internacional, e o julgamento e condenação dos violadores e dos membros do conselho tribal envolvidos. Enquanto neste caso, o jornalista moçambicano defende a impunidade!
Contrariando a ideologia e valores conservadores, sexistas e talibanescos do jornalista, as autoridades moçambicanas têm que intervir. Para que a justiça seja reposta e para que não seja vã e inútil (e até hipócrita!) a aprovação de tantos instrumentos legais que protegem os direitos de cidadania de todas/os nós, mulheres, homens e crianças. E para mostrar que estamos de verdade num Estado de direito. Menos do que isso é ceder à lei arbitrária decidida e aplicada por líderes locais, indo contra das leis que consideram a violação como crime.
Lembre-se que Pedro Nacuo foi premiado em 2011 na categoria de imprensa escrita à 13ª edição do Prémio Saúde para Jornalistas, promovido pelo Ministério da Saúde, em parceria com o Sindicato Nacional de Jornalistas e a Organização das Nações Unidas. Assim, é assombroso que um jornalista premiado por escrever sobre saúde justifique que a mulher violada tenha sido maltratada pelos enfermeiros do hospital aonde foi levada. Este senhor recebe um prémio do Ministério da Saúde mas está a promover condutas indignas da profissão médica, nomeadamente, rir de um estupro colectivo e culpabilizar a vítima: “Ficou, infelizmente, a história de rir: no hospital, os enfermeiros, não sendo Lúkus (*), só puseram-se a tratá-la, como o fariam a uma pessoa que deliberadamente se meteu debaixo de um carro para que fosse pisada”.
Para finalizar, exigimos que a justiça cumpra as leis do Estado, sancionando os agressores (os violadores e o líder que os guiou) e mandando, assim, uma mensagem forte a quem quer decidir por si os limites da legalidade no país.
Solicitamos que o jornal Notícias publique esta nota como direito de resposta para repor princípios fundamentais dos direitos humanos, que norteiam a nossa jovem democracia.
Assinam:
WLSA Moçambique – Mulher e Lei na África Austral
LAMBDA – Associação de Defesa das Minorias Sexuais
Fórum Mulher
AMMCJ – Associação Moçambicana das Mulheres de Carreira Jurídica
AMCS – Associação das Mulheres na Comunicação Social
FORCOM – Fórum das Rádios Comunitárias
Nota:Lúku: homem que não passou pelos ritos de iniciação
(fim)
Considerando as alegações gravíssimas aqui feitas, as opiniões expressas e a natureza dos factos, surpreende-me totalmente que um assunto desta natureza quase não acuse no “radar” da sociedade moçambicana a todos os níveis e mereça o tratamento que a sua natureza quase bombástica merece.
Nomeadamente:
1. Como é possível que um caso de violação sexual de uma mulher moçambicana em Pemba por 17 homens, passa pelas mãos da autoridade policial local e pelos vistos, aparentemente nada aconteceu?
2. Como é possível que uma mulher violada por 17 homens vai parar a um hospital e ela recebeu – a acreditar nas palavras do jornalista autor do artigo de opinião acima – o tratamento mais vil, infame e desrespeitador que se pode imaginar?
3. Como é possível que um crime desta natureza possa ser “reclassificado” como uma mera ocorrência pelas entidades envolvidas, 17 autores e um mandatário mandados para casa, invocando a desculpa esfarrapada de que envolve religião e tradições, e como tal se justificava?
4. Como é possível em 2012, que qualquer pessoa, que qualquer entidade, qualquer tradição, qualquer religião, consiga justificar o crime deliberado da violação em massa de uma mulher, como fazendo parte legítima e constituindo “castigo justificável” , seja em que circunstância for?
5. Como é possível que a direcção e os editores do Notícias de Maputo, deixem passar a limpo nas suas páginas como mera afirmação de uma opinião num sábado, a monstruosidade que é dita quase inexplicavelmente pelo seu cronista de Pemba, que desvaloriza um crime hediondo e efectivamente relega mais do que metade de toda a população de Moçambique para o estatuto de carne para canhão, sujeitas a “tradições” e “religiões” que incluem a violação sexual em massa de uma mulher?
6. Como é possível que, em Moçambique, em 2012, em que, pesem todas as dificuldades e constrangimentos, existem entidades e mecanismos com poderes formais e informais como os Srs. Presidente da República, primeiro-ministro, ministro do Interior, ministro da Justiça, Procuradoria, as polícias, etc – e este chocante episódio passe em claro sem que acção decisiva, conclusiva e eloquente seja encetada, dizendo aos criminosos e ao mundo que, em Moçambique, a Lei aplica-se e que, em Moçambique, as mulheres são respeitadas e são para serem respeitadas, que, em Moçambique, estes crimes não são tolerados, e que quem os cometer em Moçambique vai pagar um preço muito caro por eles?
Como é tudo isto possível?
Por mim, em memória da minha mãe e para bem das minhas irmãs e de todas as mulheres moçambicanas que são as nossas colegas e parceiras na vida e as mães dos nossos filhos, e da nobre e rica tradição, desde a Independência, do realce e destaque para o papel crucial das mulheres na sociedade moçambicana, espero que não seja possível.